Em defesa da tradição nicolina, por Hélder Rocha.


Hélder Rocha (1916-2005)
O frio já começa a bater por estas terras do Minho. Já se vai ouvindo o rufar precoce de caixas, cansadas do longuíssimo defeso que lhes é imposto. Não tarda, estão aí as Nicolinas e, com elas, o breve tempo de discorrer apaixonadamente sobre a tradição, de tirar da gaveta velhos projectos de estudo, de divulgação ou de classificação que, passada a maré, à gaveta irão tornar. Também está a chegar o tempo em que se voltarão a erguer vozes contra os atentados ao que sempre foi (se bem que, nestas festas, há bem pouco que se possa dizer que sempre foi) e em que também virão a público novos e velhos alvitres sobre a necessidade de adequar o programa das festas aos caminhos da modernidade. E também novas e velhas ideias sobre a necessidade de fazer regressar o programa das festas à sua pureza original. O costume.
E, como de costume, cá estaremos para participar nesse peditório, porque as Nicolinas, sendo como são, nos tocam a todos em cordas muito sensíveis.
Para começo de conversa, recupero um texto de Hélder Rocha, o primeiro e único nicolino-mor, publicado na crónica Esquina do Toural que assinava com o pseudónimo Pedro de Vimaranes no saudoso Notícias de Guimarães. Saiu em Dezembro de 1961, depois das festas daquele ano e trazia duas sugestões: que no ano seguinte se comemorasse a preceito o terceiro centenário das Festas (mais propriamente, da criação da Confraria de São Nicolau, em 1662) e que a Associação dos Antigos Estudantes, que ensaiava os primeiros passos, adquirisse um landau para transportar condignamente o pregoeiro e os seus acompanhantes, em cada 5 de Dezembro.
No ano seguinte, nem tricentenário, nem landau. Porque, em 1962,  as Festas Nicolinas foram aquilo que tinham que ser e de que os corajosos jovens da Comissão foram capazes. Como sempre.


