Terminamos a peregrinação pelas freguesias do antigo termo de Guimarães com as duas que estiveram, durante séculos, sujeitas à servidão da vassoura, que actualmente pertencem ao concelho de Braga, Cunha e Ruílhe.
A servidão da vassoura é uma história obscura,
com muitos aspectos mal explicados. Em 1892, o Padre Torcato Peixoto de Azevedo
conta-a assim, no capítulo 97.º das suas Memórias Ressuscitadas da Antiga
Guimarães (pp. 414-414 da edição de 1845):
Para coroa de todos os
privilégios desta vila, farei menção de uma Provisão de el-rei D. João o 1.°, à
qual em nenhuma parte há outra semelhante. Quando este senhor tomou a cidade de
Ceuta em 1414, repartiu as estâncias das muralhas pelos moradores das cidades,
e vilas que o acompanharam nesta empresa: sentidos os Mouros da perda de sua
cidade, se juntaram em grande número, e vieram logo sobre ela, e fizeram o
maior ataque pela estância que guardava a gente de Barcelos: ficaram estes tão
assustados, que fugiram, desamparando aos Mouros o lugar que lhe estava balizado.
Os moradores de Guimarães, que guardavam a estância contígua se dividiram logo
em dois terços, e com um foram lançar fora os Muros do muro que já ocupavam, e
com o outro ficaram defendendo o lugar que se lhe tinha nomeado.
Agradeceu el-rei esta valorosa
acção com lhes passar uma Provisão em 1517, para que os moradores da vila de
Barcelos viessem nas vésperas de todas as festas que a câmara desta vila
costuma celebrar, varrer-lhe a Praça Maior, Padrão, e Açougues, com um barrete
vermelho na cabeça, e uma banda ao ombro, da mesma cor, e a espada à cinta, e
um pé calçado, e outro descalço, com vassouras de giesta que traziam de suas
casas, para fazerem esta limpeza. Acabada ela, entravam na câmara, onde os
esperavam os ministros, e em livro particular lhes faziam seus registos, e se
faltava algum sem mandar certidão de causa justa, era condenado em seis mil
réis para os encargos do concelho. Continuaram os moradores de Barcelos nesta
servidão mais de sessenta anos até que não havendo quem a quisesse habitar,
veio o duque de Bragança D. Jaime, senhor da dita vila pedir à câmara, e povo
desta vila quisessem fazer com ele um contracto, em que lhe largaria as
freguesias de Cunhe e Avinhe para que os moradores delas continuassem aquela
servidão: porque aquela sua vila se ia despovoando da nobreza que tinha: e como
seu requerimento era justo se fez o contrato, que se guarda no cartório da
câmara, e assim os moradores das ditas freguesias ainda continuam a limpeza
dita do mesmo modo. Bem trabalhou o doutor Gabriel Pereira de Castro para
livrar as ditas duas freguesias, por ter nelas certos caseiros que faltaram à
servidão, e que haviam sido condenados: saiu a sentença contra os ditos
caseiros, a qual se guarda no cartório da câmara.
[O texto do padre Torcato
tem dois erros, provavelmente em resultado de uma transcrição deficiente: a
provisão de D. João I a que se refere será de 1417 e não 1517 (o Mestre de Avis
faleceu em 1433) e as freguesias que o duque D. Jaime terá passado para o
concelho de Guimarães são Cunha e Ruílhe e não Cunhe e Avinhe.]
A obrigação dos moradores
de Cunha e Ruílhe virem varrer as ruas de Guimarães nas vésperas das festas da
vila existiu mesmo e vigorou até ao tempo de D. João V. No entanto, são muitas as
razões que levantam dúvidas quanto à sua origem. Avanço com duas. Por um lado,
nada se encontra nos relatos da tomada de Ceuta em 1415 que confirme o que diz
esta tradição, nomeadamente a repartição das “estâncias das muralhas pelos
moradores das cidades e vilas”. Por outro, as freguesias de Cunha e Ruílhe não
transitaram de Barcelos para o concelho de Guimarães, mas sim do concelho ou
julgado de Penafiel de Bastuço, a que pertenciam.
