Folgar rapazes, folgar, folgar, que só para o ano torna a voltar.



Guimarães, noite do Pinheiro - confinado à varanda - de 2020.
(Vídeo emprestado pelo meu amigo Eloy Rodrigues)

E quem, no futuro, fizer a história das Nicolinas, não escreverá que em 2020 não houve festas dos estudantes de Guimarães. É certo que os folguedos tiveram que se adaptar aos constrangimentos de um tempo que ameaçava interromper a circulação da seiva vital que alimenta estas festas e se transmite, ano após ano, década após década, século após século, de geração para geração, dos eternamente velhos, para os apenas temporariamente novos. Erguido, a horas tardias, o mastro sem bandeira que anunciava ao mundo que os estudantes de Guimarães estavam em festa, os estudantes de Guimarães celebraram, um ano mais, o seu padroeiro, S. Nicolau, sob a égide de Minerva, a protectora da sabedoria e do conhecimento.

É certo que aconteceu aquele incidente lamentável da manhã do dia 29 de Novembro que, esperemos que fique claro, teve muito pouco a ver com o que os nicolinos fizeram na praça da Oliveira que, como conta quem lá esteve e mostram imagens captadas a partir de pontos mais elevados, até mantiveram a distância de segurança, apenas se pisando o risco por breves momentos, quando acorreram mais espectadores do que o esperado, tudo tendo terminado ordeiramente à hora canónica do recolhimento imposto, dispersando-se o ajuntamento sem que as autoridades presentes tivessem sentido necessidade de intervir. O alarido público que se gerou, resultante das honras de televisão que lhe deram, mas por razões que não merecia, resultou da acção de alguém aparentemente à procura de uns momentos fama que, sabe-se lá com que intenções, espreitou a oportunidade, puxou do telemóvel e filmou o que se estava a passar, em ângulo frontal, do que resultou a perpectiva de uma aparente mole humana, que as imagens obtidas a partir das janelas dos pisos superiores de casas da praça demonstram ser ilusória. Não havia necessidade.

Como diria a velha gente desta terra,


este ainda não bebeu água da Senhora da Oliveira.


Felizmente, porque agora os tempos são outros e mais civilizados, já caiu em desuso o castigo que, por tradição secular a que o § 14.° do Art.º 25.° do Estatuto da Associação Escolástica de 1837 deu força de lei, atribui à Comissão a competência de...


Fazer aplicar em flagrante contra os estranhos que, ousados, se intrometerem na função, a pena que de uso antigo se acha cominada.


… que é como quem diz,


Se algum Milord de descarado papo,

Deixando da semana o velho trapo,

Desses que estrelas vêem ao meio-dia,

Só para no dia santo ter folia,

Em paga de meter de taralhão

Na malha cair, na nossa mão,

No tanque do Toural tem fresco banho

Para lhe refrescar calor tamanho.

        (Bando Escolástico de 1831)


Por saber que, quando Dezembro está para chegar, o som dos bombos e das caixas, que atravessa a atmosfera e penetra da flor da pele até às entranhas, para funcionar como despertador da emotividade e da pulsão gregária que chama os estudantes no activo e os estudantes aposentados a saírem às ruas da cidade e a darem corpo à mais impressiva e contagiante manifestação de celebração, recordação e saudade alguma vez descrita, confesso que cheguei a temer que as Festas Nicolinas deste estranho ano de 2020 poderiam escapar aos apertos do controlo sanitário que nos invadiram os dias. Felizmente, os receios não se confirmaram: estão feitas as festas e ninguém dirá que, apesar de todas as limitações, não correram bem. Estão de parabéns os jovens que assumiram e cumpriram a tarefa de manter viva em Guimarães a chama nicolina.


Folgar rapazes,

Folgar, folgar

Que só para o ano

Torna a voltar.


