A antiga igreja paroquial de S. Paio, demolida em 1914. |
A freguesia que partilha com Santa Maria da Oliveira o espaço
intramuros da antiga vila de Guimarães é S. Paio, pertencendo-lhes algumas das
artérias que confrontavam com a muralha no ângulo Sul-Poente, para além de
vastos espaços fora da muralha, incluindo o Toural e as ruas de Gatos (actual
D. João I), Santo António e Santa Luzia (que partilhava com Azurém). A memória que
o pároco de S. Paio escreveu, em resposta ao questionário de 1758, é muito
interessante, especialmente quando fala da Santa Casa da Misericórdia e dos
antigos Açougues, que se situavam no seguimento da rua do Anjo, nas imediações
da antiga igreja paroquial, que foi demolida no início do século XX. A
propósito dos Açougues, o cura de S. Paio descreve a ignominiosa servidão da vassoura
a que estavam sujeitos os moradores das freguesias de Cunha e Ruilhe e a que voltaremos,
quando tratarmos das memórias paroquiais destas freguesias que pertenciam ao concelho
de Guimarães, apesar de estarem, altura, encravadas no território de Barcelos.
São Paio
Em cumprimento de uma ordem deambulatória que vi e me foi
apresentada do Muito Reverendo Senhor Doutor Provisor deste Arcebispado de
Braga Primaz das Espanhas, Francisco Fernandes Coelho, para, em cumprimento
dela, informar o que se pede, num extracto de letra redonda que em meu poder
fica, o que posso informar e pertence a esta freguesia de São Paio da vila de
Guimarães, é o seguinte.
Esta freguesia de São Paio da vila de Guimarães está situada na
Província de Entre Douro e Minho, Arcebispado de Braga, Primaz das Espanhas, e
está no termo desta mesma vila.
Item, é Sua Majestade, que Deus guarde, o senhor desta terra.
Item, tem esta freguesia fogos de casados, viúvos e solteiros,
quinhentos e oitenta e sete e, pessoas de sacramento, mil e duzentas e cinco.
Item, está esta freguesia situada em terra plana, dela se descobre
até à distância de uma légua, para a parte do Poente, e meia, para a do
Nascente, onde se acha um monte alto chamado da Penha, ou serra de Santa
Catarina, e, para as do Norte e Sul, se acham uns montes mais baixos, que
impedem ver-se maior distância.
Item, está esta freguesia no distrito desta vila, a qual tem termo
seu, que compreende cento e três freguesias.
Item, está esta freguesia no distrito desta vila imediata à da
Real Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira. Consta das ruas seguintes: o
Terreiro de São Paio, Rua da Ferraria, Rua da Tulha, Rua de Alcobaça, Eirado do
Forno, Rua Nova, Rua do Anjo, Rua do Postigo, Rua da Rochela, Rua da Porta da
Vila, Rua de São Domingos, Rua de Gatos, Rua do Toural, Rua da Fonte Nova, Rua
de Santo António, Rua de Santa Luzia, Rua dos Bimbais, Terreiro de Santa Luzia,
Rua do Picoto, Rua da Calçada. Lugares: o Gaiteiro, o Proposto, Benlhevai e
Bargas.
Item, o orago desta freguesia é o ínclito senhor São Paio Mártir,
o qual se acha colocado no altar-mor dela, que administra e fabrica a confraria
do Santíssimo Sacramento. No corpo da igreja tem quatro altares, um com a
invocação do Santíssimo Nome de Jesus, que fabrica uma irmandade do mesmo nome;
outro com a invocação das Almas do Fogo do Purgatório, que também fabrica outra
irmandade do mesmo Nome das Almas; outro, com a invocação da Senhora da
Misericórdia, que fabrica a sua irmandade do mesmo nome; outro, com a invocação
de Santo Homem Bom, que também fabrica a sua irmandade do mesmo nome. E é esta
igreja sagrada.
Item, é o pároco desta freguesia cura anual ad nutum[1] que
apresenta o Senhor Dom Prior simul[2]
e o reverendo Cabido da Real Colegiada desta vila, na qual são meeiros. E rende
esta freguesia regularmente cem mil réis em cada um ano.
Item, há no distrito desta freguesia um convento de religiosas da
Ordem dos Pregadores, da invocação de São Domingos, que governa o padre prior
provincial e padre prior menor do dito convento, com os seus religiosos em
forma e vida regular. Tem uma grande igreja, muito antiga, e nela suas
irmandades. E, destas, é uma da invocação de Nossa Senhora do Rosário, a qual é
abundante suficientemente de cabedal. E, por estatuto da dita irmandade, tem
cada irmão que é da mesma irmandade, quando falece, quatrocentas missas por sua
alma, que lhe mandam dizer os irmãos da mesa.
