O "Dicionário de Guimarães"

João Lopes de Faria, no Claustro de S. Domingos | Museu Arqueológico da Sociedade Martins Sarmento.
Pintura de Abel Cardoso | Partilhada por Abel Cardoso.

João Lopes de Faria é uma figura singular da cultura vimaranense. 
Tendo nascido em 1860, era filho de um humilde sacristão da Colegiada da Oliveira, e foi na Colegiada que cresceu, se fez homem e trabalhou durante toda a sua vida. Iniciou-se nos estudos musicais com o regente de capela e director da banda de música Boa União, Lucínio Fernandes Trindade, foi discípulo do maestro Padre Eugénio da Costa Araújo Mota. Com 28 anos, substituiu o célebre professor Venâncio (Francisco Pedro da Rocha Viana) nas funções de organista da Senhora da Oliveira. Foi o último organista da Colegiada.
João Lopes de Faria destacou-se pelos seus dotes de cantor e músico, mas não é pelo seu percurso musical que é recordado com carinho e respeito. Pouco depois de ter assumido as funções de organista da Oliveira, foi iniciado nas artes da paleografia pelo cartorário da Colegiada, o Padre Abílio de Passos e começou a decifrar, transcrever e coligir os documentos da história de Guimarães, construindo uma obra com uma dimensão impressionante, reunida em mais 13.500 páginas de papel almaço manuscritas que doou à Sociedade Martins Sarmento, uma fonte de consulta e de trabalho incontornável para todos quantos se dedicam ao estudo da história local de Guimarães.
De João Lopes de Faria é costume salientar-se a paciência beneditina e a perseverança com que se devotou aos trabalhos paleográficos e históricos. Num dia de Novembro de 1932, quando Guimarães homenageou o seu mais dedicado paleógrafo, congratulando-se por lhe ter sido concedido o grau de Cavaleiro da Ordem de Santiago, o pintor Abel Cardoso (que chamava João Lopes de Dicionário de Guimarães) notou-lhe um outro traço de carácter: a teimosia. Foi na carta aberta, inicialmente publicada no jornal O Comércio de Guimarães, que abaixo se reproduz.
Uma teimosia que, ao menos por uma vez, foi vencida, como o atesta o quadro que encima este texto, que conheci através de um outro Abel Cardoso, neto do pintor.


Carta aberta
Meu caro João Lopes de Faria:
Aqueles para quem o hábito faz o monge não acreditam no seu merecimento.
Você passa, olham de soslaio para a sua capa lendária e encolhem, desdenhosos, os ombros.
Porem, os que você consente que privem com a sua pessoa (são poucos e faz muito bem) reconhecem, em absoluto, que se encontram em presença de um autêntico valor, que o eleva por si só, desprezando a farfalhice de quem quer que seja e que, pró ou contra, tente focá-lo.
Não sei que em Guimarães alguém haja que melhor conheça essa velha cidade.
A gente, quando conversa consigo, tem a impressão de viver um século atrás.
Curioso, amigo de saber, modesto e cauteloso, falando pouco e pensando muito, você sabe todo o passado da nossa querida terra. Foi isso que me levou a cognominá-lo O Dicionário de GuimarãesDicionário, sim que várias vezes consultei, até a pedido de individualidades de reconhecido destaque intelectual neste meio de barafunda em que presentemente vivo. Não sei se em Portugal haverá muitos homens cultos que saibam soletrar os garatujos dos velhos cartapácios. O que sei pois, e afirmo alto e bom som, é que, alguns deles, a J. Lopes de Faria tem recorrido e não se envergonham disso.
Desculpe-me estas palavras de justiça simples e despretensiosas, e deixe-me dizer-lhe ainda, com toda a franqueza e sinceridade: uma qualidade você possui em excesso, a qual por isso mesmo se transforma para mim, em defeito grave — é a teimosia.
Nunca você deixou, apesar dos meus reiterados e constantes pedidos, que as pobres tintas da minha humilde paleta, traduzissem para a tela a sua fisionomia estranha, característica, o seu olhar perscrutador, inteligente, simultaneamente cheio de bondade, de tristeza, e, finalmente, toda essa expressão insinuante, porta-voz da sua grande modéstia e da superioridade do seu belo espírito.
Adeus. Mando-lhe um abraço, em homenagem, com saudades.
Abel Cardoso
Lisboa, 14 de Novembro de 1932
O Comércio de Guimarães, 29 de Novembro de 1932

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