O Vitória, no tempo do foot-ball (1927-1932)

Em tempos recentes, tem havido uma tentativa de revisão da história do futebol em Portugal, com um clube, o Sporting, a reivindicar que lhe sejam atribuídos mais quatro títulos de campeão nacional, e, aparentemente, com um outro, o F. C. Porto, a aderir aos seus argumentos. Como esta revisão, a ser assumida, implicaria alterações em cascata na história do ludopédio nacional, que afectariam muitos clubes, nomeadamente o Vitória Sport Clube, que deixaria de ser o primeiro clube do Minho a participar no campeonato nacional de futebol (sendo ultrapassado pelo Braga, pelo Vianense e pelo Fafe) fui em busca de informações que possam esclarecer a questão, tendo verificado que não tinha publicado nestas Memórias a segunda parte de um trabalho sobre o nascimento e os primeiros passos do Vitória Sport Clube que escrevi, respondendo a um desafio do meu amigo Miguel Salazar, que ilustrou os textos com cartoons magníficos. A primeira parte está aqui: O Vitória, no tempo do foot-ball (1922-1927). A segunda, fica aí abaixo.

Cartoon de Miguel Salazar
Criado no Outono de 1922, no início de 1927 o Vitória Sport Clube era uma agremiação desportiva em vias de consolidação e em condições de começar a disputar a hegemonia do seu principal rival no distrito, o Sporting Clube de Braga. Tinha resolvido o problema das instalações, ganhara “músculo” após a fusão com o Atlético Sport Clube, acabara de vencer o campeonato distrital de infantis. O futuro apresentava-se promissor. Todavia, os tempos que se seguiram foram, em tudo, o contrário do que seria previsível: durante cinco longos anos, o Vitória entrou num processo de declínio que parecia anunciar a sua extinção e o futebol, enquanto modalidade de competição, deixou de ser praticado em Guimarães. 
António Macedo Guimarães, fundador e primeiro presidente do Vitória.

Os sinais da crise já eram visíveis nos primeiros dias de 1927 e estão descritos na página de desporto de A Razão, o jornal republicano onde colaborava Heitor da Silva Campos, fundador e presidente do então já extinto Atlético Sport Clube, de quem falaremos mais à frente. Essa secção desportiva aparecia com uma ambição declarada: fazer prevalecer o desporto em Guimarães, suster-lhe o declínio e erguê-lo de novo à culminância a que tem direito. Num texto programático, assinado por um tal Siul, em que se procurava responder à pergunta: como compreender o constante progresso do “Desporto” em todo o nosso país e como permitir a sua decadência em Guimarães?. Aí ficaram registadas as dificuldades que estrangulavam o desenvolvimento do desporto vimaranense, contrariando “os enormes sacrifícios de meia dúzia de rapazes cheios de boa vontade”, como Afonso da Costa Guimarães, Heitor da Silva Campos, Gualberto Pereira, Eduardo Passos e António Macedo Guimarães”, e se apontaram as causas daquela “quase decadência”: a apatia e as dificuldades financeiras, “o problema que a todos assusta e faz medo”. Segundo o articulista, não bastava que a direcção do Vitória se desse por satisfeita em pôr dinheiro do seu bolso. Impunha-se o apoio dos poderes públicos, nomeadamente da Câmara Municipal, à imagem do que se via acontecer noutras terras. Para tanto, seria necessário que os directores do clube fossem mais lestos e mais “fura-paredes” na busca de soluções para os problemas com que se confrontavam. Mas, ao que se percebe, também eles já estariam contaminados pela apatia geral.
Num segundo artigo, no mesmo número da A Razão, o comentador desportivo que assinava com o pseudónimo de Penalty, batia na mesma tecla: “que o sport em Guimarães atravessa uma crise acentuada, e entrou em franca decadência” era uma verdade reconhecida e incontestável. Segundo o jornalista, 1926 marcou, indiscutivelmente, o declínio desportivo no meio vimaranense, a contracorrente do que se via acontecer por todo o lado:
Quando em toda-a-parte, no país como no estrangeiro, nos grandes centros como nas mais humildes terreolas, o sport avança e progride, embora à custa de sacrifícios por vezes bem pesados, Guimarães que teve também já um período de relativo progresso desportivo, recua, cede terreno, e entra numa fase regressiva inexplicável.
O autor apontava dois motivos principais para a situação a que se tinha chegado: “a apatia dos dirigentes desportivos e a falta de apoio e de auxílio da massa do público”, sendo que o primeiro motivo era a razão de ser do segundo (o desmazelo da Direcção do Vitória acarretou também, e em larga escala, o desinteresse, o arrefecimento, o desânimo da massa popular pelas coisas desportivas).
E era impiedoso em relação à actuação da direcção do clube:
No dia em que os dirigentes desportivos desta terra, que se encontram à frente da Direcção, encarem a sério e com vontade o seu papel de dirigentes e não de comparsas, trabalhando a valer e com ânimo, o sport em Guimarães tornará aos seus dias de esplendor.
Nada disto se tem feito, porém. Lamentámos até que criaturas tão respeitáveis como as que se encontram à frente daquele clube não reconheçam a triste e inglória figura que estão fazendo e que nada depõe em seu favor. Tendo por eles uma consideração ilimitada, esta não nos desobriga, antes pelo contrário, do dever que temos de falar a direito, por forma a que nos ouçam e atendam as reclamações e os queixumes daqueles que, como nós, não compreendem a razão deste marasmo, deste desmazelo desportivo em que se vai vivendo uma vida artificial, sem finalidade, sem grandeza.
A Direcção do Vitória tem o dever de trabalhar, e não de fingir que trabalha. Quem aceita cargos da natureza daqueles que os membros do Vitória aceitaram, sem coacções, antes por livre e espontânea vontade, ou trabalha a valer dando satisfação à confiança que outros neles depositaram e correspondendo ao compromisso moral que contraíram para com o Club ao aceitarem o encargo, ou então recolhem-se a casa, a tratar doutros assuntos em que sejam mais diligentes.
Na edição do Pro-Vimarane da primeira quinzena de Maio de 1927, o cronista desportivo, que assinava com o pseudónimo Luar, lançava um apelo: “abandonemos, pois, a inércia, a indolência, a preguiça, o sono — e mãos à obra. Vamos fazer saber de Norte a Sul, que Guimarães dentro em pouco, vai educar fisicamente os seus compatriotas”.
Notícia do último jogo de futebol no Campo da Perdiz (Jornal Conquistador, 1 de Março de 1928).

