Igreja de S. Torcato. |
E chega o Verão e com ele toda a natureza se alegra. Pelas lindas terras do Minho sucedem-se as romarias, mas dentre todas a mais concorrida é a de S. Torcato, entre Braga e Guimarães, em lugar fertilíssimo e muito pitoresco.
A reportagem que aquela revista publicou sobre a romaria grande de S. Torcato daquele ano, descreve as festas que se prolongavam "pela noite e dia seguinte com as iluminações características do Minho, com fogos de artificio, muito vinho e suas escaramuças de pauladas, efeitos do álcool, dos ciúmes de namorados, ou de ajuste de contas de alguma rixa velha, aprazada para a romaria".
Aqui fica, com as imagens que a acompanhavam.A procissão - O grande andor da Virgem com S. Torcato. |
As romarias do Minho
Estamos no tempo próprio das romarias e, de quantas se fazem por essas províncias, as mais concorridas e pitorescas são as do Minho, mercê daquele lindo jardim, exuberante de vegetação, onde toda a terra se desentranha em frutos; e dos coloridos trajes de cores vivas, garridas, das moças sadias, airosas, adornadas de luzente oiro que lhes emoldura as rosadas faces, suspenso das orelhas em descomunais arrecadas e pingentes a confundir-se no colo recamado de grossos cordões e filigranas do precioso metal. É um luxo a valer, que para o possuírem todo o ano mourejam e de muita coisa se privam, podendo dizer como o filósofo: “que de coisas tem o mundo de que Diógenes não precisa” excepto o lindo oiro, dirão elas.
Pois são assim as romarias, um misto de sacro e de
profano, tradições pagãs enxertadas no cristianismo, por uma tendência
irresistível dos povos para festas ruidosas em que a invocação religiosa é um
protesto para folgar e divertir-se em certos dias do ano, como era uso nos povos antigos.
Com isto movimentam-se as populações
e o comercio; o povo alivia as tristezas de todo o ano e alegra-se algumas
horas, cantando, dançando e bebendo mais à vontade, enquanto vai deixando cair
na bandeja do santo da sua devoção o tributo voluntário que entende dever pagar-lhe
pelos milagres que lhe fez durante o ano.
Há que distinguir neste ponto a boa vontade «lo
contribuinte, em contraste com a relutância com que ele paga as contribuições
do Estado, o que só se explica pelo Estado não fazer os milagres por mais que o
povo lhos peça.
Pobre povo! tens razão!
Romarias, romarias, é tudo quanto te resta para
folgares alegre, enquanto te não matarem no coração a perfumada flor da crença,
que te suaviza as agruras da vida.
E chega o Verão e com ele toda a natureza se alegra.
Pelas lindas terras do Minho sucedem-se as romarias,
mas dentre todas a mais concorrida é a de S. Torcato, entre Braga e Guimarães,
em lugar fertilíssimo e muito pitoresco.
Nos primeiros dias de Julho a
povoação toma o aspecto das grandes festas que vão realizar-se no primeiro
domingo do mês. de muitas terras de Portugal e até da Galiza, chegam romeiros,
e as estradas alastram-se dos forasteiros, os que vem a pé. a cavalo e em
carros de toda a espécie, um despejar de gente que enche as cercanias da igreja
de S. Torcato, que lá do alto é testemunha dos numerosos romeiros que se
espalham pelos lindos campos em redor.
Por aqui e por
ali armam-se barracas de venda. Ouvem-se descantes e toques
ao som dos quais o povo dança em grande contentamento e alegria, que mais se expande
a cada momento que os foguetes de grandes bombas estalam no ar com enorme
estrondo.
Por toda a larga avenida que
conduz à igreja, erguem-se mastros embandeirados, matizando o céu de azul
intenso com o variegado de suas cores. À sombra das árvores que orlam o
caminho, enfileiram se as barcas onde os forasteiros comem e bebem e em frente
tocadores e cantores estendem a escudela pedindo alguns cobres. Os mais
cuidadosos do seu físico entregam-se às mãos de barbeiros ambulantes, que na
via pública abrem o seu salão com uma cadeira e um chapéu de sol.
Chega a hora da procissão, um mixto de cortejo cívico
e préstito religioso, com seus carros triunfais alegóricos até àquele em que
vem o S. Torcato.
Abrem a procissão alguns soldados
da cavalaria municipal do Porto e logo seguem as irmandades ladeando os clássicos
anjinhos, de asas ao vento, alguns ajoujados ao peso dos cordões e medalhas de
oiro que lhes cobrem o bustozinho tenro.
Vem agora o primeiro carro, ou
melhor um alto trono, que à primeira vista não se percebe como se move; o trono
desce quase ao solo, sobre um estrado coberto em roda e só quem perscrutar com
curiosidade, conclui que toda aquela enorme fabrica é conduzida por uns tantos
homens que se ocultam sob o estrado e as cortinas.
É formidável o trono, todo de
doiraduras de cima a baixo. Lá 110 alto a imagem da Virgem de tamanho natural,
e a de S. Torcato paramentado, ante um altar completo do
tamanho do de qualquer capela; para baixo estendem se os degraus por onde se sentam
oito meninas vestidas de azul e véus brancos, as quais, quando o préstito pára,
cantam loas e gesticulam automaticamente apontando para o S. Torcato que vai lá em
cima.
Continuam as irmandades com suas
cruzes, anjos e anjinhos, entremeiam-se músicas pelo cortejo e tudo precede
outro carro, ainda mais alto, no seu trono. No topo, como emergindo de espessas
nuvens de algodão em rama, se vê figurada a Santíssima Trindade do Padre, Filho
e Espírito Santo, e logo abaixo S. Torcato de vestes prelatícias, com outras figuras
alegóricas compõem o quadro, além de mais meninas vestidas como as do primeiro
carro, que também cantam loas.
A estes carros segue-se uma urna
conduzida por quatro rapazes mascarados de sacerdotes, significando a trasladação
de S. Torcato que há mais de meio século se realizou.
Finalmente fecha a procissão o pálio,
músicas e muito povo que faz acompanhamento, não sendo raro ver um e outro
grupo dançando ao compasso dos trombones e do bombo.
As festas prolongam-se pela noite
e dia seguinte com as iluminações características do Minho, com fogos de
artificio, muito vinho e suas escaramuças de pauladas, efeitos do álcool, dos
ciúmes de namorados, ou de ajuste de contas de alguma rixa velha, aprazada para
a romaria.
O Ocidente, 33.º ano, volume XXXIII, n.º 1137, 30 de Julho de 1910, pp. 175-176.
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