Entre os projectos
que que tenho em mente concretizar “logo que possível”, está o de um ensaio
sobre a formação e a consolidação da consciência patrimonial vimaranense, que é muito antiga e consistente.
Sempre que se fala em projectos para obra nova que interfira com o património
preexistente e com a configuração da cidade, logo se ergue um clamor de vozes contrárias.
No que toca ao seu património, os vimaranenses adoptam, por regra, uma atitude
irredutivelmente conservadora. Foi essa atitude que impediu a destruição da
torre de menagem do castelo, no lavar dos cestos das guerras entre liberais e
absolutistas, e que se concretizassem sucessivos projectos de visionários que pretendiam trazer o progresso a Guimarães por via de largas
avenidas que se rasgariam derrubando muros e casario e rompendo caminho pelo centro
histórico adentro. Geralmente, os defensores do progresso por via do camartelo
e, mais tarde, do betão, lançavam esgares de desprezo sobre os inimigos do progresso, que
pareciam desejar que Guimarães ficasse parada no tempo. Acontece que, olhando
retrospectivamente a partir dos dias de hoje e de valores que agora são (quase)
universalmente aceites, verificámos que, por regra, eram os conservadores que tinham razão. O
exemplo que aqui deixo agora parece-me suficientemente elucidativo.
No início de 1925,
para abrir espaço para a instalação dos novos Paços do Concelho, projectados
pelo arquitecto Marques da Silva, por proposta de Mariano Felgueiras, foi
derrubado um tramo da muralha que D. Dinis mandara erguer para proteger a vila
de Guimarães. Pela mesma altura, abriu-se a rua do Condestável Nuno Álvares
Pereira, para dar acesso da Estrada de Fafe ao interior do Centro Histórico, por
Santa Clara. Para rematar essa amputação, formou-se um cotovelo,onde se
abriu uma porta, nova, mas a-fingir-de-gótica, para dar acesso ao Internato Municipal, que funcionava no edifício do antigo convento de Santa Clara. por aqueles dias, ergueram-se
públicos clamores em Guimarães contra a destruição daquele património. Um
vimaranense que ama a sua terra escreveu, mandou imprimir e distribuiu
profusamente no dia 17 de Janeiro um manifesto, para memória futura, com o
título “Guimarães Saqueada!”, contra a destruição daquelas "memoráveis pedras para realizar um melhoramento local que talvez fique,
como as obras de Santa Engrácia, sem nunca se concluir!”.
Um texto profético, que aqui se reproduz.
Guimarães Saqueada!
A esta mesma hora,
nestes frios e primeiros dias de ano que começa (e para nós, infelizmente, bem
mal!) está-se destruindo ali na vizinha estrada de Fafe parte da histórica
muralha de D. Dinis, derradeiro vestígio desse glorioso cinto ameado que outrora
rodeava a cidade, como preciosa relíquia dum passado cheio de heroísmo e amor
pátrio! Não vimos — é tarde de mais para o fazer! — lentar estorvara sua
demolição, porque seria inútil qualquer esforço despendido agora para obstar a
consecução daquela obra. Vimos tão somente (e seja-nos isso lícito, ao menos)
lastimar comovida e publicamente tal acontecimento, que nos enche a alma de luto
e amargura! Vimos, como vimaranense que ama a sua terra e a queria ver
estimada, desabafar a dor da nossa consciência ante esse facto vandálico que se
está praticando e que merece toda a nossa censura e repulsa! Vimos como que
tecer-lhe o tristíssimo necrológio, para que depois de esse acto consumado o nosso
coração possa rever as lágrimas que verteu!
É que esse resto de
muralha não era só dos vimaranenses, mas sim de todos os portugueses que sabem
prezar a sua Pátria e compreendem o alto significado histórico que representava
esse padrão, não nos cabendo, portanto, o direito de lhe tocar, porque ele faz
parte desse património comum de sagradas ruínas que, aqui e além, assim
desmanteladas, representam ainda as nossas glórias passadas! Não nos cabia esse
direito porque são brasões nobilíssimos da Raça, que os séculos enegreceram, a hera
enramalhetava e o mesmo tempo tem respeitado! E deitam-se abaixo essas memoráveis
pedras para realizar um melhoramento
local que talvez fique, como as obras de Santa Engrácia, sem nunca se concluir!
Mas a obra demolidora corre velozmente para ninguém que tenha olhos de ver possa comentar... Destrói-se porque assim se
entendeu e o Estado consente, como tem consentido e promovido tanto acto de
feroz destruição. É uma terrível debacle
que ameaça tudo quanto possuímos de belo e enternecedor, motivo do nosso
orgulho, razão da nossa própria existência! É bolchevismo moderno (entenda-se ignorância e estupidez) calcando as
tradições imorredoiras dum povo que, daqui a dois dias, não tem história, não
tem monumentos, não tem nada!... Queremos olhar para diante, mas se lançarmos
um olhar retrospectivo encontraremos tantos erros nefastos, que o futuro se nos
ensombrará com a projecção de nossos irremediáveis delitos cometidos! Andamos
cavando o desprezo e a indiferença da gente civilizada, num retrocesso de
ideias e realizações! Vergonha das vergonhas. Ontem assistimos à derrubação dos
preciosos templos das Capuchinhas e Santa Clara, hoje à mutilação dos Paços dos
Duque de Bragança e muralha medieva que o nosso sangue já tingiu!
Deus louvado, o que
aí vai! Dir-se-ia que um vento mortal soprou sobre nós!... Quantas calamidades
em tão curto prazo de tempo! A nossa terra está sendo alvo das mais ridículas e
torpes transfigurações, num desabar ininterrupto das mais autênticas
preciosidades, que eram todo o nosso desvanecimento! Abri os olhos, vimaranenses,
e acordai, antes que apeteça dizer, como Herculano: “Isto dá vontade de morrer !...
Um vimaranense que ama
a sua terra.
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