Quadro Os Humildes, de Abel Cardoso, fotografado por Mádio Cardoso. |
Hoje reproduzimos um outro texto publicado em 1926, aquando da exposição do pintor Abel Cardoso na Sociedade Martins Sarmento. Assinado por A. F., que não estou certo de quem pudesse ser, mas era, certamente, alguém que conhecia bem o pintor. No texto, faz referência que aqui se mostra numa fotografia do arqueólogo Mário Cardoso, irmão do artista. Representa, segundo A. F., uma “velhinha corcovada, rugas na face, sem brilho os olhos, sem cor a boca, toda ela encarquilhada, a tigela entre mãos ossudas, na crença bendita da sua reza”, a Gracinha, que teria sido ama de leite de Abel Cardoso. A obra tinha o título “Os Humildes” e, segundo Abel Cardoso, neto do pintor, era um quadro que o artista muito estimava, tendo-o deixado em testamento ao seu filho mais velho, também Abel. Hoje desconhece-se o seu paradeiro, sendo possível que tenha desaparecido na década de 1970, num incêndio.
Percorrer
a vida, revolvendo-a com a centelha divina a cujo revérbero toda ela
se constata na mancha hiante dos seus abismos, na doce neblina dos
seus planos, na aresta longínqua dos montes, na linha ondulante das
águas, na alegria flutuando em espuma por sobre o mar-alto, nos
lampejos aflitivos dum sol moribundo, nos pinhais carregados de
tintas, nos caminhos pedregosos com velhos cardos ressequidos, na
frescura dos regatos cantantes cantando as trovas que desde séculos
lá deixaram esquecidas as lavadeiras, é o supremo irrevogável
destino daqueles a quem, curvada sobre o berço, a Arte pousou na
fronte o seu beijo indelével.
Abel
Cardoso é um desses bem-fadados.
O
grande mar espiritual osculou-o com maior carinho, talvez.
Maior
é, por isso, a ânsia, a sinceridade, o puro entusiasmo, o
indefectível amor com que ela caminha sempre, cumprindo a luminosa
missão que o destino lhe impôs.
Eu
conheço, desde muito, o excepcional pintor.
Alguns
quadros seus, diante dos quais me imobilizei de pura admiração e
deslumbramento — como a daquela velhinha corcovada, rugas na face,
sem brilho os olhos, sem cor a boca, toda ela encarquilhada, a tigela
entre mãos ossudas, na crença bendita da sua reza — fixaram-me na
retina uma fisionomia invulgar, um perfil brando de linhas, muito
ténue, quase recordando, sobre marfim pálido, a iluminura dum santo
em meditação.
Não
foi um capricho da imaginação que me sugeriu a bondosa, a suave
figura do meu conterrâneo.
Uma
corrente misteriosa põe em contacto com a nossa alma a obra dos
grandes artistas.
A
beleza, expressa na sua forma correcta e fria interessa-nos, mas só
em verdade é belo o que palpita em plena luz. Dos olhos ao coração
a distância ou é enorme ou absolutamente nenhuma.
Só
a emoção pode suprimir distâncias. Transmiti-la, eis a
dificuldade.
O
cinzel do estatuário, batido pelo escopro, há-de arrancar vívidas
chispas, não do aço torturado, mas do mármore ferido pelo cinzel.
De idêntico modo, o pintor, moendo as suas tintas, rasgará as
próprias veias para as diluir em sangue fumegante.
Bem
haja pois, Abel Cardoso, refugiando-se no santuário da Arte plena,
onde fulgura luz íntima, e aí compondo o ritual dos seus quadros
que trazem a sua rubrica, sempre revelando cordiais desígnios,
sinceramente expressos, quer engrandeçam o amor, quer celebrem a
natureza, para que fiquem reproduzidas nas telas num alto cântico de
cor por todo o sempre — as repintadas paisagens das Terras de
Portugal…
A.
F.
Ecos
de Guimarães, 12 de Junho de 1926
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