A selecção portuguesa de futebol em 1935 |
Recentemente, alguém
se lembrou de refazer as contas dos títulos de campeão nacional de futebol, passando
reivindicar, para o seu clube, mais
quatro títulos do que aqueles que as estatísticas oficiais lhe atribuem.
Mais recentemente ainda, houve sinais de que um outro
clube teria aderido a essa tese que, a confirmar-se, obrigaria a refazer
todas as contas, incluindo aquelas que nós aqui fizemos acerca da história do
Vitória Sport Clube enquanto primeiro clube do Minho a competir na primeira
divisão do futebol lusitano. Ora aí está algo que precisa de ser conferido.
O argumento que pretende
sustentar esta revisão da estatística e da história do futebol nacional baseia-se
na afirmação de que o campeonato nacional de futebol, a que hoje se chama Primeira
Liga, terá começado a disputar-se em 1921-22, e não em 1934-35 como, até aqui
tem sido universalmente assumido — até pelos clubes que agora defendem a
revisão do palmarés.
Para tentar aclarar
a questão, folheemos a história do futebol nacional.
Até à década de
1940, a organização do futebol nacional era, a todos os níveis, muito
incipiente. Em 1921 (aliás, em rigor, em 1922) começou a ser disputada uma
competição designada “Campeonato de Portugal” que, ao contrário do que o seu
nome pode sugerir, estava muito longe de ser um torneio nacional: no primeiro
ano, a prova resumiu-se a um jogo, que foi disputado entre os campeões distritais
de Lisboa e do Porto. Nos anos seguintes, o número de clubes e,
consequentemente, de eliminatórias da prova, variou. A partir de 1934-35, o
figurino estava consolidado: a taça era disputada por 14 clubes, repartindo-se quatro
fases (oitavos, quartos, meias, final).
Na época de 1934-35,
começou a disputar-se uma outra competição: o Campeonato da Liga (aliás, a
designação mais utilizada era a de “Campeonato das Ligas" — e nunca
ninguém a chamou de “Campeonato da I Liga Experimental”, como agora corre por
aí, vá-se lá perceber porquê). Esta competição repartia-se por duas ligas. A primeira
tinha carácter fechado, sendo disputada, a duas voltas, por oito clubes de
quatro distritos (4 de Lisboa, 2 do Porto, 1 de Coimbra, 1 de Setúbal). A
segunda, mais aberta, começou por ser disputada por 32 clubes, repartidos por 4
zonas e 8 grupos. A organização deste campeonato era assumida pela Federação Portuguesa de Foot-ball
Association.
Na altura, o modelo da prova foi
criticado, pelo seu carácter fechado, que impedia que clubes “da província”
nela competissem. No final da primeira edição da prova, o crítico desportivo
Salazar Carreira escrevia na edição de 16 de Maio de 1936 revista Ilustração, a propósito deste campeonato:
Quanto a nós, o regulamento que o rege apresenta, sob o ponto de vista desportivo, um único defeito: não estabelecer dum ano para o seguinte o direito de ascensão à 1.ª Liga ao vencedor da 2.ª Liga.
Por se tratar duma experiência, aceita-se que no primeiro campeonato se estabelecesse taxativamente quais os competidores admitidos à prova máxima; depois, porém, de verificado o interesse que a prova despertou no meio, a liberdade de acesso a quem a conquistasse por valor próprio seria um novo atractivo para o público e um estímulo para os clubes que lutam no desejo de afirmar a sua classe.
Por aqueles dias, a
época desportiva começava em Janeiro, com os jogos do Campeonato da Liga, que
se estendiam até Maio, seguindo-se-lhe, em eliminatórias disputadas em semanas sucessivas, o Campeonato
de Portugal.
