Quando Portugal Ardeu, Guimarães... nem por isso


A ler o impressionante “Quando Portugal Ardeu”, em que o jornalista Miguel Carvalho nos leva de volta ao pós-25 de Abril e à violência terrorista promovida pela rede bombista de extrema-direita em que o jornalista alemão Günter Wallraff andou infiltrado, para escrever uma reportagem que ficaria na história, confirmo o que já sabíamos: em Guimarães, no pasa nada. Enquanto o incêndio alastrava à sua volta, com assaltos a sedes de partidos políticos de esquerda e atentados bombistas que deixaram um pesado lastro de vítimas, Guimarães parecia território de um outro país, passando praticamente incólume à violência que então grassava em Portugal, com especial incidência neste Norte e neste Minho. Da acção dos agentes da rede bombista, montada pelo auto-proclamado Movimento Democrático de Libertação de Portugal e coordenada a partir de Espanha, apenas há registo, em Guimarães, de um “crime de lesa-pátria”, que ainda hoje continua envolto por um denso véu de mistério e especulação: o roubo das jóias do Tesouro  da Senhora da Oliveira, que pertenceu à antiga Colegiada, perpetrado no dia 16 de Novembro de 1975 e assim contado, no dia 22, pelo saudoso Notícias de Guimarães:
O insólito acontecimento deu-se pouco depois do meio-dia, quando o referido estabelecimento estava prestes a encerrar as suas portas. Então encontrava-se ali apenas o funcionário Sr. Fernando da Cunha, casado, de 40 anos, que ciceronou um casal muito apresentável, ainda novo, que mostrou Interesse em fotografar a Grande Cruz Processional que está na Sala de Ourivesaria, onde se guardam outras peças de alto valor. O guarda acedeu e a certa altura, ao entrar na referida sala foi subitamente agredido com a coronha de uma pistola na cabeça e de seguida amordaçado, metendo-lhe o agressor uma tangerina na boca e atando-o com o próprio cinto da vítima, tentando ainda fazê-la desmaiar por meio de ministração de éter, ao que o Fernando Cunha resistiu, a despeito de se encontrar a jorrar sangue em abundância. Manietado, assim, os agressores tiraram-lhe as chaves da referida sala de ourivesaria onde entraram, mostrando-se muito seguros da sua, missão, que deveriam ter estudado no dia anterior em visita então feita ao mesmo Museu. 
Tão seguros estavam, os bandidos nada mais lhes Interessou do que a vitrine onde se encontravam as preciosas jóias que constituíam o Tesouro da Senhora da Oliveira, avaliado em muitas dezenas de milhares de contos, cujo vidro cortaram com um diamante, levando dali tudo quanto se encontrava à exposição e que foram as seguintes peças: Coroa de Nossa Senhora da Oliveira, cravejada de pedras preciosas, do século XVIII (que há vinte anos fora avaliada em 4 mil contos); Meada de Ouro Fino com 32 metros, do século XVII; Peitoral em prata dourada e pedras preciosas, do século XVIII; Rosário em ouro do século XIV; Cadeia Indiana com cruz, do século XVII; Firmal em ouro, cordão em ouro com 114 cent. do século XVII; Grilhão em ouro do século XVIII; Condecorações em prata, do século XVIII e Passador em prata do século XIV. 
Apesar de muito ferido, o funcionário do Museu conseguiu alcançar uma porta e abri-la, saindo para ir alertar a polícia. Mas, entretanto, os bandidos tinham-se posto em fuga num carro que os aguardava à porta do Museu, sem que do exterior alguém se apercebesse da manobra.
As investigações policiais concluiriam que os autores do roubo foram um antigo militar dos fuzileiros, que desertara depois de abortada a tentativa de golpe militar do 11 de Março de 1975, José Maria da Silva Horta, e Maria Alice da Silva Marques, de quem se sabe que teria sido secretária de um dos dirigentes do Partido do Progresso / Movimento Federalista Português, de inspiração spinolista. Do ex-militar, perdeu-se o rasto, tendo havido notícias, não confirmadas, de que terá sido avistado no Brasil e no Chile. A sua cúmplice chegou a estar presa, mas conseguiu evadir-se do Hospital Miguel Bombarda, onde esteve detida, desaparecendo também, sem mais notícias até hoje. Em 1987, Silva Horta e Maria Alice foram julgados à revelia por aquele crime, considerados culpados e condenados a penas de 20 e 15 anos de prisão, respectivamente, além do pagamento de uma indemnização de um milhão de contos. Não cumpriram as penas, porque nunca foram encontrados, tal como as jóias do Tesouro da Senhora da Oliveira.
O valor das peças desaparecidas é incalculável. Só a coroa, em ouro com pedras preciosas incrustadas, tinha sido, avaliada, em meados da década de 1950, em vinte mil contos, que corresponderiam, com valores actualizados aos dias de hoje, a mais de um milhão e meio de contos  - sete milhões e meio de euros. Ninguém sabe onde possam estar, nem sequer se ainda existem.
Sobre o roubo do Tesouro da Senhora da Oliveira subsistem muitas dúvidas, nomeadamente quanto ao grau de envolvimento dos principais responsáveis do MDLP, como o comandante Alpoim Galvão ou o próprio general António de Spínola. Há quem sustente que deu origem a uma sucessão de crimes de encobrimento, que explicariam as mortes do padre Max, de Joaquim Ferreira Torres, de Adelino Amaro da Costa (e de Francisco Sá Carneiro, como dano colateral), em Camarate, e ainda do engenheiro José Moreira, classificado como testemunha-chave pelos defensores da teoria de que a queda do avião em Camarate foi um atentado.
O Paradela contou-me que defendia a teoria dos cinco crimes seguidos, que se foram sucedendo para encobrir o anterior. O crime de origem é o assalto da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, poucos dias antes do 25 de Novembro de 1975 e que, à época, o tesouro furtado valeria um milhão de contos. O padre Max soubera e ia denunciar, mataram-no, em Abril de 1976. Ferreira Torres soubera de ambos e ia denunciar, mataram-no, em Agosto de 1979. Amaro da Costa ia denunciar isto tudo, e mataram-no também, em 1980. O engenheiro José Moreira, que era o responsável pelo aluguer do avião a um empresário de Braga, Eurico Taxa, soubera coisas sobre Camarate, e mataram-no também, em Janeiro de 1983.
Frederico Duarte Carvalho, Camarate, Sá Carneiro e as Armas para o IrãoPlaneta, 2012, p. 220.
É possível que esta seja mais uma teoria da conspiração, das muitas que se teceram a propósito do desastre de Camarate, mas não tenho dúvidas de que o roubo do Tesouro da Senhora da Oliveira continua a ser um mistério que bem merecia uma investigação aprofundada, com a qualidade luminosa da que Miguel Carvalho escreveu, e agora nos dá em livro que merece ser lido com atenção, sobre a história e os segredos da violência política no pós-25 de Abril.

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