A. L. de Carvalho, retrato a carvão, por Abel Cardoso (1912). Propriedade de Aida de Carvalho, neta do retratado. |
Havia muito que o jornalista, historiador e defensor das causas locais António Lopes de Carvalho conhecia o pintor Abel Cardoso, seu contemporâneo. Também conhecia a sua obra e frequentava o seu atelier, pelo que a exposição de 1926 na Sociedade Martins Sarmento, que, para a maioria dos seus concidadãos, foi uma autêntica revelação, por dar a conhecer aos vimaranenses uma faceta que poucos conheciam de uma figura que, de tão pública não cidade, ninguém ignorava. É dessa revelação que fala A. L. de Carvalho, no texto que publicou em Junho de 1926 a propósito da exposição do pintor Cardoso. O retrato que acompanha esta publicação é bem mais antigo: mostra-nos A. L. de Carvalho visto pelos olhos e pela mão de Abel Cardoso no ano de 1912.
Gloriosa revelação de Arte oferecida
aos Vimaranenses
Quando
há mais de vinte anos Abel Cardoso recebia dos seus amigos e
conterrâneos mais representativos as homenagens dum banquete pelo
facto de o moço artista então haver sido nomeado professor para a
cadeira de desenho ornamental da nossa Escola Industrial Francisco de
Holanda, os seus conterrâneos, em rigor de verdade, ainda não
haviam colhido ensejo de o conhecer como pintor.
Sabiam,
é certo, que ele regressava à terra do seu nascimento depois de
haver cursado com muita distinção as “universidades artísticas”
de Paris; não tanto porque o moço artista exibisse os seus
pergaminhos de académico laureado, mas porque havendo já seu Pai
sido um pintor de retratos na nossa terra, se concluía,
ajustando-lhe o rifão: — que filho de peixe, sabe… pintar.
E
os anos foram galgando, e o moço pintor foi pintando, sem todavia se
revelar para a gente da sua terra senão como um pintor de retratos,
na maioria fazendo produções por... palpite, o que o conduziria
certamente à mecânica condição de pinta-monos se não
fosse o artista conservar e alimentar em si uma reacção interior,
que era de sua parte o íntimo palpitar, o abnegado amor à pura
ideação da Arte — a eterna e sempre grata flor da vida.
Ainda
assim, conhecido Abel Cardoso apenas como pintor de... manipanços
ilustres (e tantos são os que se penduram por essas galerias das
irmandades citadinas e inter-barreiras), mesmo assim o pintor
vimaranense não deixou de fulgurar, mormente quando a sua pupila de
delicado esteta rebuscava o palpitar da cor e da forma sobre o modelo
vivo.
Mas,
caso é que nada mais de si conhecia a gente da sua terra; pois
jamais lograra passar pelo atelier do pintor,
nem grande reparo dava quando, aqui e ali, o topava em face da
Natureza, como um asceta diante de Deus, reproduzindo em tintas de
luz e sombra toda a espiritual beleza que dimana das coisas e que os
profanos não sabem ver com aquele estranho sentimento que só a
retina dum artista surpreende e reproduz.
Foi,
pois, pode dizer-se, uma autêntica revelação essa exposição do
pintor vimaranense no salão nobre da Sociedade M. Sarmento, visto
que, Abel Cardoso, sem pressa de se mostrar na sua terra, só aos
seus conterrâneos se patenteou depois de haver exposto no Porto e em
Lisboa.
Menos
consideração pelo senso crítico da sua terra ?…
Se
para bem se saber ver uma obra de arte é preciso educação
artística e uma certa frescura de alma, certo que o escol dos
apreciadores da arte de pintar é entre nós reduzido — não tendo
pois que se levar a mal o desvio bairrista do pintor
vimaranense. Se assim não fora; se outra, na realidade, fosse a
bitola da sensibilidade artística dos vimaranenses, então – oh!
então era caso para se dar sorte que Abel Cardoso a quem a
sua terra sempre estimou, não a houvesse distinguido com as honras
da sua primeira exposição.
Bem
sei, bem sei que o pintor quis receber o baptismo em plena catedral
da Crítica, para que a nossa distinção pela sua pessoa não se
assemelhasse a um obséquio de amigos e conhecidos — escrúpulo e
orgulho bem legítimos. Foi em obediência a este sentimento de
independência moral que Abel Cardoso se recusou em 1923, por ocasião
da Exposição Industrial e Agrícola concelhia, a fazer entre nós a
sua primeira exposição — o que de certo modo foi pena, pois que
então Guimarães patentearia com desvanecido orgulho que não é só
terra de agricultores, mercadores e artífices, mas também o berço
natal e a inspiradora de um grande Pintor!
Compensa-nos,
ao menos, a satisfação que nesta hora todo o vimaranense sente de
ver o nosso artista — aquele que sabe traduzir em tintas a sinfonia
da luz e o ritmo das cores — de o ver admirado e exalçado
carinhosamente pela elite do gosto e pelo aplauso da grei, tal o
sucesso de visitantes e o sucesso de venda obtidos por Abel Cardoso
com a sua exposição, ali no salão nobre da S. M. Sarmento.
Em
verdade o pintor vimaranense esta satisfeito e nós satisfeitos
estamos, pois que, desta feita, não se aplicará à nossa terra o
dizer amargo de Francisco de Holanda, visto como soubemos mostrar que
não temos por desprezo e galantaria fazer pouca conta das
artes — nem dos artistas, podemos acrescentar.
—
Parabéns, pois, a Abel Cardoso: por
si e pela nossa terra!
A.
L. de Carvalho
Ecos
de Guimarães, 12 de Junho de
1926
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