A memória paroquial de S. Miguel da Cunha é muito interessante e não ignora aquela tradição ultrajante.
S.
Miguel de Cunha
Relação
noticiosa da freguesia de Cunha que, por ordem do Muito Reverendo Senhor Doutor
Desembargador e Provisor da cidade de Braga, reverendo Manuel António Coelho,
abade da dita igreja.
Chama-se
esta freguesia Cunha. Ignoro a etimologia ou causa que tiveram para assim lhe
chamarem, porque acho homens que me dizem tomara o nome de uns fidalgos
chamados fulanos da Cunha, naturais de França, que residiram nesta, mas não sei
com que causa, isto é, não sei se por desterro, se por outra qualquer causa.
Parece-me ser isto de pouca ou nenhuma consideração. Outros me afirmam (e
parece que com alguma razão, por isso a eles me inclino) que tomaram o nome dos
fidalgos de Canaveses, os quais, entre os apelidos que têm, contam também este
de Cunha; por lhe pagarem pensões todos os moradores dela, e na mesma haver
ainda pessoas que se lembram de terem os ditos fidalgos umas casas nesta
freguesia, no lugar das Quintães, e nelas costumavam recolher as suas pensões.
Hoje, nem os alicerces permanecem.
Fica
na província de Entre-Douro-e-Minho, retirada da cidade de Braga légua e meia,
para a parte do Sul. Arcebispado e Comarca de Braga, termo de Guimarães., não
obstante ficar esta e a freguesia de São Paio de Ruílhe ambas dentro do termo
de Barcelos. A causa direi com poucas palavras. No célebre conflito de Ceuta,
ocuparam os de Guimarães o lugar que os de Barcelos, por inertes, desampararam.
Por esta acção foram os vereadores de Barcelos multados na pena de irem varrer
as ruas de Guimarães, o que com efeito exercitaram alguns anos, termos em que
ninguém queria ser vereadores em Barcelos. Cuidaram eles em expelir de si este
insuportável jugo, e deram estas duas freguesias para Guimarães, com o encargo
de irem exercer esta vil servidão. E para os moradores aceitaram este ónus
(dizem) lhes deram, ou alcançaram, uns grandes privilégios, de que hoje só
remanesce a memória.
Exercitaram
por este por espaço de trezentos e tantos anos. Varriam com um capuz, ou
morrião, na cabeça, feito de panos de várias cores, tão comprido que chegava,
estendido, pelas costas abaixo, ao meio do corpo. Um pé ficava descalço, e
outro calçado, com um boldrié ou talabarte de palha, e nele uma espada, da
parte direita. Varriam sete vezes no ano, dois de Cunha e um de Ruílhe, cada
vez. E se algum faltava, era condenado na exorbitante pena de oito mil réis.
Agravados assim com tão insuportável jugo, recorreram ao rela patrocínio do
senhor D. João quinto, que santa glória haja, o qual se dignou expedir um
decreto em que os absolvia da escravidão e mandou pôr silêncio perpétuo em
semelhantes matérias, e não fossem ouvidos os de Guimarães, que fortemente se
opunham com o fundamento de estarem na posse de irem varrer as suas ruas, com o
qual obtiveram sentença a seu favor. Esta a notícia que nesta matéria pude
alcançar.
É
esta freguesia de el-rei meu senhor. Tem noventa fogos, ou vizinhos. Pessoas de
sacramento, menores e ausentes trezentas e quinze. Está situada num vale entre
dois montes pequenos, um da parte do poente, e ao Nascente outro, ambos cercam
a freguesia da parte do Norte, e depois correm direitos ao Sul. No fundo e
fralda do da parte do Nascente, está a igreja junto à freguesia de Arentim,
tanto que nas costas da dita igreja, a coisa de doze passos, fica o marco que
divide esta daquela.
