D.
Francisco de Noronha (1863-1953), era um fidalgo que escrevia na
revista Ocidente, numa secção designada Questões Sociais, sobre
temas como o socialismo e a sua origem, o trabalho, a escravatura, a
família ou a infância. Quando Francisco Martins Sarmento faleceu, a
9 de Agosto de 1899, dedicou-lhe, nas páginas da revista, um texto
muito interessante, onde se lê, a dada altura:
Comparada a sua figura típica e o seu busto simpático e venerando com a prosápia extravagante de tantos mandões lâminas na esfera das ciências e de tantos pigmeus reptantes só levantados do chão em assunto de política de campanário, tomam corpo as linhas luminosas do seu perfil que permanecerá transcendendo espaços nas asas de imortal renome, enquanto a caterva dos inúteis e dos farsantes se for reduzindo a cadáver na putrefacção a um papel de misérias e de lama.
Aqui fica.
Há
dias li num
jornal
a seguinte participação telegráfica: “Guimarães
9
—
Faleceu
o distinto arqueólogo Martins Sarmento. Esta notícia causou
profunda sensação”.
E
depois de haver lido este despacho lacónico, reflecti que vinha de
morrer para a pátria um benemérito consagrado legitimamente pelo
trabalho util
na
mais ampla significação do termo.
O
dr. Martins Sarmento nasceu em Março de 1833.
Encetou
os seus estudos em 1841 e formou-se
na
faculdade de direito da nossa universidade aos 20 anos.
“A
10 de Julho de 1874, escreve um seu biógrafo, já então
dedicando-se
de
coração aos estudos arqueológicos, deu começo às célebres
explorações da Citânia. no monte de S.
Romão,
na freguesia de Santo Estêvão de Briteiros, deste concelho (0
de Guimarães)
e, em 1877, alargou esses trabalhos até ao monte fronteiro
denominado de
Sabroso,
ruínas
e
vestígios pré-históricos, que foram visitados no 1.º de Outubro
de 1880 pelos sábios estrangeiros e nacionais que celebraram o
congresso antropológico, inaugurado em Lisboa a 20 de Setembro desse
ano.”
Por
essa ocasião foi-lhe
rendida
num
título
honrosíssimo uma brilhante e calorosa homenagem de justiça assinada
por muitos congressistas eminentes.
Ele
poderia
ter dito como disse Barthélémy
a
propósito das medalhas do seu gabinete numismático no século
passado: “Se os meus sucessos me procuraram gozos agradáveis, por
outro lado, a inserção escrupulosa e minuciosa custou-me bastantes
trabalhos.”
A
verdade, porém, é
que sem fadigas e investigações árduas não pode conseguir-se um
resultado seguro nas afirmações científicas da História.
E
a arqueologia, conhecimento das antiguidades, fornece elementos
preciosos que se tornam indispensáveis à satisfação plena do
espírito na certeza dos factos.
Não
é de sobra o escrúpulo máximo nem a maior dose de paciência para
segurança completa de quem quer instruir-se e enobrecimento
perdurável do investigador laborioso.
Todo
o cuidado é pouco, acrescendo ainda à contensão e recolhimento das
faculdades de que não pode prescindir-se em arqueologia, a despesa
que é mister fazer em escavações e análises
e
bem assim na aquisição de livros e de exemplares próprios a
constituir elementos de comparação.
Quantos
mais abundantes meios de fortuna possuir o arqueólogo e mais vasta
instrução geral em aliança com um critério sisudo não sujeito a
precipitações fáceis, tanto mais longe avançará no seu caminho
de
descobertas
e de conquistas pacíficas
e gloriosas para a ciência “mestra da vida” e melhor logrará
acentuar
no
espírito dos contemporâneos o valor real das suas opiniões e a
legitimidade do fundamento em que assentaram.
E
não ficam só por aí os títulos de respeito e de consideração
pela pessoa do arqueólogo; transmitem-se às idades futuras,
insculpem-lhe o nome na auréola rutilante da fama, são fonte
inesgotável para os sábios.
O
indivíduo que se chamou em Portugal
Francisco
Martins de Gouveia Morais Sarmento, cujas pálpebras estão agora
cerradas para o mundo, atingiu deveras as proporções perfeitas no
ideal acabado de um verdadeiro arqueólogo.
Incansável
nas suas lucubrações aturadas, convicto na apostolização do rumo
dos conhecimentos para que se sentia impelido por afeição natural,
apaixonado singularmente no amor de exploração e averiguação
esmerilhada, ele
deu
generosamente
ao
seu país um esforço frugífero na causa do progresso e uma prova
monumental de grandeza de alma.
Ao
noticiarem o seu falecimento, referiram-se diferentes
jornais
às suas disposições testamentárias.
Vou
extrair para aqui, dem
uma correspondência
de Guimarães, inserta no Diário
de Notícias, n.°
12.095, de sexta-feira 11 de
agosto, uma
passagem típica
daquele referido
instrumento das últimas vontades
do
finado.
É
relativa à sociedade que se honra e orgulha pela adopção do seu
nome, dizendo assim o autor do escrito a que aludo: “lega-lhe parte
do monte S.
Romão,
freguesia de Briteiros onde estão as
ruínas
da
Citânia e todos os aparelhos fotográficos e clichés da Citânia e
Sabroso, a sua biblioteca, que
é importante;
a quinta do Carvalho, freguesia do Salvador de Briteiros para
assegurar a conservação e continuação das escavações da Citânia
e outros monumentos arqueológicos. Lega mais o seu palacete do Largo
do Carmo para estabelecer qualquer instituição de harmonia com os
seus fins.
