Nicolinas em tempos de pandemia

 


[Cartoon de Miguel Salazar]

 

Estão de volta as seculares Festas Escolásticas dedicadas pelos estudantes de Guimarães ao seu patrono, S. Nicolau, e conhecidas como Festas Nicolinas desde que João de Meira assim as chamou. Neste ano de pandemia que teima em rondar os nosso dias, limitam-se ao programa possível, ajustado às regras do confinamento em que estamos encerrados. Para o ano regressarão, revigoradas. Porque é essa a tradição, que as Nicolinas também  a têm longa, em matéria de epidemias.

Há algum tempo, discutindo-se como poderiam ser as Nicolinas deste ano. Com a força impetuosas com que arrastam multidões, já se percebia que as festas não poderiam ser como manda a tradição, colocando-se mesmo a possibilidade do seu cancelamento puro e simples. Havia quem temesse que, não havendo festas este ano, se quebraria a tradição, correndo riscos de extinção (há uns anos, escutei de um aluno a razão pela qual jamais poderia ser quebrado o fio da tradição que obrigava que as festas se realizassem todos os anos: se não se realizassem um ano, passariam para Braga...). É aqui que a história pode servir de proveito e exemplo. Na sua longa existência, que atravessa vários séculos, houve anos em que as festas não aconteceram (em 1853, aquando da morte da rainha D. Maria II; em 1861, quando morreu o seu filho, o rei D. Pedro V; anos sucessivos na segunda metade do século XIX – até ao ressurgimento de 1895, de que este ano se assinala o 125.º aniversário; na segunda década do séc. XX), para a seguir renascerem maiores e mais robustas do que antes.

E, de terem chegado até aos nossos dias, resulta a evidência de terem sobrevivido a diversas epidemias e pandemias, algumas delas com consequências bem mais graves do que esta que por aí anda agora.

Vejamos.

Em 1855, Portugal foi atacado pela segunda pandemia de cólera (a mesma que serve de fundo ao belíssimo Amor nos Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez). Entrou em Portugal, vinda de Espanha, onde deixou um imenso rasto de morte, descendo o rio Douro a bordo dos barcos rabelos e espalhando-se a partir da cidade do Porto. Também chegou a Guimarães. Para a prevenir e atacar, foi montado na Casa dos Coutos um hospital para coléricos. Mas a cólera não impediu que se realizassem as festas de S. Nicolau daquele ano, de que conhecemos o pregão, que foi lido e declamado pelo seu autor, Sebastião da Costa Vieira Leite, um moço estudante que já ia em quase 27 anos e que ficaria conhecido como o padre poeta.

No ano seguinte, vencida em Guimarães, a pandemia de cólera ainda grassava em Portugal, impondo o encerramento da Universidade de Coimbra. Em 1856, os estudantes universitários naturais de Guimarães puderam participar nos festejos do dia de S. Nicolau, que incluíram cavalhadas e danças de rua e terminaram no Teatro D. Afonso Henriques, com uma peça de teatro, quadros vivos e baile de máscaras.

Em 1899 eclodiu no Porto uma epidemia de peste bubónica que obrigou ao estabelecimento de um cordão sanitário em volta da cidade, rigorosamente vigiado pela tropa. Ainda estava em vigor aquando das festas a S. Nicolau (o cerco do Porto seria levantado no dia 22 de Dezembro).

A peste do Porto, se não atingiu Guimarães, marcou presença de relevo nas Festas Nicolinas daquele ano. Segundo o jornal Vimaranense no dia 3 de Dezembro, domingo,


os estudantes percorreram a cidade em carros desconjuntados e precedidos dos competentes batedores e da respectiva “zabumbada” em engraçada “charge” à peste bubónica que ultimamente grassou no Porto.


Acompanhavam “uma notabilidade médica, de nome desconhecido mas cuja fama é proclamada por todo o mundo científico e literário”, tal como anunciava, no dia 1 de Dezembro, O Comércio de Guimarães, que relatou o acontecimento no seu número seguinte:


Como tínhamos noticiado no último número do “Comércio de Guimarães” realizou-se anteontem pelas 3 horas da tarde a entrada do sábio bacteriologista estrangeiro sendo esperado no Proposto por muitos académicos e bastante povo.

Feitos os cumprimentos da praxe seguiu o engraçadíssimo cortejo para a Praça de D. Afonso Henriques, onde o ilustre sábio medico realizou a conferência anunciada, a qual por várias vezes despertou a gargalhada.


A peste do também ocupou largo espaço no pregão de 1899, o quinto de Bráulio Caldas:


O Porto ressurgiu nos mapas do Universo

Ecoou em todo o mundo em aflições imerso!

A nobre democrata, a genial Invicta

Foi presa, cruelmente, e dos irmãos proscrita!


Que horrores que causou a célebre asiática!

Essa rival do Tifo a Peste enigmática

Que faz mais mortandade e mais o mundo aterra

Do que os gatos e cães na antiga e crua guerra!

O Mar parou de susto, a terra então lavou-se,

As estrelas fugindo, o sol desinfectou-se!

E olhando lá de cima, o próprio Padre Eterno

Teve horror ao bacilo e condenou-o ao inferno!


Porcos e percevejos, ratos e ratazanas,

Que mudem para a lua ou vão para Pantanas

Bichanos desta grei com eles no Vesúvio!

E, não morrendo ali, se houver outro Dilúvio

Afogados serão, dançando o balancé...

