Jerónimo de Almeida, jovem. Caricatura de José de Meira, da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento. |
O
poeta vimaranense Jerónimo de Almeida, irmão de Eduardo de Almeida, publicou em
Fevereiro de 1932, no então muito jovem Notícias
de Guimarães (ainda mal completara um mês de existência), uma crónica “sem monóculo”
em que descreve uma descida à cidade, pela avenida que desce da estação, num
dia em que estavam a ser abatidos os velhos plátanos que davam sombra à
avenida, com o propósito de a modernizar. Entusiasmado
com tal afã modernizador, o poeta imagina mais umas quantas que poderiam
ser feitas, a avenida com bananeiras e o rio de Couros convertido num Grande
Canal à veneziana, onde não faltariam as gôndolas...
Aqui
se deixa.
SEM
MONÓCULO
Grandes melhoramentos municipais!
Vinha eu talvez a
meio da Avenida (que, para não faltar a esta insípida mania de vulgaridade, se
chama Cândido dos Reis), quando os
meus passos se detiveram em frente dum montão de árvores que se encontravam estendidas
no seu leito, neste caso mortuário,
visto tratar-se de as inutilizar. Perguntei que azáfama era aquela em deitar os
velhos plátanos abaixo, ao que logo me responderam com ar de satisfação — que
era para modernizar a mesma Avenida com nova disposição de passeios e outros
atavios, que muito a haviam de aformosear.
Como justamente o
meu fraco é ver tudo em desordem na
casa dos outros, isto é, dar-se que fazer ao operariado e remexer em tudo cuja
estética nos não satisfaz — esfreguei as mãos de contente e dei os parabéns ao
meu interpelado, como quem o fazia à própria vereação municipal. Ali mesmo
indaguei quem era o actual camarista do pelouro das obras, para com ele me
entrevistar, logo que oportuno fosse. Então a minha fantasia começou a idealizar
uma autêntica Avenida do Barão de Rio Branco (sem prédios, é claro) tendo, em
vez dos plátanos, altas bananeiras, donde penderiam formosas cachos de
deliciosas bananas para os vimaranenses saborearem nas suas sobremesas! Grandes
globos modernos jorrariam luz em todo o seu percurso, enquanto por baixo do
arco românico que sustém o pavimento da Avenida, o pequeno ribeiro que lá corre
se transformaria em Grande Canal, com românticas gôndolas venezianas para as
noites de luar...
Foi assim, meio
abstracto em minhas divagações, que meus olhos deram com uns míseros pardieiros
à esquerda, logo ao descer do passeio, a que se encostava uma pequena fonte sem
água, para os animais se dessedentarem... Para quem vinha a sonhar palácios e
maravilhas, hão-de concordar que é um pouco forte! Deixei aquelas misérias e
segui, vagarosamente, por entre uma estranha malta de gente, que, como num bairro
judeu, se catava ao sol, enquanto um bando de crianças sujas descascava
laranjas sobre o passeio. Estive para chamar um polícia, mas não vendo nenhum,
prossegui o meu caminho.
Ao alto duma parede
branca — em que julguei vislumbrar um vestígio da histórica muralha — berrantes
letras de reclame gritavam, em cores vivas, “Vacuum Oil” e cartazes ambulantes
estacionavam por ali, atraindo os frequentadores do Cinema. Os engraxadores
regalavam-se a ver quem passava, fitando-me o calçado como os alfaiates
contemplam o nosso fato e os chapeleiros o chapéu. Como nunca me preocuparam
estes pormenores — a não ser pelo seu lado cómico, pois se levo o calçado sujo
sei que ninguém me paga para o mandar limpar e se o fato está coçado ninguém me
dá outro — relanceei um olhar indiferente à minha volta e encarei com o D. Afonso. “Então por aqui!” estive eu para
murmurar, usando do cumprimento que mais propriamente deveria partir de seus brônzeos
lábios cerrados em muda, mas eloquente expressão de altivez. É que estranhei
não ir encontrá-lo para as bandas do Castelo, do seu Alcácer fortificado,
erguido no topo da colina que se avistava da estação do C.º de Ferro. Com
franqueza, não estava no seu lugar numa praça com toda a feição moderna, todo o
ar civilizado de hoje. Os monumentos devem ter um ambiente próprio, um cenário
adequado que lhes não amesquinhe nem o aspecto nem a significação. Em meu entender
— e deve ser este, sem vaidade, o mais criterioso — se o Toural tinha uma Fonte
decorativa, que foi deslocada há bastantes anos para outro largo da cidade, era
essa Fonte ou Chafariz que devia ostentar-se naquela praça, embora actualmente
ajardinada, pois muito bem lá ficariam as suas bicas a jorrar água, sendo um
motivo de beleza ouvi-la a cair — além de que se respeitava a tradição.
Dizem-me que o D. Afonso já dera um pequeno
passeio doutro lugar para ali; pois foi pena que o não desse maior, para junto
do Castelo, porque era lá onde devia estar.
A propósito lembrou-me
que, suponho na maioria das cidades do país, existem hoje Comissões de
Estética, devendo ser elas unicamente que devem orientar toda a realização de
obras públicas, evitando deste modo se cometam os mais deploráveis erros em toda
a casta de empreendimentos municipais, particularmente no que respeita a aformoseamentos. É preciso ter sempre em
vista, uma Câmara que procura embelezar a sua terra, não faltar nem ao respeito
que se deve aos monumentos históricos, nem à boa plástica das suas novas
construções; destruir apenas aquilo que se tornou inútil ou cujo estado ruinoso
e pobre carece de demolição. Mas as linhas características duma cidade antiga
não devem ser substituídas com novidades quase sempre péssimas em valor
arquitectónico. Não modernizemos, aperfeiçoemos, o que é coisa muito diferente.
Uma relíquia restaura-se e não se adorna com enfeites impróprios da época que
representa. É assim que se faz hoje em dia nos países mais civilizados e eu
podia recordar aqui algumas cidades no norte da França e outros países, que tão
comovedoramente falam do passado, e onde a cada canto há uma curiosidade que
nos atrai nos prende e faz meditar.
Jerónimo de Almeida
Notícias de Guimarães, 22 de Fevereiro de 1932
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