 

O último jogo no campo da Perdiz

Por aqueles dias, o Vitória recuperara a designação de Sport Club de Guimarães e era administrado por uma direcção provisória, que parecia empenhada em arrumar a casa, chegando a anunciar que tinha riscado de sócios todos os que tinham quotas atrasadas há mais de quatro meses, os quais seriam readmitidos se regularizassem a sua situação na Chapelaria Macedo até ao final do mês de Maio. Porém, nem os apelos ao despertar desportivo vimaranense, nem a acção dos directores do Vitória produziriam os efeitos desejados.
Outras causas eram apontadas para a decadência do futebol em Guimarães. Uma delas tinha a ver com a falta de organização e de disciplina dos jogadores do Vitória dentro das quatro linhas. Numa crónica de A. S. Lobo, publicada na Velha Guarda em Outubro de 1928, notava-se que a receita para o sucesso dentro do campo era a figura do capitão, “um homem a quem se obedece, para haver, em campo, ou fora dele, o máximo respeito. Porém, em Guimarães não era assim. Em vez de mandar um, mandavam todos. Da ausência de uma voz de comando que se fizesse ouvir e respeitar teria resultado a decadência do desporto favorito dos vimaranenses. O que faltava ao Vitória era a figura tutelar do treinador.
A direcção do Vitória Sport Clube tivera, a seu tempo, consciência dessa deficiência, tendo sido noticiado, em Março de 1927, que iria encetar negociações a fim de conseguir um entraineur experimentado para o seu clube. A notícia está no Ecos de Guimarães, com o seguinte comentário:
Há muito que esta necessidade se impõe. Havendo, como há, entre nós, rapazes de boa vontade, com indiscutíveis aptidões, chega a causar mágoa vê-los jogar sem uma orientação definida, à mercê do capricho de cada um. Creia a direcção do Vitória que o conseguir-se esse entraineur será o primeiro e mais seguro passo para o sport em Guimarães tornar a ter uma época de esplendor e de grandeza.
Porém, não seria ainda nessa altura que o Vitória encontraria o seu primeiro treinador. As tentativas de ressurgimento do clube desenvolvidas pela direcção do Vitória não tiveram qualquer sucesso. Longo seria o ocaso que se seguiria. Extinto o fulgor dos primeiros anos, Guimarães deixou de ter representante nos campeonatos distritais e o futebol foi-se apagando das páginas dos jornais da terra.
O último jogo no Campo da Perdiz de que temos notícia aconteceu no dia 19 de Fevereiro de 1928. Era Domingo Gordo, mas a assistência, o jogo desenvolvido e o resultado foram magros. Defrontaram-se, em desafio amigável, as primeiras equipas do Sport Clube de Guimarães e do Estrela Sport Clube, de Braga. A equipa vimaranense, que não pode contar com três dos seus melhores elementos (Constantino, Ferreira e Abílio), jogou remendada com reforços de Vizela, alinhando com Zeferino; F. Ribeiro e Benjamim (cap.); Mário, Fernandes e Costa; Salgado, M. Ribeiro, Oliveira, Silvério, Albano. O jornal O Conquistador publicou um curioso relato do jogo, onde avaliava a prestação das equipas. Sobre a performance dos vimaranenses, escreveu o cronista:
Zeferino nada teve de extraordinário; a bola que deixou entrar não tem desculpa possível. Chutada com pouca força, mergulhou tardiamente e de barriga para baixo, o que é um erro. F. Ribeiro, um elemento de Vizela que jogou aqui pela primeira vez, agradou plenamente no seu lugar de back. Benjamim bem no princípio, decaiu no final. Mário e Costa bem. O primeiro precisa de variar o seu jogo, não se limitando só a passar jogo à sua ponta. Para o final os de Braga já lhe conheciam essa maneira de jogar. Fernandes, fraco. Salgado bem, só com o defeito de jogar muito atrasado. M. Ribeiro, o melhor de todos os jogadores em campo. Oliveira, deslocado do seu lugar, não conseguiu brilhar. Silvério outro elemento de Vizela, fraco, muito fraco mesmo, fazendo-se notar só pela maneira como se coloca. Albano, mal. 


Automobilismo, ciclismo e gincanas de jericos

