Magnus Bergström (1890-0960) |
Sempre me causou estranheza ter um
livro que servia de guia de bem escrever português, o
Prontuário Ortográfico, que
tinha um
autor que usava
um nome tão alienígena como Magnus Bergström.
Ainda hoje não sei de que ilha nórdica naufragou este erudito,
antes de vir cair a esta terras onde já não havia tremas e de aqui se fazer linguista. Nem
sequer tenho a certeza de que algum dia tenha existido, embora
na Biblioteca Nacional se indique que viveu entre 1890 e 1960 e que,
mais ou menos a meio da vida, trocou galhardetes com o vimaranense
Alfredo Pimenta, que o levou a publicar um opúsculo com o título
Leal
desafronta às
graves injúrias dirigidas aos que no Passado se impuseram na nossa
Literatura por obras de incontestável valor
(Lisboa,
Edição do Autor, 1933.
32 páginas).
Dele
escreveu Miguel Esteves Cardoso, num texto sobre O
Acordo Tortográfico:
Dos dois autores do Prontuário, Magnus Bergström e Neves Reis, é o primeiro o mais misterioso. Circulam a respeito dele lendas importantes. Para uns, será um sábio islandês, isolado nalguma remota ilha polar, estudando afoitamente o emprego do hífen e as razões que levaram os gramáticos portugueses a abolir o trema. Para outros, Magnus Bergström é o pseudónimo de algum ilustre estudioso português, ansioso por não ver o seu nome académico associado a um mero prontuário.
Da
bibliografia assinada por Magnus Bergström consta uma Tareja
"Venusta Regina". É à
mesma rainha, que nunca o foi, mãe de Afonso Henriques, e aos seus
amores com Fernando Peres de Trava, que Bergström dedica o primeiro
texto do seu livro Coitas de Amor, que se
intitula Como
desabrochou a primeira saudade nesta abençoada terra portuguesa.
Foi reproduzido em 1937 na
revista Ilustração,
onde o meu amigo Nuno Saavedra o pescou. Aqui fica, acompanhado pelas
imagens que o ilustavam.
Como
desabrochou a primeira saudade
nesta abençoada terra
portuguesa
Fernando Peres, demasiadamente
confiado na boa
estrela,
não percebeu que a sua desmedida influência devia provocar o
descontentamento dos barões portugueses. Estes ao convencerem-se de
que ele
era um intruso que se propunha postergar os antigos foros, não
quiseram
mais acatar o preito e lealdade devidos a D. Teresa.
Ricos homens e infanções não estavam dispostos a suportar a
supremacia do estrangeiro, que impunha o seu nome até nas cartas de
doação.
D. Teresa
conservava a mesma capacidade governativa, mas a exagerada autoridade
de que se revestira o conde de Trava logo revelou, sob a forma do
escândalo, a natureza duma das mais ardentes e sinceras afeições
que a História regista.
A honestidade da infanta, aos
primeiros comentários dos maldizentes, maculou-se com as cores
da desgraça. A rebelião, sobrelevando as mais profundas dedicações,
em breve indicaria o caminho do exílio.
Afonso Henriques, ao despertar do
sonho de criança, achou-se oprimido pela indiferença materna, e o
desprezo que o senhor de Trava manifestava por ele
era o pior dos escárnios. Dotado de carácter violento, o filho do
conde D. Henrique sufocou as últimas hesitações. Contava com o
valor e o apoio dos numerosos inimigos de sua mãe, a qual,
imprevidentemente, o havia arredado dos negócios do Estado.