Não tornarão a entrar na Arca de Noé.


E o caso estupendo e raro e nunca visto

Suspeito de bubões! num moço aqui benquisto!

Ia custando caro aos tais caiadores

Com sentinela à vista e outros matadores,

A rezar a novena à peste, em Monteverde

Nas Goelas de Pau da nossa Vila Verde!

Foi um caso de susto horrores e cheliques!

Ia cheirando a texto ao próprio Afonso Henriques

De tanto vitimar caindo de cansaço

Metamorfoseou-se em larva do Andaço.

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Ó sábio Esculápio! ó deus da Medicina

Que o Centauro Chirão te impingiu de rotina!

Ó Galeno, Rolando, Hipócrates de outrora,

Que Atenas arrancaste à peste assoladora!

Surgi da sepultura, altivos! esqueléticos!

As maxilas batendo, em brados apopléticos.

Aguçai, estendei as vossas falangetas

Mirradas, a tremer do pó da terra, pretas,

Numa tíbia agarrai do pestífero Taurell,

Seja o crânio o tinteiro, a tinta o próprio fel

E lavrai de uma vez numa receita irónica

A sentença de morte à PESTE BABILÓNICA.


Em 1918, o mundo foi varrido pela impropriamente chamada gripe espanhola. Portugal não lhe escapou, calculando-se que terá dizimado mais de 135 00 portugueses (cerca de 2,3% da população de Portugal, à época, valor que é quase 60 vezes superior à percentagem de mortos provocados pela Covid-19 entre a população portuguesa, até ao dia de hoje).

Em Guimarães, o período mais crítico aconteceu no final do Outono de 1918, que é quando as Nicolinas acontecem. E as festas dos estudantes, que viviam anos de decadência, também sucumbiram à pneumónica. Naquele ano, em Guimarães não se festejou o S. Nicolau. No dia 8 de Dezembro, o jornal vimaranense Gil Vicente anunciava:


Morreu S. Nicolau.

Vitimou-o a pneumónica!

Foi bem ou foi mal?

Talvez fosse um bem, para não presenciarmos, mais uma vez, a triste farrapada dos últimos anos…

Todavia não felicitamos quem lhe cavou a tumba, mas enviamos sentidos pêsames aos seus verdadeiros doridos, ou sejam aqueles que, há vinte e três anos, pela mão do saudoso Bráulio Caldas, entusiasmadamente e à custa do seu rico bolsinho, desceram:

................... às entranhas da tumba,

Ressuscitando a festa a toques de zabumba!”

Morreu o S. Nicolau!

Com que mágoa o dizemos e que saudade imensa dos tempos que já lá vão!...

O tempora! O mores!


Era precipitado o relato da morte das Nicolinas: a pneumónica não as levou. Porque, como escreveu Jerónimo de Almeida no pregão de 1919,


Enquanto em Guimarães houver um estudante

Que sinta o peito arfar de vida palpitante,

Há-de realizar-se a Nicolina festa

Embora exista aí quem diga que não presta.

E as festas renasceram revigoradas das cinzas da pandemia. As de 1919 foram grandiosas. As de 1920, que assinalaram os 25 anos do ressurgimento, foram especialmente brilhantes. Desde então, não houve ano sem Festas Nicolinas em Guimarães, contrariando as sucessivas mortes que lhes anunciaram.

Outras epidemias vieram, mas nenhuma foi capaz de derrubar as festas com que os estudantes de Guimarães honram S. Nicolau. Nem mesmo a virulenta gripe asiática de 1957, a que se refere o pregão daquele ano, o décimo segundo saído da pena do mais prolífico poeta nicolino, Jerónimo de Almeida:


Isto chega a causar um certo tédio

Mesmo a quem não sentiu a gripe asiática.


E agora, com o país mascarado e quase fechado, as Festas Nicolinas dão um impressionante sinal de vitalidade. Tiveram de adaptar-se, mas mostram que há vida para além desse tal coronavirus. Não será uma pandemia que derrubará as festas de S. Nicolau de Guimarães. As Festas Nicolinas de 2021 serão as maiores e as mais belas de sempre. E mais uma vez se cumprirá o que escreveu João de Meira no Pregão de 1905,


Enquanto em Guimarães houver um Estudante

Com força para tocar, com alma, num zabumba,

A Festa viverá, altiva e triunfante,

E ninguém poderá acompanhá-la à tumba!

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5 Comentários

A Caeiro disse…
Muito, muito obrigada por esta fantástica crónica! Dadas as circunstâncias, bem precisava e creio que precisamos todos, Vimaranenses, amantes desta tradição que faz vibrar o nosso coração tão longe e tão alto, de ler algo tão enriquecedor como seu texto hoje!

Bem haja!
Unknown disse…
Parabéns Amaro!Fiquei mais informado e enriquecido. Abraço



Rogério Maciel disse…
Muito bem!
No entanto, a que "pandemia" se refere?!
A várias: à de cólera de 1855, à de pneumónica de 1918, à de gripe asiática de 1857. E ainda à epidemia de peste bubónica do Porto de 1899.
Amaro das Neves: Muitos parabéns pela excelente crónica sobre as festas nicolinas.
O seu saber é imenso...
Guimarães deve lhe muito pelos registos de "Araduca"...
Um grande abraço dum vimaranense que adora as tradições da nossa querida cidade que nos viu nascer.