A "monografia regional" sobre a mulher minhota, que João da Rocha escreveu em 1910 para a Ilustração Portuguesa, encerra com um capítulo sobre as jóias, onde o autor descreve a sua profusão ("Traz de tudo: trabalhos em filigrana, laminados e granitados, contas de oiro, fios, gargantilhas, cruzes, borboletas, broches e medalhões. Nas orelhas, um, dois e mais pares de arrecadas, brincos, pingentes, argolas, brincos de fuso ou de campainhas, e argolas à rainha. ") e sobre a inclinação da mulher do Minho para as diferentes representações do coração.
Monografias regionais portuguesas
A mulher minhota (6)
JÓIAS
E ADORNOS— OS CORAÇÕES
A
minhota abusa extraordinariamente das jóias e trá-las com ela, sempre que para
isso se lhe oferece pretexto. O seu dote fica assim patente, sobre o seio criador,
em volta do pescoço, pendente das orelhas, como num mostruário de ourivesaria.
Traz de tudo: trabalhos em filigrana, laminados e granitados, contas de oiro,
fios, gargantilhas, cruzes, borboletas, broches e medalhões. Nas orelhas, um,
dois e mais pares de arrecadas, brincos, pingentes, argolas, brincos de fuso ou
de campainhas, e argolas à rainha. As arrecadas, as mais antigas jóias do
Minho, circulares ou em crescente, são formadas de uma a várias lúnulas,
achatadas, espiraladas, granuladas, foliáceas, rosáceas ou roliças. Os brincos à
rainha são arrecadas anulares, em filigrana, com anexos superiores dispostos
como borboletas. Os brincos fuso são, como o seu nome indica, pingentes fusiformes,
tendo a meia altura um anel granulado. As argolas são... argolas, ocas ou maciças,
com travessão liso ou curvo. Como inovação há os brincos esmaltados. Para
adornar o peito e o pescoço não faltam os grilhões maciços, os fios de contas esféricas
ou ovaladas, os cordões de trança ou trancelins, as cadeias de grandes argolas,
de onde pendem crucifixos aureolados. relicários em urna ou com edículas
filigranadas, imagens de casca de oiro, cruzes de Malta, borboletas, medalhas
com imagens esmaltada, e os infalíveis corações.
Na
arte como na vida, o coração e o que a mulher minhota mais aprecia. Não e
apenas uma jóia: é uma mania. A sanguidalha
castrenha aproxima-se da forma de um coração. Desenha-se o coração em certas
arrecadas; borda-se nas barras das saias e nos linteus dos aventais; estampa-se
nas guarnições dos lenços que põem sobre os ombros e traçam ante o peito. Os xailes
que trazem as das vilas, dobrados em diagonal e mais descaídos nas costas do
que nos ombros, ainda vistos de traz se assemelham a corações. Algumas candeias
e algumas rocas querem imitar corações. As algibeiras são corações. As pregadeiras
são corações. As espadelas são corações. E os pesos dos teares corações são.
Ai! O coração da minhota não tem sossego. Com ele brinca, mas por ele sofre. As
da serra, muito ariscas, trazem-no encolhido, apertado no peito, bem agasalhadinho
no seu mantéu. É um coração pequenino, que não sente o mundo, e todo se compraz
no conchego do lar, entre a roca onde se fia a estopa, e o fuso, onde se enrola
o fio. Coração de Penélope caseira. Por cá, pelo litoral, o coração é vasto
como o vasto mar. Não cabe no peito. Sobe à cabeça, desce ao avental. Coração
de Vénus amorosa, saída das ondas do mar. Uma voz canta:
Toma lá meu coração.
Retalha-o
em três pedaços...
E
o coração da ribeirinha anda retalhado, à mercê de Deus. Segue-lhe os caprichos,
mas não o abandona nunca. Quer vê-lo, senti-lo, encontrá-lo em tudo o que toca.
quando espadela o seu linho, quando borda o seu bragal, quando tece a sua teia,
quando cose, quando fia, quando conta, quando ao lume cisma no que há-de vir.
Pelas estradas, ao entardecer religioso dos domingos campestres, os pares de
conversados suspendem-se num doce enleio: ela, de cabeça inclinada, tenteando
com os dedos a franja do avental, e ele, a distância de respeito, voltado para
ela, apoiado ao varapau, sorrindo, com uma flor na mão... Já o sol se vai sumindo,
já as vidraças não reluzem, já o balar das ovelhas parece mais distante e
dormente... Os pássaros recolhem aos ninhos. A branca estrada escurece. A
crista dos montes esfuminha-se no céu. Hora profunda, indecisa... Profundo e
indeciso amor... Mal se ouve a voz cantar ao longe
Um que vá, outro que venha,
Outro
que siga os teus passos.
Não
te fiques assim parada, cachopinha. Regressa ao lar. Olha que o amor tem setas.
Diverte-te, mas não te tentes. Repara na cruz que trazes no peito. Não é para
rezar, pois não? É para enfeite... Ah! É. Ora a vaidosa!
Tu dizes que não tens cruz
Para
rezar o rosário...
Pois
pensa bem no resto da cantiga:
Casa-te, minha menina
E
terás cruz e calvário.
João da Rocha, Ilustração Portuguesa, n. 216, Lisboa, 11 de Abril de 1910
Fotografias de Emílio Biel C.ª
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