Castelo de Guimarães |
D. Paio, arcaboiço de gigante, não
desistia de se vingar da ofensa que, em 1122, molestara gravemente a
sua dignidade arquiepiscopal. Trazia gravado na memória tudo o que
se prendia com os acontecimentos dessa época agitada. A cúria
reunira:
a ameaça estampava-se em todas
as fisionomias, as alterações avolumavam-se de momento a momento,
as invectivas explodiam brutais e confusas, quando ele,
arcebispo de Braga, se dispôs a falar. Um murmúrio correu a roda
dos ricos- homens, infanções e cavaleiros, e, estabelecido o
silêncio, a voz de Paio Mendes retumbou para explicar que tempo
houvera em que as esperanças se voltavam para a mais perfeita rainha
do mundo. Ela, então, reunira as qualidades que a tornavam adorada:
só a portugueses galardoava com tenências, alcaidarias e
meirinhados; só a portugueses escolhia para capitães das hostes
empenhadas em ampliar as fronteiras dos seus domínios.
……………………………………………………………………………………..
Teresa, num só dia, viu
desaparecer, no campo de S. Mamede, o poder do mando, e a sua alma,
contudo, não vacilou entre os deveres de mãe e a exaltação de
amante. O filho vencera, os portugueses pediam o cativeiro para ela,
mas a seu lado ficara o conde de Trava.
Ainda soavam as aclamações de
vitória e já a rainha vencida murmurava :
— Amigo, por que me não
desamparastes?
E o conde de Trava respondeu
comovidamente:
— Porque uni o meu destino ao
vosso, Tareja, porque a minha vida vos pertence nesta hora de
perdição.
No final da batalha, o infante não
castigou a mãe com bragas infamantes. Impôs-lhe apenas perpétuo
desterro.
Teresa e Fernando Peres, ao
anoitecer daquele abrasador dia de Julho, acharam-se, enfim, na
solidão da serra. Ao pensamento da filha de Afonso VI acudiam, em
tropel, os tempos venturosos de Guimarães. Então, a saudade
da terra que considerava sua invadiu-a, e Fernando Peres
surpreendeu-a chorando. Num impulso benfazejo, inclinou-lhe a cabeça,
e, perdidamente, cobriu-lhe de beijos bravos a polpa
outonal da boca
húmida.
Ah! paisagens do Minho, quão
saudosa
Teresa as contemplava na mágica alva do dia! Primeiro o Ave, depois
o Lima e o Minho, rios de paz, com margens de bondade infinita. Nos
ribeiros, nos regatos e no consolo das próprias regas —sempre o
murmúrio das águas; nos tranquilos
solares e nos brancos casais - sempre a fartura das colheitas. Como
eram magníficos os poentes purpurinos na terra tão vizinha da
Galiza, como as pupilas de Teresa se demoravam deslumbradas nos
outeiros e encostas, nos gementes açudes, nos pinhais fugitivos e
nas igrejinhas onde a missa se ouvia em rezas de ingénua piedade
cristã!
Um sentimento profundo se apoderava
da sua alma dolorosamente amarfanhada: calvário ou santa relíquia,
a mágoa que a oprimia nascera das lembranças do passado, lembranças
que eram, sem dúvida, na poesia das lágrimas, a primeira e a mais
bela saiidade portuguesa.
D. Teresa |
Cerrando as pálpebras, Teresa
distinguia nitidamente as espadas que, ensanguentadas
até os mangos, se erguiam contra ela, e a turba inconsciente que a
acusava de vil traição. A crueldade do exílio vinha mostrar-lhe a
fragilidade da gratidão humana.
Teresa compreendeu que só lhe
restava na vida o amor sincero do conde de Trava e depressa percebeu,
com o admirável instinto de mulher apaixonada, que o seu corpo,
modelado pela graça voluptuosa, ia perdendo as formas
surpreendentes, e que os seus olhos de ardente fascinação se
amorteciam de pesar. Os cabelos começaram-lhe a embranquecer, na
face assomaram lhe as rugas como vincos por sobre os quais fugiam
céleres todas
as aspirações dum outro tempo melhor. Ocultando a dor e os
pressentimentos, agora, mais que nunca, apegava-se ao amante numa
obsessão doentia.
