Fernando Távora, por Miguel Salazar |
Num
dos primeiros dias de Janeiro de 1979, Fernando Távora assinou o contrato para a
elaboração do Plano Geral de Urbanização de Guimarães (PGU), encomenda da primeira Câmara
Municipal eleita em democracia, presidida por Edmundo Campos. Seria entregue três
anos depois, em Janeiro de 1982, quando a Câmara já mudara de mãos, sendo então presidida
por António Xavier. Procurando na história um futuro para a cidade, o PGU de
Fernando Távora lançou as bases de um processo de intervenção e de requalificação
cujo corolário seria, ao fim de duas décadas, a consagração de Guimarães, pela
UNESCO, como Património Mundial.
Ao contrário do que hoje possa parecer, a proposta de Fernando Távora esteve longe de ser consensual, abrindo grande discussão na sociedade vimaranense. Estava-se num tempo em que, para muitos, a ideia de progresso e de modernidade não era compatível com a preservação do património e das vivências associadas à cidade velha e, muitas vezes, visivelmente degradada. Felizmente, ao contrário de outras cidades Guimarães, ou, mais propriamente, o seu centro urbano, resistiu à pressão do camartelo e das betoneiras que por aqueles dias continuaram a desfigurar irreversivelmente outras cidades, algumas delas suas vizinhas, e não foi porque em Guimarães não houvesse quem alimentasse idêntica pulsão modernizadora, com a ambição de fazer crescer a cidade, transformando-a numa metrópole com mais de 100.000 habitantes. Felizmente, por aqueles dias Guimarães era governada por uma proto-geringonça, já que os seus eleitores tiveram a inteligência de não gerar maiorias absolutas, evitando colocar na mesma mão a faca e o queijo das grandes decisões municipais. E, quando aconteceu a primeira maioria absoluta, já a prioridade da requalificação do património arquitectónico e urbanístico tinha ganho a batalha e estava consensualizada entre todas as forças políticas locais.
Ao contrário do que hoje possa parecer, a proposta de Fernando Távora esteve longe de ser consensual, abrindo grande discussão na sociedade vimaranense. Estava-se num tempo em que, para muitos, a ideia de progresso e de modernidade não era compatível com a preservação do património e das vivências associadas à cidade velha e, muitas vezes, visivelmente degradada. Felizmente, ao contrário de outras cidades Guimarães, ou, mais propriamente, o seu centro urbano, resistiu à pressão do camartelo e das betoneiras que por aqueles dias continuaram a desfigurar irreversivelmente outras cidades, algumas delas suas vizinhas, e não foi porque em Guimarães não houvesse quem alimentasse idêntica pulsão modernizadora, com a ambição de fazer crescer a cidade, transformando-a numa metrópole com mais de 100.000 habitantes. Felizmente, por aqueles dias Guimarães era governada por uma proto-geringonça, já que os seus eleitores tiveram a inteligência de não gerar maiorias absolutas, evitando colocar na mesma mão a faca e o queijo das grandes decisões municipais. E, quando aconteceu a primeira maioria absoluta, já a prioridade da requalificação do património arquitectónico e urbanístico tinha ganho a batalha e estava consensualizada entre todas as forças políticas locais.
Tudo
isto foi obra, também, de um imenso trabalho de divulgação e de esclarecimento,
onde a visão culta e socialmente comprometida de Fernando Távora ia vencendo
resistências e ganhando entusiastas para a causa da defesa do património de
Guimarães. Foi essa voz que reencontrei, por estes dias, ao reler o que então escrevi no jornal onde comecei a publicar textos meus, O Povo de Guimarães (um projecto interrompido, que há dias completou, em silêncio, quatro décadas). Entre eles, estavam duas reportagens de conferências do arquitecto
Távora, em que tratou do património e da história de Guimarães.
Aqui
fica a primeira, com o relato de uma conferência sobre o património e a sua defesa, proferida na noite de 2 de Maio de 1980, na Biblioteca Calouste Gulbenkian (edifício dos antigos Paços do Concelho, na Praça da Oliveira) e promovida pela mais popular e menos elitista associação cultural de Guimarães, o Centro Infantil e Cultural Popular (CICP).