Daí para a frente, só teremos notícia do Campo da Perdiz enquanto palco de torneios de tiro aos pombos que, com a nova moda das gincanas, as corridas de bicicletas e o automobilismo viriam preencher o espaço deixado vago pelos jogos de futebol nas tardes de domingo. Por aqueles dias, as gincanas na parada das novas instalações dos Bombeiros, recentemente inauguradas no Proposto, eram a coqueluche da moda no que toca a espectáculos desportivos. Com percursos e obstáculos cuidadosamente preparados, havia-as de automóveis, de bicicletas, de motocicletas, de patins e, até, de jericos. Funcionavam como meio de distracção pública e fonte de receita para a corporação dos Bombeiros Voluntários. A primeira gincana, para veículos automóveis, teve como vencedores Belmiro Jordão, na categoria masculina, e a sua irmã Júlia Jordão, na categoria feminina. Belmiro Jordão viria a destacar-se como piloto desportivo, o que levaria o jornal Velha Guarda a vaticinar, no seu número de 14 de Setembro de 1930, que o seu nome ficará gravado nos anais desportivos da nossa terra e marcará acentuadas honrarias para a velha Vimaranis”. Como curiosidade, registe-se que a primeira gincana de jericos de Guimarães aconteceu no dia 2 de Junho de 1929 e teve como vencedor um jumento montado por José Gilberto Pereira. Os restantes lugares no pódio foram ocupados por José António Martins Sequeira Braga e António Freitas.
No Outono de 1928, anunciou-se em Guimarães a fundação de um novo clube desportivo que nascia para despertar as energias mortas, colocando Guimarães, em matéria de desporto, a par das cidades congéneres. Ao dar a notícia, o Ecos de Guimarães de 3 de Novembro, testemunhava que devido à boa vontade que vemos pulsar no coração moço desses rapazes cheios de boa vontade e entusiasmo, que não se pouparão a sacrifícios para levarem por diante tão simpática iniciativa. Nascia o Grupo Desportivo Atlético Português, liderado por Humberto Guimarães Pinheiro. Quando se anunciava que procurava uma casa para instalar a sua sede, Rui Lencastre sugeria, nas páginas dos Ecos de Guimarães de 10 de Novembro de 1928, que a prioridade deveria ser outra: o primeiro passo a dar seria antes o arrendamento do campo de jogos da Perdiz, que é relativamente barato, e que está sem arrendatário desde há tempos pela liquidação infeliz do grupo desportivo existente nesta cidade. Note-se que, naquela altura, o Vitória era dado como “liquidado”.
O Grupo Desportivo Atlético Português encontraria a sua sede, mas não seguiria o conselho de Rui Lencastre, que afirmara que “não se pode compreender um grupo com esta finalidade sem um campo de jogos: é o mesmo que um corpo sem pernas, ou um livro sem folhas”. O Campo da Perdiz não seria arrendado e a esperança do ressurgimento do desporto em Guimarães, por obra desta agremiação, seria gorada. O Desportivo Atlético não seria mais que um fogo-fátuo: a única iniciativa que lhe conhecemos é a da festa da inauguração do retrato do seu presidente, descerrado na sua sede, com um copo-de-água e entre brindes entusiásticos, no dia 21 de Maio de 1929
Entretanto, o futebol voltara à sua anterior condição de divertimento do rapazio. Durante anos, as únicas notícias sobre o ludopédio que encontrámos nos jornais vimaranenses são pequenas notas de protesto contra grupos de rapazes acusados de perturbarem o sossego público com jogos de futebol, ora no Toural, ora noutros largos da cidade. Coisa de mariolões, a quem o trabalho não enobrece, como um dia se leu nas páginas do Comércio de Guimarães. A partida de Bernardino Faria Martins para o Congo Belga, em finais de 1928, para se dedicar à carreira comercial, também ajuda a explicar o apagamento do futebol das páginas dos nossos jornais. Assinando na crónica desportiva com o pseudónimo Sérgio Vidal, tinha sido, desde 1922, um dos principais promotores da causa do desporto, em geral, e do futebol, em particular, em terras de Guimarães.
Carlos Machado, principal entusiasta da instalação do Campo do Benlhevai.