O
orago é São Miguel. Tem três altares. Na capela-mor, um, onde está o Santíssimo
Sacramento. Na parte do Evangelho e na tribuna está São Miguel, numa peanha, e,
da outra parte, na mesma tribuna, e noutra peanha, está o Menino Jesus. Na
igreja, os outros dois. O da parte do Evangelho tem duas imagens de Nossa
Senhora do Rosário, uma grande, e pequena outra. O da outra parte tem uma boa
imagem do Senhor Crucificado, da parte direita tem S. Sebastião e, da esquerda,
Santo António, que faz muitos milagres. Toda está suficientemente ornada, e
tanto o corpo da igreja, como a capela, estão pintadas.
Tem
duas confrarias, uma do Santíssimo Sacramento, já muito antiga. Tem missa
cantada a cantochão e, alguns anos, a música, todos os segundos domingos de
cada mês. E, no segundo de Julho, se costuma festejar com aquela grandeza que
permitem estas terras, e por esta causa concorre nesse dia muita gente a esta
igreja. Outra é da Senhora do Rosário. Também tem missa cantada a cantochão
todos os quartos domingos de cada mês. E, no quarto de Maio, se festeja com
mais aplauso, e por essa causa nesse dia concorre muito povo a esta igreja,
como também por se tirar nesse dia para os irmãos, por sorte, duas dúzias de
rosários, e nos mais quartos domingos uma dúzia, pagos todos à custa da
confraria e oficiais.
Algum
dia teve a confraria de São Sebastião e outra das Almas, já ambas hoje estão
acabadas.
Tem
um sino, que pesará seis, até sete, arrobas, com cujo toque se afugentam as
trevas. Não sei se é virtude que São Miguel lhe tenha dado, se o atribua à
actividade das suas vozes, pois nelas excede aos da sua esfera. Tudo consta da
experiência.
É
abadia, apresentação do Real Padroado. Rende para o abade duzentos mil réis, e
para a Santa Igreja Patriarcal de Lisboa a quarta nona parte de todos os
rendimentos.
Logo
junto à igreja ficam as casas da residência com os passais, que constam de devesas
de carvalhos e terras que se costumam lavrar e nelas semear milho grosso e dos
mais legumes que nesta há, de que abaixo falarei.
Tem
a freguesia dezassete lugares, chamados Eiras, Longra, Vessada, Horta Nova,
Paço, Cal, Portelo, Quintãs, Campo, Regueira, Figueiredo, Costa, Souto,
Gondomar, Igreja, Lama e Lebeguada. E tem vizinhos. Eiras tem dez, Longra,
cinco, Vessada, três, Horta Nova, cinco, Paço, cinco, Cal, quatro, Portelo,
seis, Quintãs, sete, Campo, cinco, Regueira, quatro, Figueiredo, dez, Costa,
sete, Souto, dois, Gondomar, dois, Igreja, seis, Lama, três e Lebeguada, seis.
Desta
se avista, em distância de duas léguas, o Bom Jesus de Braga, e, mais perto,
para a parte do Nascente, a serra da Falperra, e nela a capela de Santa Marta.
Em distância de uma légua, a freguesia de Santa Ana de Vimieiro. Em distância
de meia, a freguesia de Priscos e, depois, as de Ruílhe e Arentim, que lhe
ficam contíguas, e não se avista mais por lhe servir de impedimento o monte
chamado da Pedra Bela. Para o Poente se avista parte da freguesia de São João
de Bastuço, e as sumidades do monte Airó. Para a parte do Sul se avista alguma
parte da corrente do rio Ave e avista-se, em distância de légua e meia, o couto
de Farelães, com as casas do fidalgo e capela. Em distância de uma légua,
Minhotães e Jabolinha. Na de meia, as freguesias de Viatodos, Nine e, mais
perto, o couto de Cambeses.
