O lugar da aparição do Barral (fotografia do Notícias Magazine) |
Hoje, ao ler no Expresso uma
entrevista em que o padre Anselmo Borges, depois de notar que “posso ser um bom
católico e não acreditar em Fátima porque não é um dogma”, afirma que “é
evidente que Nossa Senhora não apareceu em Fátima”, recordo um facto que demonstra
que a relevância de Fátima enquanto fenómeno de fé não foi uma irrupção instantânea,
mas sim uma construção de elaboração lenta.
A certa altura, quando estudava na Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, andava pela Biblioteca Municipal do Porto a
consultar jornais vimaranenses, recolhendo materiais para um trabalho, a desenvolver
no âmbito duma cadeira de História Contemporânea, acerca do impacto que as
revoluções russas de 1917 teriam tido numa terra que fica à distância mais de
quatro mil quilómetros de Moscovo. Como não encontrei material suficientemente
interessante para o que pretendia, mudei de tema. No entanto, dessa pesquisa, ficou-me
uma estranheza: tendo feito uma consulta sistemática aos jornais que se publicaram
em Guimarães entre 1917 e 1920, não encontrei qualquer referência a acontecimentos
que, supunha eu, na época em que ocorreram, teriam tido um grande impacto
mediático, em especial em jornais que eram muito católicos e muito dados a
noticiarem factos incomuns sucedidos nos lugares mais estranhos do mundo: as
aparições de Fátima de 1917. Silêncio absoluto. E, até hoje, depois de tantos
anos a folhear e a ler a rica imprensa local vimaranense, um dos tesouros mais preciosos
da magnífica biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, a referência a Fátima e às
suas aparições mais antiga que já encontrei tem a data de 15 de Maio de 1928, noticiando
a peregrinação desse ano à “Lourdes portuguesa”, em que participaram “algumas dezenas
de peregrinos” vimaranenses.
Se não encontrei notícias das aparições aos
três pastorinhos nas páginas dos jornais de Guimarães, encontrei uma referência
surpreendente a uma outra aparição que se diria ser uma cópia quase exacta dos relatos
dos fenómenos de Fátima, não fosse ter antecedido em três dias a primeira visão
da Cova da Iria.
Aconteceu a 10 de Maio de 1917, no lugar
do Barral, da freguesia de S. João de Vila Chã, no concelho de Ponte da Barca,
quando Severino Alves, um pastor de 10 anos, se assustou com a visão de uma misteriosa
senhora sentada numa ramada, aparição que se repetiu no dia seguinte, com a
senhora a dizer-lhe “não te assustes, sou eu, menino”. Era Nossa
Senhora, que incumbiu o rapazinho de uma missão: dizer a todos que rezassem o
terço e cantassem uma oração então em voga, a Estrela do Céu, apegando-se com a
Senhora, para que acudisse ao mundo e aplacasse a guerra (recorde-se que se estava
em plena Grande Guerra).
Nas primeiras
décadas do século XX, notícias de aparições desta natureza ocorriam com
relativa frequência. No entanto, é impressionante o paralelismo do relato das
visões do pastorinho do Barral com o que se conta que sucedeu depois em Fátima.
No entanto, a Igreja Católica nunca reconheceu a aparição do Barral, o que não
impediu que no local fosse erguido o Santuário de Nossa Senhora da Paz, que se
transformou em local de culto mariano. Severino Alves faleceu em 1985.
A notícia da aparição Barral circulou
pela imprensa do Norte do país, até que, a 7 de Julho de 1917, o jornal Vimaranense a dá à estampa, com um
comentário carregado de cepticismo, da lavra de Joaquim José de Azevedo Machado. Aqui
fica.
Milagre? Sugestão? Embuste?!...
Contam
vários
jornais que, no dia
10 do Maio último, pelas 8 horas da manhã, no lugar do Barral, freguesia de S. João de Vila Chã,
concelho de Ponte da
Barca, arcebispado de Braga, quando em direcção ao monte passava um rapazinho de nome Severino Alves, de 10
anos de idade, avistara numa ramada próxima da ermida, após um rápido relâmpago, uma senhora,
sentada, e com as
mãos postas.
Que, surpreendido com tal acontecimento,
caíra, cobrara
ânimo, e exclamou: Jesus Cristo, desaparecendo então a visão.
Que o
rapazinho, contando ao seu pároco o foi por este aconselhado
a que voltasse ao lugar da
aparição,
e pedisse a essa senhora
que o
informasse quem era.
Que,
no dia seguinte, ao defrontar com o mesmo local da véspera, lá tornou a
encontrar-se com a mesma senhora, e que ajoelhando-se, lhe disse: Quem não
falou ontem, fale hoje.
Que, em
seguido, a aparição tranquilizou-o, dizendo-lhe:
“—
Não te assustes, sou eu, menino. Diz aos pastores do monte que rezem sempre
o terço. Que os homens e mulheres cantem a Estrela do Céu. E as
mães que têm filhos lá fora, que rezem o
terço, cantem a Estrela do Céu e se apeguem comigo, que hei-de acudir ao mundo e aplacar
a guerra.”