Item, há no distrito desta freguesia um recolhimento de
recolhidas, da invocação do Arcanjo São Miguel.
Item, há no distrito desta freguesia o hospital e igreja da Santa
Casa da Misericórdia, que tudo administra a irmandade da mesma Misericórdia, a
qual foi instituída no ano de mil e quinhentos e oitenta e cinco, aos dezoito
de Setembro, e se reduziu a número certo de irmãos. E, antes deste tempo, desde
que na cidade de Lisboa se instituiu a confraria da Santa Casa da Misericórdia,
até ao dito ano, houve nesta vila doze irmãos, seis nobres e seis do povo, e um
provedor, os quais administravam as obras de Misericórdia com toda a caridade e
zelo cristão. Consta haverem sido provedores naquele tempo o senhor Dom
Fulgêncio, Dom Prior da Real Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira desta vila,
filho do senhor Duque Dom James de Bragança, e Dom António de Lima, alcaide-mor
desta vila e senhor de Castro Daire, e Fernando Mesquita de Lima, e Francisco
de Mesquita e outros muitos. E, depois que no dito ano se instituiu a
irmandade, é tradição vulgar e mui sabida que primeiro se assentou esta na Real
Colegiada dela, onde ainda se conserva o nome da capela da Misericórdia, e se
passou para esta Santa Casa no ano de mil seiscentos e seis. E deu-se princípio
à obra da igreja da dita Santa Casa no ano de mil e quinhentos e oitenta e
oito. E o primeiro provedor, que começou a servir a três de Julho de mil e
quinhentos e oitenta e cinco, foi António Pereira da Silva, fidalgo da casa de
Sua Majestade e professo na Ordem de Cristo, sendo seu escrivão António
Nogueira.
Acha-se, no tempo presente, a igreja da Santa Casa com grande
aumento. Tem um frontispício todo de pedra fina primorosamente lavrada. Junto a
ela, uma galeria da mesma forma, que serve de casa do despacho e antecasas da
parte superior e, na parte do meio, de casas e antecasas de despensa, e, na
inferior, de botica para o seu hospital e celeiro para as suas rendas.
Junto a esta galeria está edificado o hospital, com muita grandeza
e comprimento, com camas suficientes para os irmãos da mesma Santa Casa e
pessoas de distinção, com separação das mais, que servem para homens de comum
esfera. E, no meio deste, se acha um altar que faz divisão às camas, que ao
diante se seguem, para as mulheres. No dito altar se celebra missa todos os
dias por satisfação a legado deixado à Santa Casa e, aos Domingos e dias
Santos, se celebram duas missas.
Tem esta santa casa coro, onde todos os dias se reza e canta o
ofício divino, com missa cantada, em cujo coro residem dezasseis capelães,
todos legatários de vários instituidores a quem satisfaz a dita Santa Casa,
como também a um legatário que em todos os dias, na dita igreja, celebra missa
depois das onze horas, antes da qual se toca o sino que serve da mesa da dita
irmandade, para que o povo se utilize e vá assistir à dita missa.
Administra aquela Santa Casa e hospital a dita irmandade, a qual
regularmente tem, em cada um ano, de renda, dezasseis mil cruzados, pouco mais
ou menos. E com muita caridade cumprem com a sua obrigação, tanto na satisfação
dos muitos legados que têm, como na cura e recolhimento dos pobres sem rejeitar
pessoa alguma que lhes supliquem o recolhimento e cura de suas enfermidades,
ainda para pobres que em suas casas se acham doentes lhes dão ração quotidiana
e mandam assistir-lhes com médico cirurgião e sangrador, como também aos presos
de ambas as cadeias desta vila. E, além disto, com muita caridade dão esmolas
semanárias aos que se acham alistados em rol a que chamam da piedade e vivem
por suas casas pobremente ou envergonhados no distrito desta vila e seu termo,
no que fazem grave dispêndio. Dão também esmolas aos passageiros de carta de
guia e a todos os mais que fazem petição à mesa, que costumam fazer aos
Domingos, e ao provedor, fora da mesa, pelos dias da semana.
Tem a dita igreja uma torre muito perfeita, com quatro sinos para
as suas funções e funerais de seus irmãos e mais pessoas desta vila que mandam
e ordenam se lhes toque.
E enterra aquela irmandade de graça aos seus irmãos, em tumba
especial, e, em outra comum, a todos os defuntos desta vila, com a esmola
conforme a tumba que pedem, cujas esmolas são para o aumento dos pobres e
hospital e os irmãos só tiram disto o proveito da caridade. E, destes, são
exceptuados os pobres, tanto do hospital como de fora, que a estes mandam
enterrar de graça.