Ressurgimento no Benlhevai

1932 seria o ano do renascimento do futebol em Guimarães. Em meados de Janeiro, a recém-criada Sociedade de Defesa e Propaganda de Guimarães, dirigiu à Comissão Administrativa da Câmara Municipal um documento, subscrita por várias instituições culturais, desportivas e de ensino, em que se demonstrava a conveniência da criação de um campo destinado ao desenvolvimento dos desportos, reputados úteis à educação física da juventude. A localização sugerida era a do Campo do Salvador, que nós hoje conhecemos por Campo de S. Mamede, não implicando mais do que pequenas obras de adaptação (uma ligeira terraplanagem e o levantamento de um parapeito, pouco mais que à altura do solo, marginando a estrada). O aparelhamento do campo, que o dotaria de balneário, vestiário, mictórios e bancadas, ficaria a cargo de uma empresa que nasceria para o efeito. Assim se criariam condições adequadas à prática de diferentes modalidades desportivas, ao mesmo tempo que se daria aos referidos terrenos uma aplicação inteligente, tirando-lhe aquele ar tão destoantemente maninho que oferecem, dada a sua incorporação nas balizas da cidade. 

Notícia do jogo inaugural do Campo do Benlhevai (Notícias de Guimarães, 1 de Fevereiro de 1932).
No entanto, por aqueles dias já algo se movia em Guimarães. O Vitória Sport Clube, renascia das cinzas. A sua direcção, constituída por meia dúzia de rapazes que, segundo o recém-nascido Notícias de Guimarães, não nadavam em dinheiro, tendo em Carlos Machado o principal impulsionador, metia mãos a um grande empreendimento, e dotava Guimarães com um campo de jogos apto para a prática de várias modalidades desportivas. Situava-se dentro da cidade, a curta distância do Toural, num terreno arrendado entre a Casa do Proposto e a Escola Industrial, e seria o palco da recomposição do Vitória Sport Clube enquanto elemento central a identidade vimaranense. Esse seria o palco do ressurgimento do Vitória, que aí iria celebrar uma impressionante série de títulos de campeão distrital e tornar-se no primeiro representante do Minho no campeonato nacional de futebol.
Equipas do Vitória (de preto) e do Académico do Porto, que alinharam no Benlhevai no dia 29 de Maio de 1932 (resultado 0-1).
O desafio inaugural do campo do Benlhevai aconteceu na tarde de 24 de Janeiro de 1932, sendo apadrinhado pelo Sport Comércio e Salgueiros, do Porto, e abrilhantado pela Banda da Oficina de S. José. O pontapé de saída simbólico, testemunhado por uma multidão de três mil espectadores entusiastas, foi desferido pela menina Crisanta Moura Machado. Das incidências do jogo encontrámos relato detalhado no Notícias de Guimarães. O Vitória alinhou com Adélio; Benjamim e Manuel Rita; Armando, Mário e António; Antunes, Velha, Constantino Lameiras, Camilo e Virgílio. Para a história ficou um resultado desequilibrado: Vitória, 1 – Salgueiros, 6. Apesar do desfecho desfavorável ao clube da terra, o desafio terminaria no meio da geral satisfação do público. Havia motivo para celebração: o futebol estava de regresso a Guimarães.
