Abel Cardoso, Tarde Dourada (Minho). Óleo sobre tela, da colecção da Sociedade Martins Sarmento. |
A
exposição de Abel Cardoso em Lisboa, em 1924, no Salão Bobone,
teve ampla repercussão na imprensa de Lisboa e do Porto, que
publicaram textos
alusivos
à
obra do pintor vimaranense. Entre
eles destacamos o que o jornalista e escritor Artur Portela (pai)
publicou no vespertino na sua coluna Chá
das Cinco do Diário de Lisboa, onde classifica Abel Cardoso como um
dos mais puros e
mais sinceros coloristas do nosso tempo.
Chá das cinco
Um pintor
Abel
Cardoso é um dos mais puros e
mais sinceros coloristas do nosso tempo. Como S.
Francisco
de Assis, todo ele é humildade, recolhida e lírica
em frente da paisagem.
Não
a transtorna, nem a complica com obscuras técnicas. Pinta sem
esforço, sem revelar a impotência criadora. Não é como aqueles
que abocanham a beleza sem conseguir arrancar-lhe parcelas de sonho,
de luz
e de absoluta
e definitiva transfiguração. A sua arte é uma rima da sua alma.
Canta e seduz sem deslumbrar, acarinha e subjuga enternecidamente
a retina, como se ela estivesse imóvel
na contemplação
da vida dos corpos e dos seres, banhados de éter
e da divina indolência
da quietação.
Abel
Cardoso é o pintor do Minho, desse Minho
oftálmico de luz, com gerânios vermelhos
e cravos sangrentos, ao correr dos valados;
vinhas esmeraldinas, onde o sol se quebra em topázios de luz —
desse Minho que é um açafate de
flores, um altar campestre, uma écloga
de Bernardim Ribeiro, que cabe na garganta duma mulher. A terra ali
não
tem perspectivas.
É
um contínuo
refluir de vagas
da verdura, com pequeninos canteiros de searas, com
estreitos
ninhos de latadas.
Cada
vaga
de
verdura, cada canteiro de latadas
— deu uma mancha a Abel Cardoso. São
condensações
de luz, em céus
embriagados de poente;
aqui um apontamento de aldeia batida pelo
sol
do meio dia; além, a mancha
azul
de
um regato; ou apenas um céu,
ou apenas um
caminho, onde
há
beleza divina e campestre, tocada
de
alma, de sentimento,
de panteísmo.
Alguns
quadros são de uma exuberância
alacre
e sadia de cor,
um esmagamento de tintas, distribuídas em pinceladas largas.
Na
figura,
Abel Cardoso agradou-nos menos. A sua técnica simples transparece,
dando-nos a exactidão do modelo, o volume das formas, a expressão
real, mas nunca a alma, o subjectivo, a luz interior das figuras.
Lindos,
originais, dois infantis sorrisos de criança
a brun
rouge,
Abel
Cardoso tem uma personalidade — uma personalidade de sonho ingénuo,
cantante, melodioso, simples, onde a vida anda
em flor, luminosa
e faiscante. A exposição do Salão Bobone — lança um artista
que, senão atingiu ainda a linha definitiva da sua arte, adivinha-a
já
no horizonte.
Diário
de Lisboa, 4 de Novembro de 1924
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