Traduz-se nestas
linhas
um carácter elevado, que previne possíveis eventualidades de
intermitência
para
além da sua morte na ordem de trabalhos que mais o preocuparam,
habilitando os estudiosos ao prosseguimento tranquilo em matéria tão
predilecta ao seu espírito.
Louvor
lhe seja dado perenalmente
na
pátria portuguesa! a sua memória é digna de transpor os áditos da
eternidade! os serviços que
ele prestou
em prol da verdade histórica são de molde a resistir a todas as
veleidade da crítica e a todas as tempestades do tempo!
Ele
bem
entendia que
“Les
monuments aussi, conforme
escreveu Ampére na introdução da História
romana em Roma,
soit
encore
présents
par leurs ruines, soit dont l’emplacement seul est connu, offrent à
l’histoire des éclaircissements que rien ne saurait remplacer; ils
parlent aux yeux ou à l’imagination, ils disent ce qui n’est
aussi bien dit nulle part.”
(*)
O
Dr. Martins
Sarmento era
impérvio a sentimentos
de
malevolência e foi indefesso no seu campo de observação.
A
França
soube apreciar-lhe os
quilates
superiores da excelência
tornando-o
cavaleiro
da
Legião
de Honra
de que, aliás, não consta que
ele tivesse
usado a respectiva insígnia.
E
ao passo que um governo estrangeiro demonstrou assim não lhe serem
indiferentes os méritos pessoais de um português de nascimento
ilustre
e
de obras preclaras,
olvidaram
os governos da sua terra querida os testemunhos de deferência que a
justiça e o bom senso mandam conceder aos vultos gloriosos.
Não
o seduzia por certo nem o envaideceria nunca a posse de veneras
nacionais, pois o Dr. Martins Sarmento não ignorava que
neste país
Ocidental das praias lusitanas alcançam-se facilmente condecorações
a troco de
um bandeamento
eleitoral e de algumas dúzias de libras em moeda equivalente; mas o
que devia calar desagradavelmente no mais fundo da sua consciência
de homem honesto era a ingratidão dos seus compatriotas dirigentes.
Falarão
na posteridade pelo arqueólogo
distintíssimo
veneras de maior preço e condecorações mais puras: os seus livros,
repletos de erudição e magníficos de ensinamento, Os
Lusitanos,
Os
Argonautas,
Ora
Marítima,
Lusitanos,
Ligures
e
Celtas,
etc., autenticam e alcandoram
a
sua fisionomia moral nos fastos
portugueses
do século XIX.
Comparada
a sua figura típica e o seu busto simpático e venerando com a
prosápia extravagante de tantos mandões lâminas
na
esfera das ciências e de tantos pigmeus reptantes só levantados do
chão em assunto
de
política de campanário, tomam corpo as linhas luminosas do seu
perfil que permanecerá transcendendo espaços nas asas
de imortal renome, enquanto a caterva dos inúteis e dos farsantes se
for reduzindo a cadáver na putrefacção a um papel de misérias e
de lama.
O
Dr. Martins Sarmento cultivou igualmente a poesia e deixou artigos
numerosos em diversas revistas e em muitos jornais.
Devo
registar neste
ponto
com o devido elogio a deliberação tomada pela câmara municipal de
Guimarães de substituir a denominação de Largo
do Carmo,
que tinha o local da residência do falecido pela de Praça
do arqueólogo Francisco Sarmento.
Enfim,
resumirei tudo quanto houvesse ainda de dizer relativamente a Martins
Sarmento, transcrevendo estas palavras que acerca do duque de Luynes
saíram da pena de Vinet, já citado por mim nas páginas do
Ocidente:
“Ame
tendre et
austère
à la fois, il a su mener de front la vie morale et intellectuelle,
ne les séparant point pour mieux les fortifier. Peu d’hommes se
sont montrés dignes à ce point du respect universel, et plus à
l’abri de ces écarts, de ces défaillances de moeurs qui diminuent
tout, même le génie, et qui eiffeuillent
ses couronnes. Comme un simple bourgeois d’autrefois, il a pratiqué
les vertus tranquilles, et il s’est montré le plus fervent
adorateur des religions de la famille et des dieux domestiques.”(*)
Que
o Céu pague à alma do finado Arqueólogo Sarmento as injustiças da
terra!
20
de Agosto de 1899.
D.
Francisco de Noronha.
O
Ocidente,
22.º ano, volume XXII, n.º 744, 20 de Agosto de 1899, pp. 190-191.
(*) “Os monumentos também,
segundo Ampere na introdução da História romana em Roma, estejam
ainda presentes, pelas
suas ruínas, ou seja
porque a sua localização
é apenas conhecida,
oferecem à
história os esclarecimentos que nada pode substituir; falam para os
olhos ou para a imaginação, dizem o que não
é tão bem dito em
qualquer lugar.”
(**) “Alma ao mesmo tempo terna e austera, ele sabia como enfrentar a vida
moral e intelectual, não as separando para melhor as fortalecer.
Poucos homens se mostraram tão dignos de respeito universal e mais
protegidos desses desvios, daqueles fracassos de costumes que
diminuem tudo, até mesmo o génio, e que espalham as suas coroas.
Como um simples burguês do passado, ele praticava virtudes
tranquilas e era o mais fervoroso adorador das religiões da família
e dos deuses domésticos.”
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