A maçã é de Adão ou de Eva?


Damas de Guimarães; mimosas flores-de-lis.
Que a cidade adornais e o nosso bando ouvis.
Eva enganou a Adão com a maçã traidora:
Mas as nossas maçãs, ó virgem sedutora,
Não são pomos de engano ou pomos de discórdia;
Vossa boca rosada aromatiza-a e morde-a,
Libando na doçura amarga essa saudade
De um desejo de amar que tem a mocidade!
Cada um de nós é Adão e a maçã aliança.
A árvore é o balcão e a serpente a lança.
                            Bráulio Caldas, Bando Escolástico  de 1896.
Vai por aí uma grande discussão tendo por tema um assunto relevante, o da igualdade de género, a propósito de um incidente no cortejo das Maçãzinhas deste ano, ontem acontecido. Um grupo de alunas de uma das escolas de Guimarães terá reivindicado o direito de integrar o cortejo, invocando o muito válido argumento da igualdade de género, que aliás era o tema do carro onde se transportavam, muito pobrezinho, por sinal.
Não sustento convicções fundamentalistas acerca da tradição nicolina (quem sou eu para as sustentar, com a minha história de estudante do Liceu num tempo em que havia um movimento, que integrei, que defendia a extinção das festas, por serem elitistas…). Julgo que há muito para discutir, desde a abertura das festas aos estudantes que frequentam o ensino superior em Guimarães (com a condição de que se abstenham de collants e tricórnios e de que as festas continuem a ser organizadas por alunos do ensino secundário), até à possibilidade de integração de raparigas na Comissão das Festas (se já conquistaram o direito de serem eleitoras, porque é que não podem ser eleitas?). As Festas nasceram e cresceram em tempos em que estudante era um termo apenas aplicável ao género masculino. Os tempos mudaram, as festas também.
Não perfilhando as conjecturas fálicas acerca do significado do Pinheiro ou das peles dos bombos sangradas e rebentadas, vejo como absolutamente natural a participação das raparigas em todos os números das festas. Incluindo a Maçãzinhas que, aliás, são o único número que, desde sempre, integrou a participação activa do elemento feminino. No entanto, tenho muita dificuldade em entender a sua participação, de lança em riste, na entrega das maçãs, no final cortejo do dia de S. Nicolau.
O acto da entrega das maçãs é uma representação de velhos rituais de namoro, meio paródico, meio a sério, em que o rapaz se exibe e presta homenagem à donzela, que o espera debruçada à janela. É uma representação. É um jogo que tem associada uma série de regras e de sinais, que vão desde a lança, às fitas e à oferta das maçãs. Um jogo praticado por rapazes e raparigas. Uma espécie de dança de acasalamento. Entrar na dança ou ficar de fora é um direito que assiste a cada um(a).
Entrar é aceitar-lhe as regras. Admito que se mudem as regras. Mas aí, só deverá acontecer por determinação daqueles a quem as festas pertencem: os (os e as) estudantes. Nunca por intervenção de quem lhes é estranho, mesmo que sejam escolas ou professores, enquanto tais, mesmo que seja em nome de uma qualquer causa muito estimável e muito politicamente correcta.
Há, por esse Mundo fora, muitas festas em que rapazes e raparigas desempenham papéis diferenciados. Há umas quantas que integram a Lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade, há outras que são candidatas a integrarem-na, como as dos caretos de Podence, que são bandos de mascarados que perseguem e “chocalham” raparigas, sem que se conheça quem lhes invoque problemas de desigualdade de género.
Os usos e costumes nicolinos impõem que o pregoeiro, além de boa dicção, caixa de ar e cordas vocais poderosas, tenha barba. Eu dou comigo a pensar em como será no dia em que, em vez de um pregoeiro, tivermos uma pregoeira...

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2 Comentários

Ah que tema difícil, Caro Amigo. O que escreve admiravelmente aqui, com grande diplomacia, faz-me pensar que a chegada em massa das mulheres no mercado do trabalho permitiu de depreciar este. O capitalismo industrial constituiu um verdadeiro subproletariado feminino que entrou em concorrência com os homens em quase todos os sectores da economia. O patronato europeu explora-o a fundo. Quanto ao dos países subdesenvolvidos nem falemos…E eu vi-os …

A sua última frase põe em evidência um receio talvez justificado :- o que vai acontecer quando houver uma “pregoeira” com barba… Penso que a festa será então depreciada completamente…e irá para o seu fim!

Trata-se aqui, se bem o compreendi, de defender a pureza dum tradição, na qual o papel preponderante foi sempre masculino. Mas o mundo do feminismo evoluiu tanto nestes últimos tempos, que se perdem as referências, sobretudo com o casamento gay, no qual é preciso um grande poder de observação para distinguir num “casal” feminino gay, quem é o masculino e quem é o feminino. E portanto nas atitudes e na responsabilidade do casal ele existe, esse masculino.

O conceito de igualdade homem-mulher torna-se difícil a realizar em todos os sectores da vida na sociedade, precisamente porque há zonas de sombra. E alguns efeitos nocivos…
Quando ouço ou leio a frase: “As mulheres são discriminadas”, objectivamente são os homens que discriminam!

E como tenho, sem culpa minha, a qualidade de ser um homem (e ainda por cima preocupado pela justiça social), a ideia de me fazer associar ao que eu combato pela única razão do arbitrário do nascimento, é-me bastante desagradável.

E ao ler o poema admirável de Braulio Caldas, digo cá comigo que a beleza deste poema e o charme da homenagem não seria o mesmo, dito por uma mulher, mesmo se vestida como um homem e com uma …barba abundante e viril.
Ora, nem mais... Este tema é difícil e não o deveria ser, especialmente quando se confunde igualdade de direitos, seja ela económica, social, étnica ou de género, com identidade de género. A igualdade de direitos deve ser de todos, o que não significa que tenhamos que ser todos iguais. Felizmente, somos todos diferentes e aí é que está a grandeza e a beleza da espécie humana.