Dali para a frente, praticamente não haveria domingo sem futebol. Até ao final de 1932, o Vitória disputou quarenta jogos, 32 no Benlhevai, 8 fora de portas. Averbou 17 vitórias, 14 derrotas e 9 empates, marcou 75 golos e encaixou 85. Começava a ganhar balanço para o grande salto em frente que estava para acontecer.
No final da época futebolística de 1931-1932 (que, em Guimarães, foi pouco mais do que meia época, uma vez que tinha começado a 24 de Janeiro), o comentador desportivo de O Comércio de Guimarães, Francisco Formiga, fez o seu balanço dos 29 jogos realizados até 30 de Junho, produzindo estatísticas muito curiosas.
Embora a época de foot-ball fosse um pouco curta, motivada pelo pouco tempo que aqui o sport produz, não deixou de ser verdadeiramente interessante, escreveu o comentador. O Vitória realizou 21 jogos em Guimarães e 4 fora, contando 9 vitórias, 3 empates e 9 derrotas em casa e 2 vitórias, 1 empate e 1 derrota fora, contando-se 53 golos marcados e 2 sofridos. Por aqueles dias, o avançado Constantino Lameiras era o artilheiro mais eficaz da equipa, tendo marcado 29 golos, mais de metade dos golos somados pelo Vitória.
Jogo de futebol no Benlhevai.
Mas o número mais revelador que ressalta da estatística do Comércio de Guimarães refere-se ao número de jogadores utilizados, que o cronista revela, com alguma ironia de permeio:
O Vitória desta cidade, embora durante a época tivesse conseguido resultados lisonjeiros para o seu nome e para a sua região, também alcançou um record brilhantíssimo, que, no meu entender, não pode ser igualado por qualquer Clube português, pois durante a época finda conseguiu que alinhasse pela sua primeira categoria 40 jogadores!
Eis o rol dos jogadores que alinharam pelo Vitória entre Janeiro e Junho de 1932: Ricoca, Elísio, Tintalão, Benjamim, Manecas, Martinho, Zeca Gaiteiro, Machado Reu; Médios: André, Cunha, A. Secândido, Constantino Lameiras, Mário, Hernâni, Mateiro, António Freitas, Camilo, Virgílio, Chico, Ferreira Labita, Neca Machado, Zeca das Taipas, Faria, Rita, Pina, Velha, Costa, Macedo, Queirós, Armindo, Elísio Carvalho, António Adelaide, Pantaleão, S. Braz, Paredes, Almeida Santos, Camisseiro, Sampaio, Fouces e Pepe. Para que se perceba a verdadeira dimensão deste número, convirá recordar que naquele tempo ainda não havia lugar a substituições durante os jogos de futebol, sendo as equipas constituídas por não mais do que os onze elementos que entravam em campo no início de cada jogo.
Segundo a contabilidade do cronista de O Comércio de Guimarães¸ naquele meio ano o Vitória nunca repetiu a mesma equipa, tendo alinhado com o seu equipamento alvinegro nada mais de 3 guarda-redes, 6 defesas, 9 médios e 22 avançados, o que daria para formar três “teams” com idêntico valor. Esta inconstância era reveladora de que ainda resistia um dos obstáculos que estiveram na base do longo ocaso do Vitória, que se estendeu entre 1927 e 1932: a ausência de uma voz de comando com força e conhecimentos suficientes para se fazer respeitar. O Vitória ainda não encontrara a figura do treinador.
Concluía o jornalista:
Diante do Vitória vejo um futuro que, não só o honrando, honrará a terra de Afonso Henriques. Mas, para isso é preciso que sejam eliminadas algumas deficiências.
Os célebres irmãos Plácido: Camilo, Adélio ‘Ricoca’ (guarda-redes) e Mário.