Item, há no distrito uma capela com a invocação da Senhora da
Piedade, colocada na torre da Porta da Vila, que administra uma irmandade que
tem, com a invocação da mesma Senhora.
Item, há no distrito desta freguesia outra capela na Rua de Santa
Luzia com a invocação da mesma Santa, a qual administra o reverendo Cabido da
Real Colegiada desta mesma vila. E, no dia da milagrosa Santa, costuma haver
grande concurso de povo, que acode de romaria em seu louvor.
Item, há nesta vila Senado de Câmara, por ordem de Sua Majestade,
juiz de fora, corregedor, provedor, superintendente dos tabacos, juiz dos
cativos, juiz dos órfãos, almotacés, tudo por ordem do dito Real Senhor. E é no
Senado de Câmara, cabeça do concelho e comarca, onde se dá posse aos referidos
ministros.
Item, no Campo do Toural, distrito desta freguesia, em todos os sábados
do ano, não sendo dia santo, há feira de vários comércios. E, na primeira
sexta-feira da Quaresma de cada um ano, há também feira com maior abundância e
frequência de povo. Porém, estas são cativas para os de fora do termo.
Item, no dia de sexta-feira de cada semana, parte desta vila o
correio para a cidade do Porto, de onde se recolhe outra vez para ela no domingo.
Item, desta vila à cidade de Braga, capital deste Arcebispado
Primaz, distam três léguas e à de Lisboa, capital deste Reino, distam sessenta
léguas.
Item, há nesta vila muitos privilégios e antiguidades dignos de
memória, que não refiro por pertencerem à informação da Real Colegiada, onde
tiveram seu princípio e origem.
Item, compreendem os muros desta vila parte do distrito desta freguesia,
no qual se acham quatro torres, em distância umas das outras, as quais vão
circuitando os ditos muros desta vila, e tanto estes como as ditas torres estão
edificados com toda a fortaleza, altura e grossura, o que tudo mostra muita
antiguidade. E, nem estas nem, outro qualquer edifício no distrito desta
freguesia, padeceram ruína alguma no terramoto de mil setecentos cinquenta e
cinco.
Item, no fim da Rua de Santa Luzia, distrito desta freguesia, se
acha uma ponte de bom comprimento, a qual mandou edificar o Senado desta vila
há mais de oitenta anos, não tanto por necessidade da água que por baixo dela
passa, por ser muito limitada, mas sim por franquear a entrada desta vila e pôr
no livel[3]
e plano a dita entrada e agora de próximo se acha arruinada.
Item, no distrito desta freguesia e fim da rua do Anjo, se acham
os açougues desta vila, que com muita abundância se dá provimento a toda ela,
seu termo e povoações circunvizinhas, pela qualidade procedida dos bons
mantimentos e pastos dos gados. Cujo açougue tinha, de muitos anos, a regalia e
privilégio de ser varrido e limpo, em certos dias do ano, por homens que
antigamente por obrigação e justiça, pena e castigo, vinham da vila e termo de
Barcelos para esse efeito. Depois de que, passados muitos anos, se pôs esta
obrigação pela Câmara de Barcelos a duas freguesias chamadas de Cunha e Ruílhe,
que para o dito efeito e obrigação deram e largaram ao termo desta. E constava
o traje com que vinham os ditos ao acto referido, de um pé descalço e outro
calçado, uma faixa vermelha cingida pela cinta, na qual traziam e sustentavam a
espada à cinta, porém esta às avessas, id
est[4],
da parte direita e esta desembainhada e um barrete vermelho comprido, de baeta
vermelha, na cabeça. E desta sorte, com uma grande vassoura nas mãos, depois de
nos dias determinados em cada ano terem varrido a praça pública de Nossa
Senhora da Oliveira desta vila, vinham então varrer e limpar os ditos açougues.
Porém, compadecida a clemência de Sua Majestade, que a santa glória tem, houve
por aliviados da ignominiosa acção ou obrigação aos referidos, há menos de
dezoito anos a esta parte.
E como não tenho mais que, por razão do meu distrito, possa fazer
memória e informar, pois o mais que há e pode haver pertence aos reverendos
párocos circunvizinhos, e não há serra, nem rio, de que na forma do extracto
possa informar e só do referido na forma dele é que posso dar notícia e
clareza, o qual vai na verdade.
São Paio de Guimarães, 4 de Abril de 1758 anos.
O pároco Francisco Dantas Coelho.
O abade André Machado de Oliveira.
O pároco José Luís Ferreira.
“São Paio, Guimarães” Dicionário
Geográfico de Portugal (Memórias Paroquiais), Arquivo Nacional-Torre do
Tombo, Vol. 18, n.º 134c, p. 775 a 781.
[A seguir: S. Sebastião]
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