O pintor Abel Cardoso, por Eduardo de Almeida (1926)

Abel Cardoso, Canto do meu atelier. Pintura a óleo que esteve patente na exposição de 1926.
Da colecção da Sociedade Martins Sarmento.
Em 1925, Abel Cardoso voltou a expor no Porto, novamente no átrio da Misericórdia. A exposição terá durado escassos dias: inaugurada no dia 10 de Junho, tinha o dia 15 daquele mês como data prevista para o encerramento. Seria necessário esperar até ao ano seguinte para que o pintor, então director da Escola Industrial Francisco de Holanda, se aventurasse a expor pela primeira vez na sua terra natal, Guimarães. Seria inaugurada no dia 3 de Junho de 1926, com encerramento previsto para o dia 20 daquele mês. Impossibilitado de estar presente na inauguração da primeira mostra pública em Guimarães da obra do seu amigo, cujo atelier frequentou, por estar ausente da cidade, o escritor Eduardo de Almeida publicou no jornal Ecos de Guimarães um artigo em que traça o perfil do pintor, que costumava ver a trabalhar nas horas de luz, curvado sobre o cavalete, meticuloso de cuidado profissional, embebendo-se de sentimento artístico com a sua cabeleira à Daudet.

Uma exposição de quadros

Algumas palavras de uma carta de Guimarães trazem-me a boa nova de que Abel Cardoso vai, nos primeiros dias de Junho, expor na Sociedade Martins Sarmento. Sorri-me, alegra-me a informação. Com entendimento nobremente honesto da sua dignidade de artista, Abel Cardoso apresenta-se ao juízo crítico dos seus conterrâneos depois de julgado em exposições anteriores em Lisboa e Porto, onde recebeu, afinal, a justa consagração devida ao seu real valor. A cidade de Guimarães, sem receio de parcialidade por um dos seus mais talentosos filhos, que é também um integro carácter, terá certamente íntimo prazer em abraçar o artista já glorificado em cenas de opinião pública maiores e mais ingratas pela exigência e pela concorrência, sabendo aquele que adquirir um quadro com o nome do pintor é de facto uma garantia da obra.
Já vai longe o tempo em que costumava demorar-me pelo atelier de Abel Cardoso. Mas estou-o vendo ainda trabalhar nas horas de luz, curvado sobre o cavalete, meticuloso de cuidado profissional, embebendo-se de sentimento artístico com a sua cabeleira à Daudet. O Abel concentrava a atenção de uma forma curiosa, externamente paradoxal, porque era conversando e a sua conversa saía sempre pitoresca, uma anedota de espírito, em que as figuras se desenhavam com movimentos e as frases ressaltavam em traços de caricatura.
Atravessa, agora, um período farto de trabalho, e, senhor dos meios de execução, esse trabalho segue fácil, o tempo desdobra-se em possibilidades e consegue aumentar notoriamente a sua obra. Período de plena posse de faculdades picturais e manejo téenico, por isso mesmo perigoso quando o artista se não arreceia do objectivo a vencer e assim em automatismo se enquadra no mesmo processo e como se repete igual em obras de diferente carácter e intenção. Abel Cardoso, tendo alcançado um magnífico equilíbrio entre os vários e difíceis requisitos do artista pintor, e encontrado a melhor maneira, aquela que vinha da inspiração natural e a educação artística desenvolveu, cultivou e aperfeiçoou, tem conseguido em grande parte vencer essa dificuldade que de facto resulta de uma suposta facilidade.
Já ouvi discutir se Abel Cardoso seria um adorador da luz forte e do colorido intenso ou um meigo elegíaco, cuja tristeza, espontânea e indominável, embala a própria clara incidência do sol numa parede de branco. Naturalmente porque, na obra de Abel Cardoso, as duas formas se encontram e fere na retina o brilho de certas paisagens, como noutras, em crepúsculo de Outono ou pelo ar húmido de tardes de Inverno, um arrepio de ternura passa melancolicamente. Creio antes, sem qualquer espécie de autoridade na contenda, que a diversidade não é psíquica, que o modo de artista não é inteiramente nem um nem outro. Mais simplesmente lhe encontro muito vivo um profundo sentimento da paisagem do Minho, onde certos dias reverberam em plena chamaceira de sol fazendo cantar e bailar as cores, essas, mais raras, porque outras muitas são de uma luz mais suave, de meias-tintas, emusguecidas, de um doce recolhimento à sombra, mais frescas as flores, delineados os contornos, esbatidos os tons fortes, dando à alma uma nostalgia de amor e certo perfume de lágrimas às canções mais risonhas.
Conheço e recordo, vendo-os aqui em minha frente, certos quadros do Abel em que a luz irrompe e grita, se estorce e afogueia e depois se vem graduando e decaindo, cansada e lírica, como do caminheiro ao fim da longada, e já pelo crepúsculo, envolta de tristeza, se embacia e enternece numa saudade imensa. Então, no fundo glauco das águas, dormem os beijos e na sombra dos muros suspiram as palavras de amor que os namorados passaram conversando. E quando o frio do Inverno despeja as árvores, os carreiros se empapam de lama, esverdecem as leiras e o céu é uma nuvem de água, vem-nos a pena dos que sofrem sem abrigo e sem pão, dos cavadores e dos humildes, da gente que não conheceu nunca o bom sol da alegria e da fortuna.
Não posso estar em Guimarães, infelizmente, ao abrir da exposição. Teria sincero contentamento em dizer duas palavras diante das telas desenvolvendo a forma como aprecio a sua pintura e a razão por que admiro o artista — assim, e ao menos, vai daqui um abraço estreito e amigo.
Eduardo de Almeida.
Ecos de Guimarães, 22 de maio de 1926

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