Guimarães e S. Mamede: daqui nasceu Portugal

  

Um dos cartazes de Vasco Carneiro para o 24 de Junho em Guimarães.

De Guimarães o campo se tingia
Com o sangue próprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
                    
                        Luís de Camões, Os Lusíadas, canto I, estrofe 31

 

Ao contrário do que alguns tendem a crer, a afirmação de Guimarães como berço da nacionalidade portuguesa não decorre de aqui ter nascido aquele que viria a ser o primeiro rei de Portugal, mas sim de ter sido em terra vimaranense que se deu a batalha em que Afonso Henriques, à cabeça um movimento colectivo para retirar o poder a um estrangeiro, o conde galego Fernão Peres de Trava, tomou em mãos a sua herança e começou a construir um país.

Sobre os tempos em que Portugal se começou a delinear, os documentos são lacónicos, prevalecendo as zonas de sombra sobre as de claridade. Quase tudo é obscuro e, dos pormenores da Batalha de S. Mamede, o mais que sabemos é o que escreveu um monge do século XII que na Crónica dos Godos, na tradução do meu amigo Agostinho Ferreira, escreveu, sobre o ano de 1128:

 

No mês de Junho, na festa de S. João Baptista, o ilustre infante D. Afonso, filho do Conde D. Henrique e da rainha D. Teresa, neto do grande imperador da Espanha, D. Afonso, com auxílio do Senhor e da divina clemência, mais pelo seu trabalho e favorecendo o zelo do que por auxílio ou vontade dos pais, tomou na sua mão forte o reino de Portugal. Uma vez que, morto seu pai o Conde D. Henrique, como ele ainda era uma criança de dois ou três anos, uns certos indignos estrangeiros usurpavam o governo de Portugal, consentindo-lhes a sua mãe, a rainha D. Teresa, querendo ela própria arrogantemente governar no lugar do seu marido, afastando o filho dos negócios do reino. Forte como era (tinha já bastantes anos e boa índole) de modo nenhum suportaria esta afronta fortemente desprezível, convocou os seus amigos e os mais nobres de Portugal, que o queriam muito mais a reinar sobre eles do que sua mãe, ou os indignos e estranhos à nação.

Travou com aqueles a batalha no campo de S. Mamede, que fica próximo do castelo de Guimarães, e foram esmagados e completamente vencidos por ele, e uns fugiram da sua vista e outros prendeu-os. Ocupou ele mesmo o governo e a Monarquia do reino de Portugal.

 

Não sabemos ao certo onde se situava o campo de S. Mamede de que fala a crónica. Os historiadores mais dados a tais detalhes muito têm discutido acerca da sua localização. Há uma tradição, não tão antiga quanto se pode supor, que diz que o campo de S. Mamede da batalha seria o grande terreiro situado do lado do Norte do Castelo, entre o Cano de Cima e o Cano de Baixo. No entanto, há uma outra tradição, bem mais enraizada no tempo, que coloca o recontro no vale de S. Torcato, hipótese que hoje se tem como mais plausível, e que Alfredo Pimenta localizou para nós:

Há, em Aldão, o chamado Campo da Ataca (hoje, parte duma propriedade que pertence a Rodrigo Pimenta, meu irmão) – nome que, segundo a tradição, lhe vem de ter sido nele que se travou o encontro bélico. Impressionam-me sempre estas deslocações dos factos, por virtude da tradição. Já a batalha de Ourique, há quem pretenda que ela se deu muito longe do local que a tradição lhe atribui. A batalha de S. Mamede não podia dar-se no vale de S. Torcato? “Junto do Castelo de S. Mamede” é uma expressão muito vaga, para que queiramos que ela signifique o lugar onde hoje é o Cano, e não possa significar a Arcela, a Madre de Deus, ou o campo da Ataca. É natural que se tomasse como ponto de referência, o Castelo, visto não haver ali, mais perto, coisa mais digna. E por isso se disse – perto do Castelo, prope Castellum, como, se o caso se tivesse dado em Vizela, por exemplo, se teria dito – perto de Guimarães.

 

S. Mamede ou Ourique?

Se, no século XII, a Crónica dos Godos colocava S. Mamede como momento fundador da nacionalidade portuguesa, durante os séculos que se seguiram a batalha de Guimarães passaria para plano secundário, sendo suplantada pela batalha de Ourique, por força do milagre que a teria antecedido, a fazer fé na lenda que começou a correr na viragem do século XIV para o século XV. A intervenção divina ajustava-se melhor à ideia de Portugal ter nascido como um desígnio de Deus que os homens não podiam anular, assumindo particular relevância em momentos em que a independência nacional andava em perigo.