Jordaneando dia e noite, Teresa e
Fernando Peres demandaram a donosa Galiza. Tui ficava perto. Ali
descansariam da estirada. O rio Minho segredar-lhes-ia notícias de
Portugal. Em barco ligeiro, iriam juntos até à ínsua, onde, na
primavera de 1121, os cavaleiros de D. Urraca tinham obtido sôbre os
portugueses as vantagens da guerra.
Nada mudara na antiga cidade. As
mesmas ruas estreitas, os mesmos atraentes hortos e jardins, as
mesmas casas, as mesmas vetustas ruínas evocavam ainda as curiosas
transformações por que a Península passara.
Castelo de Lanhoso |
Olhando para o panorama, Teresa
mais e mais se convenceu da verdade e entusiasmo que pusera na
realização do seu plano — tornar independente o seu condado,
incorporando
nele
a Galiza, de forma a constituir-se um Estado poderoso, capaz de
suportar o embate das mais furiosas ambições políticas.
Teresa, afrontando os rigores da
invernia, meteu-se a caminho de Santiago
de Compostela. Queria aconselhar-se com Diogo Gelmires, porque, ao
meditar nas suas culpas, nunca pudera resignar-se com a ingratidão
dos barões portugueses. Fernando Peres animava-a com palavras de
vingança e contava também com o valimento do prelado compostelano.
Diogo Gelmires ouvira de confissão
a Infanta-Rainha,
e, sem perder a astúcia que lhe era peculiar, falou-lhe das penas
eternas e da crença firme com que os pecadores obtinham a
misericórdia divina. Indicou-lhe a catedral para as orações do
arrependimento.
Teresa, a figura alquebrada, o
rosto pálido, amparando-se ao senhor de Trava, transpôs a porta
principal do majestoso templo, e, vacilante, encaminhou-se para o
altar-mor.
Ajoelhando, à luz mortiça das lâmpadas alçou o olhar penitente
para a imagem de Santiago.
Ao balbuciar as rezas que aprendera em criança, subitamente, em
perfeita visão redentora, distinguiu as duas filhas, Urraca e
Teresa, tamaninas ainda, que lhe estendiam os róseos bracinhos,
enquanto voz de timbre profético ordenava:
— Perdoai aos que vos odeiam!
Diogo Gelmires tinha razão. Para
ela, que se orgulhava outrora
da magnificência real, a salvação estava na humildade. Não mais
pensaria na vertigem do mando, aproveitando o pouco tempo que lhe
restava de vida a repousar o espírito, a recordar, um a um, os
breves sonhos de ventura.
Resignada, percorreu a Galiza
inteira, visitando cidades e vilas, orando nas igrejas, e, em cada
crista de montanha, em cada veio de água límpida, em cada vale, em
cada planície, reviu as formosuras
do condado portucalense, formosuras
que cabiam inteirinhas nas suas saudades de exilada.
Fernando Peres de Trava |
No dia 1.º
de Novembro de 1130, Teresa agonizava. O seu olhar, ao buscar o do
senhor de Trava, cobria-se da ternura do derradeiro adeus. Os seus
lábios lívidos abriram-se numa súplica:
— Aproximai-vos, Fernando...
Soluçando, o conde de Trava
abeirou-se mais da infeliz amante.
— Ouvi. Se no mundo há outro
amor tão grande como aquele que devemos ao Salvador, o meu por vós
foi assim. Não me arrependo de tanto vos ter querido, e se a morte
permite um último afago, dai-me o beijo da extrema saudade...
No sossego
da imortalidade perfulgirá o nome de D. Teresa, porque ela foi a
primeira mulher de sangue nobre que, em território
português, abriu ao amor os mais preciosos tesouros do coração.
Para as finas sensibilidades, a dor
de Fernando Peres perpetuou-se nos dizeres latinos duma simples
doação conservada no Livro Preto, e para os nossos poetas e
pintores a regência da filha de Afonso VI de Leão oferecerá, no
decurso dos séculos, quadros dignos de serem fixados no ritmo dos
versos ou no cativante colorido da tela.
Magnus
Bergström
Ilustração,
n.º 272,
16 de Abril
de 1937,
pp. 18-19.
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