Conservação
do Património — Problema de sobrevivência
— Afirmou
Fernando Távora em colóquio promovido pelo CICP
“Fenómeno
universal, que unifica o mundo sem conhecer fronteiras, geográficas ou
políticas, o problema de conservação do património é, acima de tudo, um
problema colectivo, cuja resolução assenta, antes do mais, na sua divulgação” —
declarou o Arquitecto Fernando Távora, professor na Escola Superior de Belas-Artes
do Porto, no colóquio “Do Património e da Sua Defesa”, realizado na Biblioteca Gulbenkian
na passada Sexta-feira, numa iniciativa do Centro Infantil e Cultural Popular.
Fernando
Távora iniciou o colóquio, perante uma sala cheia de público interessado, com
uma dissertação em tomo do conceito de património e da necessidade de o preservar
que agora se coloca. Numa segunda parte da sessão, esta intervenção inicial foi
explicitada com a projecção de diapositivos referentes a Guimarães.
O que é o património?
O
orador começou por salientar que “à ideia do património anda associada uma ideia
de ancestralidade de criação feita no tempo e transmitida de pais para filhos.
E uma ideia de criação colectiva que se realiza ao longo dos anos e dos séculos
e que passa de todos para todos, confundindo-se normalmente com a ideia mais
generalizada de Cultura.
“Os
valores do património são uma criação permanente, criação profundamente
dinâmica, tal como o é o homem, seu criador. O tempo dá ao património o seu
valor de qualidade: só a qualidade sobrevive ao tempo.”
Desta
forma, o património é um fenómeno extremamente complexo em “que tudo tema ver
com tudo”.
Não
se pode falar em património sem o atender em todos os planos em que ele age
sobre a actividade do homem: físico, psíquico, financeiro ou social.
Um exemplo usado por Fernando Távora para ilustrar a necessidade de uma nova atitude para o património: a antiga igreja românica de Joane, com a estrutura de betão da nova a avantajar-se na paisagem. A igreja velha seria demolida, ilegalmente, quando amanhecia o dia 11 de Março de 1978.
Porquê preservar o património?
A
necessidade de conservação do património surge quando o homem toma consciência
de que o património existe como condicionante da sua actividade.
“Os
homens respiram sempre, mas só se lembram que respiram quando se sentem
asfixiados. No mesmo sentido, só se preocupam com a defesa do património quando
ele entra num estado de degradação tal que ameace constituir um óbice à
estabilidade da vida do homem. Conforme avançamos no tempo, aumenta cada vez
mais a rede de problemas e a sua intensidade.”
Da
necessidade de defender o património greco-romano surgiram na Itália da
Renascença os primeiros museus. O crescimento desta ânsia de conservação tem
sido acompanhado pela evolução da ideia de museu, havendo hoje autênticas
cidades-museu, totalmente protegidas por legislações especiais com que se
pretendem conservar os valores patrimoniais.
“O
homem, como qualquer outro animal, tem necessidade de possuir um determinado território
que lhe dê garantias de estabilidade física ou psíquica. No actual estado de
coisas, o processo de evolução realiza-se com tal rapidez que o homem não pode
acompanhar o desfazer do seu território sem que se levantem problemas não
apenas físicos, mas também de ordem psicológica. O homem sente que a sua
relação com o espaço se torna instável no momento em que desaparecem as
paisagens tranquilas que o protegem. Será da consciencialização das pessoas
para a gravidade desta situação que poderão partir os primeiros passos no
sentido da sua resolução.”
Esta
última afirmação foi ilustrada pelo Arq. Távora com um exemplo concreto de
recente má-memória:
“Quanto
ao que se passou recentemente com a Igreja Românica de Joane, toda a gente se
interroga como foi possível encostar uma máquina a um Monumento Nacional e
destruí-lo em duas ou três horas. Este caso é da responsabilidade tanto do
padre que mandou derrubar a Igreja para construir uma “nova”, como do
empreiteiro, como de todos aqueles que, pela sua participação activa ou pela
sua indiferença, permitiram que tal destruição se consumasse.”
