Aspecto exposição de pintura de Abel Cardoso no Salão Nobre da Sociedade Martins Sarmento, em 1926. |
A primeira vez que o pintor Abel Cardoso, nascido em Guimarães em 1877, expôs na sua terra natal, foi em 1926, no Salão Nobre da Sociedade Martins Sarmento, onde já tinha obra sua – os frescos dos varandins abobadados da fachada principal do edifício concebido pelo arquitecto Marques da Silva. A exposição foi um sucesso. Os jornais da terra dedicaram-lhe muito espaço, foi muito visitada e a maior parte dos quadros expostos foram vendidos. Abel Cardoso, figura destacada em Guimarães pela sua condição de homem público e director da Escola Industrial Francisco de Holanda, alcançava, finalmente, a consagração da sua obra artística na terra que o viu nascer, como se percebe pelo texto que a seguir se transcreve do jornal republicano vimaranense A Razão de 10 de Junho de 1926. As fotografias que o acompanham, gentilmente disponibilizadas por Abel Cardoso, neto homónimo do pintor, são um curioso testemunho de um modo de preenchimento do espaço espaço expositivo manifestamente datado.
Outra perspectiva da exposição de pintura de Abel Cardoso no Salão Nobre da Sociedade Martins Sarmento, em 1926. |
Impressões da Exposição de Pintura de Abel Cardoso
É sempre espinhoso o fazer a reportagem do que se viu ou do que foi ouvido, de maneira a comentar toda-a-gente.
Umas
vezes, geram-se invejas maldosas e cobardes a desejarem deprimir quem
escreve; outras, a mordacidade é duma violência invulgar, e vá de
curvar-se ante os epítetos de inconsciente e de audacioso, tão
habituado se está ao “tu dis toujours les mots qu’il ne tient pas
qu’on dise (!)”.
Contudo,
confiando na nossa sensibilidade artística, entregues à imaginação
visual de bons contempladores e desprezando o que se possa vir a
dizer, tentaremos a letra para esta serenata, o melhor conjugando a
palavra aos lineamentos melódicos que, de há muito, nos vinham
deleitando.
E,
esta deleitação, elegíaca como afectiva, cresceu rápida e
velozmente. Embrenhamos-nos na saramelgada de cores, e a pouco e
pouco, vêem-se estas a tomar forma, compondo conjuntos maravilhosos,
criando ideias tão puras, como vívidas.
Transportemos-nos
à realidade. E o rio é um espelho do céu como o fumo dos casais é
a ferrugem que ataca este mesmo espelho.
A
um sorriso da Primavera a Natureza aparece engalanada, de capa de
esperges, rica e vistosa. Há um grande cântico de saudade…
Distingue-se perfeitamente a música dos passarinhos, a monódia das
águas da levada e a orquestração do pinheiral. Experimenta-se uma
frescura amenizadora, semelhando a frescura dos lameiros e à luz do
poente encantador, o cantinho rústico, como aquela morada humilde,
onde os humildes se abrigam numa meditação religiosíssima.
Depois…
com a estiagem surge o desejo de paisagens novas – ambição de
novos desafios sensitivos.
Com
o levantar da bruma, o pano sobe. E os nossos olhos são o fiel reprodutor daquilo que se torna impossível descrever…
Sente-se
e não se explica! Gosta-se e não se sabe porquê!?…
Numa
agonia santa, o mar ruge ao longe, e, num meigo bulício, é cão que
se arrasta até aos pés do dono – a praia. Então, a paisagem é
poalha doirada com incrustações negras de penedia...
Porém,
ao findar da tarde, na hora em que a abóbada celeste se transforma
num leque inimitável, o mar sente-se ferido na sua grandeza, mesmo
vexado, e ruge, ruge ferozmente ao ponto de quebrar-se nas rochas e
de nos expor a soberba renda da sua espuma irisada.
Mas, ai!... o ar turva-se e forçamos-nos a voltar para casa, receando o
tempo incerto, uma
volta
de tempo...
O
céu enche-se de brancos farrapos e já não é totalmente azul; o
sol é mais; pálido e beija de fugida os montes, o outeiro e as
devesas; as árvores despem-se das folhas e das flores: as aves
voltam aos ninhos ou emigram; enfim, é chegado o Outono e a
plenitude da cor não é mais que um esfumilhado...
É
a paisagem triste, nimbada de luz desmaiada, doentia…
Continuamos
a ouvir as razões do nosso sentimento mais forte, sempre entregues à
contemplação, e a finalidade não chega mais !
Haja,
muito embora, uma quebrada na sombra, um charco, terras fundas, uma
ponte velha a mirar-se numa corrente caudalosa, ou, os últimos
sopros de o Inverno agonizante, embora haja tudo isto, os lineamentos
melódicos da serenata já são ritmados pelas evocativas sugestões
da cor, pelo lirismo do gosto, pela flexibilidade da beleza e pela
elegância das linhas, e revoa, em todos os diferentes ambientes onde
é necessária a nossa presença.
A
impressão arreigou-se profundamente no nosso espírito, a
sensibilidade vibrou e a revelação do belo gerou um culto maior
pelo rincão minhoto — tal fonte é essa em que saciamos a sede
dos desejos e cuja água canta numa qualquer teia pintada por Abel
Cardoso.
Boa
técnica, pincel firme e facilidade de combinação, Abel Cardoso
possui uma retina maravilhosa, que nos assombra, é um português às
direitas que honra a terra e a grei, e, mais ainda, é um vimaranense
ilustre.
Ignoramos
da sua classificação: se um pintor nacional ou se um poeta
nacional...
A
sua obra é uma honra para a pintura portuguesa.
Os
motivos dela são uma glória para a poesia portuguesa.
C.
A
Razão, 10 de Junho de 1926
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