Para o ano, vencida a batalha contra o bicho que nos tem atazanado os dias, cumprir-se-á a tradição e as festas voltarão a contrariar os que lhes predisseram a morte, ressurgindo com ainda maior fulgor, tal como aconteceu, por exemplo, depois da suspensão de 1861, quando o país estava de luto cerrado pela morte do jovem rei D. Pedro V. Para o confirmar, aqui fica a reportagem do jornal Religião e Pátria sobre a “mascarada privativa para os estudiosos filhos de Minerva” de 1862 (um documento muito interessante para nos ajudar a perceber como eram as festas a S. Nicolau em meados do século XIX):


S. Nicolau.

Não demos do passado número deste semanário, como tínhamos prometido, a notícia do brinquedo escolástico, que teve lugar nos dias 5 e 6 do corrente, porque nos foi preciso dar lugar a outras matérias; vamos, porém, hoje fazê-lo, ainda que não muito a tempo. Esta festa é privativa dos estudantes desta cidade e de todos aqueles que, tendo-o sido, não têm tomado estado de casados, nem seguem outra condição se não a das letras.

No dia 29 do passado, veio, como já noticiámos, o pinheiro, que tinha de servir para nele se hastear a bandeira escolástica. Foi trazido para o Toural pelos mesmos estudantes, acompanhado de grande número de tambores e de música. Nas madrugadas a seguir, desde este dia até ao dia 5 do corrente, foram os estudantes como é de costume à Senhora da Conceição assistir às novenas.

Na noite do dia 4 para 5, foram à rua da Cruz da Pedra, como também é costume, exigir a posse, um forcado de mato, a cada um dos oleiros da mesma rua, que todos dão e mandam para o Toural por um seu operário. É da etiqueta que, à porta de cada oleiro, se toque uma peça de música, porque sem isto não se dá o mato.

Este mato serve para fazer um magusto no meio do Toural, onde se distribuem aos circunstantes castanhas e vinho.

Feito isto, seguiram às restantes posses que têm a colher nesta noite.

A primeira é a de S. Dâmaso, onde um albardeiro dá todos os anos um pequeno açafate de boas uvas brancas.

Este ano houve nesta mesma rua uma nova posse, em casa do sr. António José Pereira Martins, boticário.

Daqui seguiram à praça da Oliveira, à casa do digno professor de latim, que também todos os anos distribui aos seus discípulos doce e licor.

Depois, percorreram as ruas da cidade com a música na frente tocando o hino escolástico, até romper a manhã.

No dia 5, pelo meio-dia, saiu o bando, que anunciava a festa do dia seguinte. O bando foi feito pelo sr. Mendes de Abreu e recitado pelo sr. Domingos Ribeiro da Costa Sampaio.

No dia 6 pela manhã, foi a renda em St.º Estêvão de Urgezes.

É o símile da recepção de um foro que foi deixado à classe escolástica vimaranense por um cónego da Colegiada desta cidade, mas que acabou pela extinção dos dízimos; pelo que os estudantes, para conservarem os usos tradicionais de seus passados, costumam cotizar-se para comprarem os objectos que lhes davam outrora e distribuem-nos entre si. Reviveu este ano o já quase obliterado uso de, na vinda St.º Estêvão, serem pelos estudantes oferecidas às damas as maçãs e castanhas que são distribuídas na renda. Nos anos passados, apenas um ou outro mais afecto à antiga usança, e talvez preso pelo coração ao delicado sexo feminino, saía a fazer lembrar este antigo costume. Este ano, porém, percorreram as ruas da cidade mais de 30 estudantes, todos soberbamente montados, com a música na frente, distribuindo à porfia pelas gentis da terra a pequena mas valiosa oferenda.

De tarde saíram dois bailes e algumas chistosas exibições, que se demoraram até alta noite.

Tal foi este ano o muito célebre folguedo escolástico que, se no passado ano se não fez, atendendo aos lúgubres acontecimentos que enlutaram o país e o paço dos nossos reis, este ano fez-se de tal arte, que nos aventamos a augurar-lhe para o futuro novos esplendores e pompas.

                                                    Religião e Pátria, 18 de Dezembro de 1862


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