Aquando da afirmação da independência nacional em 1385, passou a consolidar-se a tese da Batalha de Ourique como o momento mais importante da fundação da nacionalidade. S. Mamede permaneceria quase esquecida. Receberia a atenção, já no século XVII, de Frei António Brandão, que, no entanto, lhe dará menos relevância do que à batalha (ou torneio) da Portela do Vez, travada em data incerta, algures entre Fevereiro e Março de 1141. No entanto, este cronista também perfilha a ideia de Ourique, o momento em que Afonso Henriques terá sido aclamado, pela primeira vez, rei de Portugal, como o marco fundador da nacionalidade. Mais tarde, já no século XIX, Alexandre Herculano mergulhou nos monumentos da documentação medieval portuguesa e deu solidez à tese que dá a Batalha de S. Mamede como o início da afirmação da independência. Escreveu o historiador, no primeiro capítulo de O Bobo:

Se na batalha do campo de S. Mamede, em que Afonso Henriques arrancou definitivamente o poder das mãos de sua mãe, ou antes das do conde de Trava, a sorte das armas lhe houvera sido adversa, constituiríamos provavelmente hoje uma província de Espanha. Mas no progresso da civilização humana tínhamos uma missão que cumprir. Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse um povo, cheio de actividade e vigor, para cuja acção fosse insuficiente o âmbito da terra pátria, um povo de homens de imaginação ardente, apaixonados do incógnito, do misterioso, amando balouçar-se no dorso das vagas ou correr por cima delas envoltos no temporal, e cujos destinos eram conquistar para o cristianismo e para a civilização três partes do mundo, devendo ter em recompensa unicamente a glória. E a glória dele é tanto maior quanto, encerrado na estreiteza de breves limites, sumido no meio dos grandes impérios da Terra, o seu nome retumbou por todo o globo.


Guimarães e S. Mamede

O medievalista português que mais profundamente estudou esta época da nossa história e a figura de Afonso Henriques, José Mattoso, defende que a história de Portugal começa em S. Mamede, porque sem S. Mamede não haveria Ourique nem independência. No entanto, apesar de Herculano, a afirmação da Batalha de S. Mamede como a data da fundação da nacionalidade é relativamente recente. Durante largo tempo prevaleceu a tradição que dava a primazia a Ourique. E esta ideia também era dominante em Guimarães. Também aqui era em função da Batalha de Ourique que se estabelecia a cronologia do antes e do depois da fundação da nacionalidade, atribuindo-se a S. Mamede um papel manifestamente menor. Também aqui Afonso Henriques era designado como o “vulto grandioso de Ourique”, “glorioso vencedor de Ourique” e “heróico batalhador do campo de Ourique”. Só raramente aparecia como o “herói de S. Mamede”.

Seria preciso chegar ao oitavo centenário da Batalha para que em Guimarães se começasse a reivindicar o reconhecimento do dia 24 de Junho de 1128 como momento fundador da nacionalidade portuguesa. Por aqueles dias, escreveria Alfredo Pimenta:

A batalha de S. Mamede é o primeiro acto decisivo, claro, que não admite dúvidas, da série gloriosa de feitos do fundador do Reino de Portugal. É o nosso grito de independência, é a nossa primeira afirmação de personalidade e de vontade. Vitorioso da hoste estrangeira, Afonso Henriques ergue voo, nas suas legítimas aspirações, e sonha o talhar de fronteiras que é o seu longo reinado.

Por essa altura, já Acácio Lino havia pintado o dia da Batalha de S. Mamede, numa das salas do Parlamento português, num fresco que baptizou como A primeira tarde portuguesa, título que José Mattoso também deu a uma notável conferência que proferiu na Sociedade Martins Sarmento em 1978.

A primeira vez que em Guimarães se comemorou a Batalha de S. Mamede com cerimónias públicas assinaláveis foi no seu oitavo centenário, em 1928. E, facto curioso, até se celebrou de véspera, porque se assumiu que a batalha se travara no dia 23 de Junho de 1128. Nas décadas que se seguiram, as comemorações do dia da Batalha de S. Mamede limitavam-se a uma cerimónia religiosa na Igreja de S. Miguel do Castelo. Em Guimarães, o feriado municipal, que foi instituído pela Primeira República, calhava no dia 8 de Junho e celebrava Gil Vicente, e assim foi até que, em Janeiro de 1952, um decreto-lei extinguiu os feriados municipais aos quais não fosse reconhecido suficiente enraizamento popular.

Até ao início da década de 1970, a Batalha de S. Mamede era assinalada em Guimarães de modo quase confidencial. Basta folhear os jornais de Guimarães das décadas de 1940 ou 1950, para se perceber que a realidade era bem diferente. Todos os anos, lá apareciam notícias referentes a duas celebrações que coincidem no dia 24 de Junho: a Batalha de S. Mamede e o S. João, santo muito popular e festeiro. Por regra, publicavam-se textos, mais ou menos extensos, a lamentar que as festividades de S. João já não eram o que tinham sido. Ao lado, uma pequena caixa, quase escondida, dava conta da missa em S. Miguel do Castelo com que se celebrava o feito de S. Mamede.

A primeira vez que se assinalou o 24 de Junho como feriado municipal de Guimarães, assinalando a Batalha de S. Mamede, foi em 1974, em resultado de uma das últimas deliberações da Câmara Municipal deposta pelo 25 de Abril, presidida por Manuel Bernardino de Araújo Abreu. Mas as comemorações daquela data só começariam a assumir maior solenidade e dimensão a partir de 1983, ano em que contaram com a presença do Presidente Ramalho Eanes.

A Batalha de S. Mamede, mais do que a afirmação de um chefe predestinado, foi o resultado de uma acção colectiva que, havia muito, germinava no seio de uma dúzia de famílias do condado portucalense, que rejeitava a dominação estrangeira e aspirava à autonomia. Porque, como escreveu José Mattoso, “qualquer acção colectiva é mais fecunda e duradoura do que a mais espectacular realização messiânica por parte de figuras carismáticas e pseudo-salvadoras”.

S. Mamede permanece como uma lição para os tempos que correm.

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Nota final, em forma de pergunta e de desafio:

— Para quando, na cidade de Guimarães, um memorial aos heróis de S. Mamede?


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