Futebol e identidade local

Por aqueles dias, ia em crescendo o entusiasmo com o futebol. O campeonato de Portugal foi particularmente renhido e a final, realizada a 3 de Julho, entre o Belenenses e o Futebol Clube do Porto, terminou com um empate a quatro bolas. Houve necessidade de uma finalíssima, que aconteceria duas semanas depois, em Coimbra. Este jogo, mais do que um encontro entre duas equipas de futebol, uma do Porto, outra de Lisboa, foi assumido como um confronto entre o Norte e o Sul do país. E as terras do Norte estavam do lado do F. C. Porto. De Guimarães partiram muitas dezenas de aficionados, boa parte deles numa camioneta alugada, representando a sua cidade numa vibrante manifestação de apoio aos representantes da sua região. Entusiastas, defensores acérrimos do Porto, que o mesmo é que dizer do Norte, eles lá foram levar-lhes com a sua presença e entusiasmo, o apoio moral que encoraja e torna heróis os mais pusilânimes, noticiava O Comércio de Guimarães. Segundo as notícias, naquele dia em Guimarães viveram-se horas de ansiedade, aguardando por notícias, que chegariam por telegrama, desencadeando manifestações de regozijo e entusiasmo. O Futebol Clube do Porto vencera o campeonato de Portugal, derrotando o Belenenses por 2-1.
Os jogos de futebol começavam a afirmar-se como algo mais do que simples disputas desportivas, para se tornarem também em manifestações de afirmação local e regional.
A componente “patriótica” dos desafios de futebol viria ao de cima quando, menos de dois meses depois, o Vitória enfrentou o Futebol Clube do Porto pela primeira vez. O jogo foi marcado para 11 de Setembro e teve lugar no parque das Fontainhas, na Vila das Aves. Gerou grande mobilização entre os vimaranenses, a ponto de se organizarem comboios especiais entre as estações de Guimarães e de Negrelos. Dizem os relatos dos jornais locais que o jogo se pautou por certo equilíbrio, e que o Vitória acabaria vencido pela sorte e pela arbitragem. O cronista de O Comércio de Guimarães confidenciaria: cheguei a ter a impressão que o Vitória iria regressar à sua fidalga cidade como vencedor, visto o seu esplêndido jogo nos primeiros 20 minutos. Mas essa impressão não se confirmou e os de “calções de seda” venceram com um contundente score de sete bolas sem resposta.
Este jogo faria correr alguma tinta nos jornais vimaranenses, não tanto pelo resultado, mas pelo comportamento de parte dos espectadores vimaranenses, que cuidaram mais  de apoiar o adversário do que o clube da sua terra. O cronista F. Formiga lavrou o seu protesto contra esta atitude, notando que se é certo que quando da luta “pró campeonato” o Norte se uniu para apoiar o F. C. do Porto, é porque nessa altura ele era o legítimo representante do Norte, e hoje era nosso inimigo, e que que do apoio de todos os seus conterrâneos dependia uma parte da vitória, que encheria de honra a terra de Afonso Henriques. Era o futebol a afirmar-se como esteio fundamental da identidade local. Já não era só o virtuosismo dos jogadores e a qualidade do jogo de equipa que entrava em campo em cada jogo de futebol. Era também a honra e a glória de toda uma cidade. 
Heitor da Silva Campos, primeiro responsável pela reorganização do Vitória em 1932.