Que,
antes que o rapazito tivesse tempo de dizer mais que —sim, senhora—, a visão,
olhando para uma ramada, acrescentou: Que gomos tão lindos, que cachos tão
bonitos, desaparecendo em seguida, como por encanto.
Eis,
em
resumo, o que contam vários jornais.
*
A
civilização transportou-nos a uma época, onde não basta afirmar; é preciso
provar, ou, pelo menos, ser viável, à luz da ciência, o facto trazido à
publicidade.
O
mundo está cheio de embusteiros, e fácil seria a estes locupletarem-se à custa
da credulidade pública.
À luz
da ciência, o milagre é um impossível, visto que todos os factos
verdadeiros têm natural explicação. Está provado, pela mesma ciência, — a
espiritualista — que o dom de vidência
é uma verdade incontestável. Certas pessoas têm o poder de dupla
vista, como acontece com as pessoas em transe, ou com os sonâmbulos. Todavia, a
ciência, nesse particular, é muito severa, pois afirma que muitas causas podem
dar lugar a visões. O estado mórbido do organismo,
antecedentes nervosos, histerismo e auto-sugestão.
Assim
como poderia, de facto, aparecer, materializada, a Mãe de Cristo, escolhendo um
vidente, embora criança, também é possível e admissível que esse rapaz,
se facilmente
sugestionável, se prestasse inconscientemente
a vontades que imperassem sobre a sua.
Tudo
e possível...
Por outro
lado, isentos de toda a parcialidade, não nos podemos furtar às
seguintes interrogativas: Qual o motivo porque, admitindo-se como verdadeiro o
fenómeno em discussão, não apareceu nossa Senhora a um adulto casto e
verdadeiro, e sim a uma crença de 10 anos, rústica, que
mal sabe exprimir as suas sensações?
Não haveria,
neste planeta, um outro vidente, adulto, moral e austero, que melhor pudesse sintetizar
o desejo de Maria?!...
O
rapaz, segundo ainda os jornais, sempre ia para o monte rezando o terço. Não seria
um misto de fanatismo e lendas religiosas que a família lhe
tenha incrustado no seu espírito ainda fraco, e, portanto, facilmente sugestionável?
Tudo
é possível…
No entanto,
estamos certos, à luz da critica, da razão e do bom senso, o anunciado fenómeno será apreciado sobre
todos os matizes.
A autoridade
eclesiástica também o investiga em todas as suas minúcias, e então, poder-se-á formar
um juízo mais seguro, visto que o facto é relatado com alguns acréscimos nos periódicos
que o vão reproduzindo.
Como
acima demonstrei, está provado à luz da ciência que o milagre não se pode
realizar, por que as aparições dadas como verdadeiras ate agora, justificam-se,
na sua maioria, pela existência dos videntes. Quantas descobertas realizadas neste
século, que, se no décimo nono aparecessem, seriam levadas à conta de
milagre... A electricidade, o rádio, a radiografia, etc.,
etc., são disso exemplos, para não nos alongarmos muito.
Em
todo o caso, como o fenómeno de aparição está nos limites do possível — não
digo provável! — para aqui transcrevemos a Estrela
do Céu, preconizada pela Virgem-Mãe (?) para aplacar a guerra e acudir ao
mundo, que, diga-se de passagem, caminha para o abismo da degenerescência e da
degradação:
A
Estrela do Céu, Santíssima que a Seus peitos criou Nosso Senhor livrou-nos do
contágio da morte, que o primeiro pai dos homens trouxe ao mundo. Digne-se a
mesma Estrela apaziguar o Céu, para que a Sua ira não aflija agora o povo, com
guerras de morte cruel. —Piedosíssima Estrela do mar
livrai-nos desta peste. Ouvi-nos, Senhora, porque Vosso Filho Vos honra, não
Vos recusando coisa alguma. — Salvai-nos, ó Jesus, atendei aqueles por quem a
Virgem Mãe Vos pede.
Rogai por nós Santa Mãe de Deus; para que
sejamos dignos das promessas de Cristo.
OREMOS
Deus de misericórdia, Deus de piedade,
Deus de indulgência, que Vos compadecestes da aflição do Vosso povo, dizendo ao
anjo que o feria “Sustém a tua mão”, por amor daquela Estrela gloriosa, de
cujos peitos benignamente recebestes o precioso remédio, contra o veneno dos
nossos pecados; socorrei-nos com a Vossa graça, para que sejamos livres, com
segurança, de toda a peste e morte repentina, e por misericórdia sejamos salvos
de todo o perigo de perdição. Por Vós, Jesus Cristo Rei da glória, que viveis e
reineis por todos os séculos dos séculos. Ámen.
Têm, pois, a palavra, os católicos e os
acatólicos...
Quanto a mim, com toda a franqueza o digo:
ponho o fenómeno (?) de quarentena, de observação, de reserva, até que a lógica
dos factos me obrigue a aceitá-los como intangíveis.
Já que os meus “francesismos baratos” tanto
irritam a “alguém”, vá lá este latinório:
Res
non verba...
Joaquim José de Azevedo Machado.
Vimaranense, 7 de
Julho de 1917
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