Revista de Guimarães, 122/123 |
Foi lançado recentemente mais
um volume da Revista de Guimarães que dedica a maior parte das suas páginas a
um dos mais cintilantes homens de letras vimaranenses, João de Meira. De
ofício, foi médico e professor de medicina e exerceu as funções de director da
Morgue do Porto. Foi também um escritor de largos recursos cujos limites nunca
chegámos a conhecer, já que a morte o levou demasiado cedo, a 24 de Setembro de
1913, com 32 acabados de completar. A Sociedade Martins Sarmento homenageou-o
na passagem do centenário da sua morte, com uma sessão evocativa que contou com
várias comunicações que lembraram as diferentes facetas de João de Meira. Os
textos que resultaram desse colóquio estão agora disponíveis no último número
publicado da Revista de Guimarães, organizado por Antero Ferreira e recentemente
apresentado, onde Francisco Miguel Araújo percorre os trilhos da biografia de
Meira, António Gama Brandão fala do médico, Amélia Ricón Ferraz evoca a memória
de Meira na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Lino Moreira da Silva apresenta o
autor de Pregões Nicolinos e o autor deste blogue observa a obra do escritor
João de Meira.
Além de dois textos de Meira,
obras de referência para a História de Guimarães, inicialmente publicados na Revista e agora recuperados, este número
inclui um dossier em que se apresenta uma faceta desconcertante de Meira, inesperada
num professor de medicina, que se espera severo, sóbrio e contido: a sua
espantosa capacidade para imitar os géneros e estilos literários de diferentes
tempos e de autores tão diversos como Gil
Vicente, Sá de Miranda, Herculano, Eça, Antero ou Cesário Verde, compondo pastiches que facilmente passavam por
obras originais dos autores que imitavam. E o divertimento do Professor Meira
nem sempre se ficava por produzir esses pastiches
e partilhá-los com o seu círculo de amigos. Mais do que uma vez, remeteu obras
suas a jornais nacionais, fazendo-as passar por inéditos de grandes vultos da
literatura portuguesa. E, mais do que uma vez, foram publicados como tais.
O pastiche de João
de Meira que teve mais longo curso é o poema Loura, que João de Meira escreveu
e fez publicar como obra sua em O
Comércio de Guimarães de 3 de
Abril de 1900 e que, uma década mais tarde, renasceu no jornal O Dia como um inédito esquecido de
Cesário Verde. Mais tarde, seria republicado num Almanaque de Lembranças, onde
Jorge de Sena o encontraria, partilhando-o, em 1945, na revista Mundo Literário. Daí em diante,
a Loira de Meira passou a figurar na
colectânea que reúne a obra de Cesário, O
Livro de Cesário Verde, até que, em 1958, depois de uma acesa e
interessante polémica entre Jorge de Sena e Joel Serrão, travada nas páginas da
Gazeta Musical e de todas as Artes, se
desvenda o nome do seu verdadeiro autor.
O dossier sobre os pastiches de João de Meira, que agora pode ser
lido na Revista de Guimarães,
inclui uma interessante leitura intertextual do poema Loira, feita por Agostinho
Ferreira, e integra todas as peças da polémica que o envolveu, onde, a dado
passo, Jorge de Sena, mesmo depois de convencido acerca da identidade do seu
verdadeiro autor, e convicto de que a obra valia por si só, independentemente
da assinatura que a subscrevia, afirma ser digno de figurar numa antologia com os mais belos poemas da Língua
Portuguesa. E disse mais:
A Loira,
tudo leva a crer, terá sido “oxigenada” pelo catedrático tripeiro, que
distribuiria os seus ócios entre as cesarianas e as mistificações “cesáricas”.
Mas é muito bela, caramba! Plus belle que nature? Paciência, que também a
poesia de Cesário Verde o é.
O curioso é que,
meio século depois de se saber que o autor a Loira é João de Meira, o poema ainda
continua a aparecer como sendo obra de Cesário.
Está nas páginas 12 e 13 da edição digital de O Livro de Cesário Verde da Biblioteca Virtual do Estudante
Brasileiro, da Universidade de S. Paulo, que se pode descarregar no Portal
Domínio Público, do Governo Brasileiro.
A Loira de João de Meira passeia-se, como
sendo de Cesário, pelo Citador,
o portal que se apresenta como “o maior site de citações, frases, textos e
poemas genuínos e devidamente recenseados em língua portuguesa”.
E lá está, também, por exemplo, no Wikisource — a biblioteca livre, um sítio na Internet que se define como um acervo digital de
livros e textos fontes que estejam em domínio público ou possam ser usados
livremente.
Passados tantos anos, onde quer que esteja, João de Meira ainda muito se há-de divertir com a sua Loira.
0 Comentários