O primeiro clube “da província”

O processo de reconstrução do Vitória e da sua afirmação como o principal clube da província não estaria isento de acidentes. Faltava-lhe, além de treinador, estabilidade directiva. O mais activo dos membros da sua comissão administrativa na construção do campo do Benlhevai, Carlos Machado, afastara-se e, com António Andrade, fundara um novo clube, o Sporting Clube de Guimarães, que teria uma existência efémera. O seu baptismo em campo aconteceu em Esposende, no dia 30 de Julho de 1932. Para a pequena história ficou um resultado volumoso: o Sporting vimaranense foi derrotado pelo clube da casa por 16-1 e, ao que parece, por aí se ficou.
Em Outubro de 1932 foi designada uma nova comissão administrativa do Vitória, presidida por Heitor da Silva Campos, de que faziam parte Isaías Vieira de Castro, Francisco Pinto Rodrigues, Amadeu da Costa Carvalho e Eduardo Pereira do Santos. Heitor Campos, que tinha sido presidente do Atlético Sport Clube, seria o responsável pela estabilidade do clube e pela sua caminhada ascendente nos tempos que se seguiriam. Não foi por acaso que os responsáveis pelo Suplemento Desportivo do Notícias de Guimarães o homenagearam logo no seu primeiro número, de 27 de Novembro de 1932, apelidando-o de salvador do Vitória Sport Clube.
A bem da justiça, tal título deveria ser repartido com Carlos Machado e com outros vimaranenses de condição humilde. Foi graças ao seu esforço e ao seu sacrifício que Guimarães voltou a ter condições para a prática de futebol de competição, com a instalação do campo do Benlhevai. Criadas essas condições, o passo seguinte seria a recomposição institucional do Vitória, dotando-o duma estrutura organizativa que lhe permitisse afirmar-se no contexto desportivo regional e nacional. Este processo seria tomado em mãos por personalidades oriundas de uma certa elite social vimaranense que então acompanharam Heitor Campos.
Para que o Vitória funcionasse como uma verdadeira equipa, faltava-lhe um capitão-geral que fosse escutado e se fizesse respeitar pelos jogadores. Em Novembro, Eduardo M. Cunha, que na crónica desportiva assinava com o pseudónimo de Unhaca, lembrava à comissão Administrativa do Vitória a necessidade absoluta de um entraineur, porque só assim poderá existir nesta cidade, um forte núcleo de futebol, que poderá defender galhardamente não só as cores do V. S. C., como também desportivamente, o bom nome desta linda, velha e nobre cidade de Guimarães. Era um treinador que faltava ao Vitória, para que pudesse enfrentar de igual para igual com as equipas de Lisboa e do Porto e afirmar-se como o primeiro entre os clubes de província. 1932 não chegaria ao fim sem que esta lacuna fosse preenchida, com a contratação de Genecy, o primeiro dos treinadores de origem húngara que fariam história no principal clube de Guimarães.
Depois, foi o que se viu. O Vitória entrou num processo imparável de afirmação regional e nacional. Logo na época de 1933-1934, retomava a sua participação em competições oficiais e quebrava a hegemonia do Sporting de Braga, conquistando o seu primeiro título de campeão distrital. Enquanto se disputou este campeonato, o Vitória ainda o venceria onze vezes, em treze possíveis. Em 1941, entrou para a História como o primeiro clube do Minho a competir no campeonato nacional de futebol. Com o tempo, iria consumar o destino que lhe estava traçado desde o início, tornando-se no clube de fora de Lisboa e do Porto com mais participações no campeonato maior do futebol nacional. O primeiro entre os clubes “de província”. Cumpriu-se o sonho dos homens da fundação de 1922 e do ressurgimento de 1932.
Primeiro emblema do Vitória Sport Clube, que se distingue do actual pela posição de D. Afonso Henriques (aqui aparece a olhar de frente) e pela sigla inscrita do lado direito, sob fundo branco, de onde haveria de cair a letra V. Em 1972, aquando da celebração do cinquentenário vitoriano, foi revelado que o seu autor era o arqueólogo Coronel Mário Cardoso, durante várias décadas presidente da Sociedade Martins Sarmento, que explicou assim a sua criação: "com a sugestão das palavras Vitória e Guimarães vinha logo ao pensamento o fundador da nacionalidade Afonso Henriques, “ex-libris” de Guimarães, em atitude serena mas destemida da imagem que o grande estatuário Soares dos Reis modelou. Acerca das cores preta e branca parece que os fundadores do clube já pressentiam o que essas cores simbólicas viriam a significar, a admissão no clube de todos sem distinção que nele se quisessem associar tanto africanos de cor como os brancos europeus.”

(texto e cartoon originalmente publicados na revista Mais Guimarães)


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