Com o tempo, a Liga
transformou-se na competição futebolística nacional que despertava mais
interesse e paixão. Em 1938, eram recorrentes as sugestões de que em Portugal
se deveria assumir formalmente o modelo já adoptado em países onde o futebol ia
um pouco mais à frente: uma prova a duas voltas, o campeonato nacional, em que
todos jogavam contra todos, e outra, uma taça disputada por eliminatórias. É o
que defende, por exemplo, Salazar Carreira, na Ilustração de 1 de Julho
de 1938:
Desde a criação do Torneio da Liga, o interesse da temporada dividiu-se pelas duas competições e têm surgido opiniões de que deveria ser àquela prova atribuído o título de campeonato nacional, ficando para o actual campeonato a designação de Taça de Portugal, seguindo se assim a norma adoptada nos principais países europeus.
Achamos o critério muito razoável e bem poderiam modificar-se nesse sentido as disposições da regulamentação oficial; isto, com vistas ao futuro e sem qualquer influência presente. Desta simples hipótese ao facto de considerar já campeão de Portugal o vencedor da Liga, vai uma distância que só se justifica pela razão de fazer do desejo realidade.
Este modelo passou a
aplicar-se a partir de 1939, sem que nada de relevante se tenha alterado na
orgânica competitiva até aí adoptada — à excepção do nome das provas, claro.
Num congresso federativo realizado em 1938, foi decidido, como se lê no
primeiro número de 1939 da revista Ilustração,
“a transformação do Torneio da Liga em Campeonato Nacional, mantendo-se os
antigos preceitos que o regiam”.
No dia 8 de Janeiro
daquele ano, data em que começaram os jogos da “nova” I Divisão do Campeonato
Nacional, Silva Tavares deixava claro, na sua crónica no Diário de Lisboa, que não havia nenhuma novidade na nova prova:
A prova que hoje começou a disputar-se, organizada pela Federação Portuguesa de Football, com a denominação de “Campeonato Nacional — I Divisão” só difere do antigo campeonato da I Liga... no nome. Em tudo o mais, ela é idêntica ao torneio que se disputou durante quatro épocas, com princípio em 1934-1935, e que veio valorizar, sem dúvida, o nosso “football”.
Se o modelo da prova
continuava a ser o que fora adoptado em 1934-35, as críticas também o eram, como
escreverá o mesmo Tavares da Silva no dia seguinte:
Campeonato nacional—aquilo que começou ontem? Será designação de aceitar?
Já o dissemos. Já argumentámos como convinha. Não, e não. Nacional? Porquê, se o torneio é fechado a oito clubes — os oito felizes — representando quatro Associações, as quais, ainda que mais importantes, não gozam do monopólio da prática do “football-associativo”?
Assumida a alteração
do nome do antigo Campeonato da Liga, em Março de 1939 a Federação decidiu alterar
a designação da competição por eliminatórias que se realizava desde 1922, até
aí conhecida como Campeonato de Portugal. Passou a chamar-se Taça de Portugal.
No mais, nada se mudou: continuou a ser a prova que encerrava o calendário futebolístico
anual, antecedendo o defeso, disputada por 14 clubes e repartida por quatro fases
(oitavos, quartos, meias, final).
A primeira alteração
no modelo competitivo verdadeiramente relevante apenas aconteceu na época de
1945-46, em que passou a haver subidas e descidas de divisão, deixando a I divisão
do campeonato nacional de ser uma prova fechada.
Do que fica dito,
facilmente se conclui que, entre 1934-35 e 1945-46, a única mudança relevante que
afectou o modelo organizativo do futebol português foi de natureza meramente
cosmética. Apenas se mudaram os nomes das competições. O Campeonato da Liga passou
a chamar-se Campeonato Nacional de Futebol e o até a, designado Campeonato de
Portugal assumiu o nome que ainda hoje mantém: Taça de Portugal.
Assim sendo, nada há
a mudar na história do Vitória Sport Clube. Foi o primeiro clube do Minho a
competir na primeira divisão do futebol nacional. Ponto final.
Quanto aos que agora pretendem
conquistar quatro títulos na secretaria, o melhor é tratarem de os ganhar em
campo. Ao ritmo a que têm andado nestes últimos 35 anos, pode ser que lá cheguem no
século XXII...
0 Comentários