Foi
denunciada a corrida em que hoje participam muitos comerciantes da nossa cidade
no sentido de substituírem as portas das suas lojas por antiestéticas
caixilharias de alumínio. Denunciada foi também a colocação de persianas em
edifícios antigos, desvirtuando-os. “Este é essencialmente um problema de
consciência, em que as pessoas são colocadas perante a necessidade de
solucionarem certas carências dos edifícios antigos encontrando formas que não
deturpem as suas características.”
Como preservar o património?
“O
grande problema do como está no
sabermos que possuímos um património e que temos necessidade de o conservar.
“O
problema da conservação do património está ligado a um problema de
criatividade, a um problema de criação de novo património, uma vez que não se
podem tomar como independentes os problemas do património existente e os
problemas da criação de um novo património. O conceito de património é um conceito
que se deve desenvolver consoante se desenvolve a cidade.”
De
seguida, com a projecção de diapositivos, o Arq. Távora forneceu elementos
referentes ao projecto de Plano Geral de Urbanização da Cidade, pelo qual é
responsável.
“Grande
parte do que ultimamente tem sido construído não possui valor patrimonial. Guimarães
dispõe de um casco histórico importante, com uma grande unidade medieval, fazendo-se
o desenvolvimento sentir, felizmente, quase exclusivamente na zona exterior.
Este facto é notável no que se refere à generalidade das cidades portuguesas.”
A
zona de interesse patrimonial concentra-se na zona medieval, dispersando-se nas
outras zonas da cidade. Com o novo plano de urbanização pretende-se, como
afirmou Fernando Távora, alargar a zona de qualidade a toda a cidade,
criando-se um valor arquitectónico moderno, até aqui inexistente em Guimarães.
“A
ideia de património arquitectónico é muito mais larga do que a concepção de
monumento nacional. Uma pequena casa pode ser também um valor patrimonial
Muitos dos prédios das zonas hoje mais degradadas da cidade devem ser
conservados. Todavia, a conservação do património não tem nada a ver com a
conservação do subdesenvolvimento, implicando uma revalorização social
profunda. Nas casas agora degradadas podem-se criar belíssimas condições
habitacionais sem que se altere a estabilidade necessária à vida humana.”
O mito da cidade moderna
Não
foi a continuação da estabilidade que se procurou quando, por exemplo, se
ordenou o abate das tílias da Avenida D. João IV, o que, para além domais,
tirou todas as características de avenida àquela rua. Pode-se colocar agora a
questão: será que os seus habitantes se sentem favorecidos?
“A
cidade antiga tem um processo de desenvolvimento muito mais harmónico e humano
do que a cidade moderna. Hoje, o “mito da cidade moderna”, e o correspondente “complexo
da cidade antiga” têm causado graves problemas ao desenvolvimento da nossa
cidade. A situação de desconforto que hoje se depara nas Quintãs, por exemplo,
é extremamente chocante. Quem aí vive nos dirá daqui a uns anos se se sente
feliz com o local da sua residência.”
Como
é que uma pessoa pode viver feliz no meio duma paisagem inacabada?”
O convento-pousada da costa: o exemplo
As
obras actualmente em curso de adaptação do convento da Costa a pousada são
exemplares de como se deve proceder na preservação de monumentos sem que eles se
tornem totalmente inúteis. Aqui, os estudos arqueológicos, as pesquisas e as
investigações assumem urna importância fundamental no andamento dos trabalhos
de defesa do património.
“No
Convento da Costa pode-se ver claramente como a adaptação de um edifício antigo
a funções novas e o seu acrescentamento de novos edifícios se podem fazer sem
destruir a sua qualidade arquitectónica e monumental.”
* * *
Fernando
Távora terminou o colóquio com a projecção de uma série de diapositivos tirados
Castelo, em que se dá uma visão panorâmica da cidade, demonstrando-se
claramente tudo o que havia sido dito. Ai ficaram patentes os contrastes de
Guimarães. Aqui, a par de monumentos históricos de grande valor patrimonial,
surgem-nos algumas das mais gritantes aberrações arquitectónicas, que nos
demonstram como não deve ser a cidade do futuro.
António Amaro das Neves
O Povo de Guimarães, 8 de
Maio de 1980
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