Na defesa das tradições nicolinas
Esteja o tempo tempestuoso ou ameno, faça frio de rachar ou caia chuva a potes, a população citadina aglomera-se, em quantitativo abonado, todos os anos, para ver passar o “Pinheiro”, na sua noite tradicional de 29 de Novembro. É arreigado costume a que poucos não atendem, que passa de pais a filhos e que não se perde, felizmente. Ainda este ano, debaixo de temperatura agreste e que convidava ao agasalho, este Toural lindo se encheu de povo que transbordava ainda pelas ruas de Santo António e dos Palheiros, estendo-se depois pelo jardim de São Francisco até ao Campo da Feira.
Comprova tanto que as Festas Nicolinas são queridas da Cidade, que fazem parte integrante do seu viver intrínseco, que andam presas dela na saudade de muitos e na esperança de mais.
Todos os números da festança estudantil vimaranense, que prolongam por uma abonada semana, têm igual acolhimento Viu-se o mesmo na noite chuvosa das “Posses”, compreendeu-se tanto na envolvente atenção dado ao “Pregão”, evidenciou-se mais, se possível, na entrega, requintada de galanteria, das Mançãzinhas”.
Tudo isto nos garante a continuidade eterna das Nicolinas. Participaram nelas nossos saudosos avós, viveram-nas nossos queridos pais, gozamo-las nós mesmo se esperamos vê-las realizadas também pelos nossos esperançosos filhos.
Alguém que, por eventual obrigação profissional, se quedou na nossa Terra, observando-as neste ano e no transacto e que vive saudoso doa seus tempos escolásticos de Coimbra, dizia-nos, a horas altas da noite do “Pinheiro”, que elas eram manifestamente uma tradição do valia indiscutível, que caía bem em sua alma de velho estudante, a ponto de querer dar duas maçanetadas estrondosas num bombo, embora, com isso, pudesse trair uma tradição que só permito tal regalia àqueles felizes que frequentaram o ultrapassado Liceu de Santa Clara.
Por que fomos sempre nicolino, quando estudámos nesta querida Guimarães, porque nas Festas tivemos, nesses tempos saudosos, activa comparticipação, hoje queremos dedicar, como já o fizemos há um ano atrás, esta nossa croniqueta semanal a Festa a São Nicolau. Dedicamo-la, deste jeito e por desígnio de consciência, a todos aqueles com quem acamaradámos no velho Liceu, felizmente quase todos vivos duma cana, pois a morte só levou da nossa convivência, se a memória não nos atraiçoa, os queridos condiscípulos Xico Duarte, João Afonso Costa e Luís Couto, de quem fazemos saudosa e chorada evocação.
— Há quem diga que as Festas Nicolinas se desvirtuaram um tanto. É possível que a marcha do tempo, com a inevitável evolução das coisas e dos hábitos, lhe tenho trazido determinadas restrições ou falhas mais aparentes que reais. Todavia, as Festas são da mocidade e esta, na sua irreverência intangível, é capaz de pintar o diabo e a velha, ou fazer gato-sapato, como outrora, qualquer de nós, tantas tantas vezes o fizemos também. Por isso, esqueçamos algumas falhas e adornemo-las, antes, com a nossa saudade...
— Entretanto, as Festas Nicolinas podem e devem ser vivificadas. A nova Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães, há pouco legalizada, tem a incumbência de contribuir para tanto, uma vez que são os festejos nicolinos, mais que tudo, o elo tradicional que une os velhos estudantes vimaranenses das várias gerações. Só debaixo deste desígnio é que é possível reunir em fraterno convívio, como se tem feito há uns anos a esta parte, sempre mais duma centena deles, a pretexto dum abraço ou duma zabumbada.
Tivemos a gostosa oportunidade, na última Assembleia da nova Associação, de sugerir que as Festas do próximo ano alcançassem as raias de grande acontecimento. A nossa ideia baseou-se na circunstância do termos tomado conhecimento. numa busca que fizemos, de quer as Nicolinas no próximo ano. atingirão o seu tricentenário. Esta informação foi-nos dada pelo saudoso investigador vimaranense Dr. João de Meira que, em estudo que fez, descobriu documento que data a fundação da Confraria de São Nicolau no ano de 1662. Acrescenta ele ainda que não é de admitir que as Festas antecedessem a dita fundação da Confraria, sendo, por isso, de dar a estas aquela data para seu início.
O acolhimento à nossa sugestão foi unânime. E tanto leva-nos a acreditar que possamos gozar, no próximo ano, umas Nicolinas que englobem novos e velhos em comparticipação simultânea.
Então será possível a reintegração de alguns números nas linhas tradicionais de antanho, ficando o exemplo a estimular a sua realização futura.
É, por exemplo, preciso restaurar velhas posses que antecediam os festejos; ornar com trajes característicos os acompanhamentos do “Pinheiro”, das “Posses” e do “Pregão”, efectuar o costumado “Magusto”, no Campo da Feira; regressar às lindas “Danças” que se perderam no tempo...
— Uma coisa que corrói a velhada é, sem dúvida, o veículo que transporta, há anos para cá, o pregoeiro e seus acompanhantes. Estava, aqui, a primeira benéfica acção da novel Associação — tentar adquirir um landau, que ficaria sua propriedade, para esse fim. Era muito mais acertado este dispêndio do que qualquer outro subsídio a ajudar as Festas, uma vez que uma subscrição cuidada da estudantada garante a realização das Nicolinas, pois não há bolsa de velho que se não abra para auxiliar aquilo que considero, desde sempre, ainda seu ...
— Vamos todos, velhos e novos, em conjunto esforçado, vivificar a tradição vimaranense que mais arreigada está à Cidade. A obra é tão simples, que cheira a corriqueira. Comprova a sua facilidade a multidão alegre e interessada que enche o nosso Largo lindo e característico, ano após ano, no noite reconfortante de almas, que é a do “Pinheiro”...
Pedro de Vimaranes [Hélder Rocha]
Notícias de Guimarães, 10 de Dezembro de 1961


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