Os
moradores recolhem em mais abundância vinho e milho grosso, centeio e milho
branco, suficientemente, e algum a que chamam painço. É povoada de muitas
devesas de carvalhos, que os lavradores costumam cortar, e feitos em molhos,
levam à cidade de Braga a vender, com eles remedeiam muito bem as suas casas.
Serve-se
do correio da cidade de Braga, que dista légua e meia, que é capital do Arcebispado,
e dista de Lisboa, capital do reino, sessenta léguas.
Todos
os moradores pagam pensões de trigo, milho alvo, centeio, galinhas, e palha
painça ao fidalgo de Canaveses, mas não pagam todos de todas as espécies, uns
de umas, outros de outras. Só seis lhe não pagam pensão alguma. Pagam mais
votos a igrejas, e umas pequenas pensões, a que chamam ramires.
Os
montes que as cercam são pequenos. Criam gados de cabras, ovelhas, coelhos e
algumas perdizes. Por cada um deles vai uma estrada, e ambas vão para Vila do
Conde. Não têm especialidade alguma que se possa notar, por não terem em si
mais que pedra e um mato de pequenos tojos.
Não
há coisa que se possa notar sucedesse no terramoto de 1755.
Tem
um pequeno rio, que corre pelo meio dela, de Norte a Sul. Nela principia e,
depois de se estender por meia légua, acaba no fim da freguesia, no sítio o rio
Este principia a dividir os dois coutos de Arentim e Cambeses. De Inverno toma
água bastante. De Verão, o mais dos anos, seca. Tem cinco moinhos e, quando estes
moem, ninguém tem a liberdade de usar das suas águas para os seus campos. E,
fora destas ocasiões, todos se utilizam das suas águas sem pensão alguma. Só os
campos da igreja há anos estão privados dela, por o impedir um freguês de tal
ou qual génio, que com bem pouca razão a impede, sobre o que corre litígio, e
espera obter cedo sentença a seu favor a igreja. Toda a terra que fica nas
margens deste pequeno rio é lavradia, e não tem mato silvestre, tem só
carvalhos com vides, que dão vinho, e alguns amieiros e salgueiros.
Não
acho nesta coisa alguma mais de que possa fazer caso. Só quando vim para esta,
que ainda não há dois anos, achei, e se acha ainda nela, uma medida velha, que
diz o livro dos usos levar três quartos. Hoje já não leva. Esta é tão velha,
que não há pessoa alguma que lhe lembre de se fazer, nem de ouvir dizer quando
se fez. Já tem alguns remendos de couro pregados no pau, com uma incapacidade
muito grande. Não querem os moradores consentir em que se reforme, com o errado
juízo de que, em se acabando, não hão-de pagar mais votos à igreja, o que
atribuo a serem alguns bastantemente incultos.
Também
na parte superior dos passais, junto ao caminho que vai da igreja para a
freguesia, daquela distante pouco mais de trinta passos. se acha uma pedra que
parece ser sepultura antiga, de que a gente desta faz especialidade, e lhe
chama corrupto vocábulo “o moimento”. Tem palmo e meio de largo e sete de
comprido. Na parte superior, tem esta figura levantada na mesma pedra:
Perto
desta igreja coisa de dois tiros de espingarda fica, na freguesia de Arentim, a
capela da Senhora das Neves, de que não falo, e falará o pároco da dita
freguesia.
Nos
mais interrogatórios não falo, por não ter neles que dizer. Vai tudo na verdade
e, de como assim é, pedi a dois párocos meus vizinhos que este vissem, antepusessem
o seu parecer e assinassem, S. Miguel de Cunha e Maio 2 de 1758
O
abade Manuel António Coelho.
O
cura Manuel Gomes Monteiro.
O
abade António Machado da Silveira.
“Cunha”, Dicionário Geográfico de Portugal
(Memórias Paroquiais), Arquivo Nacional-Torre do Tombo, vol. 12, nº 478, p. 3333 a
3340.
[A seguir: Ruílhe]
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