Romance, por João de Meira

Acontece muitas vezes, por dever de escola ou de ofício, termos que ficar a ouvir, por um tempo que parece aspirar à condição de eternidade, alguém muito douto a derramar palavras que manam, caudalosas, de uma erudição torrencial quase sempre feita de um saber que, as mais das vezes, a ninguém interessa ou aproveita, a não ser ao perorador, para ostentação da sua sapiência ou ornato da sua vanglória. São aquelas sessões, mais aborrecidas do que o aborrecimento, de onde só nos apetece fugir, mas não podemos. E então, desligámos. E lá ficámos, a contar os cristais do lustre que dá luz à sala ou os azulejos que lhe revestem as paredes ou a rabiscar garatujas no papel. Por vezes, se o penitente é artista ou tem inclinações literárias, deste mergulhar inconsciente pelas profundezas oceânicas do tédio, podem resultar objectos interessantes.

Esse é, comprovadamente, o caso do Romance que João de Meira compôs, em 1912, enquanto assistia às provas académicas do pediatra, higienista, político e professor António de Almeida Garrett para acesso à regência da “cadeira de Higiene na qualidade de 1.º assistente provisório de 5.ª classe da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto”. Aqui se reproduz, transcrito de um manuscrito que está guardado na preciosa biblioteca da Sociedade Martins Sarmento. Uma poesia que ia "tão linda", até que a bexiga do romanceador começou a falar-lhe...


Edifício da antiga Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde funcionou a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (cliché do Arquivo Municipal do Porto)


Romance

Enquanto Garrett falava
O melhor que ele sabia,
Enquanto ele acastelava
Teoria sobre teoria,
Carlos Lima bocejava,
Cândido Pinho dormia,
O Frias escrevinhava
O Plácido sorria.
Garrett a boca molhava
Garrett na pedra escrevia,
Presidente reparava
Se a ampulheta se mexia
E para ver se a apressava
Palmadinhas lhe batia
E Garrettt continuava
A contas com a histologia
Já na célula falava
E do que dentro dela havia
Entretanto eu versejava
Toda esta sensaboria.
E o Garrett não se cansava
Remoía, remoía
Em toxinas falava
Com o micróbios mexia
Os fagócitos gabava
Contava a quimiotaxia
O Vitorino estacava
Com a cabeça bulia
Com a cabeça abanava
Com ares de quem percebia,
Com eles se comparava
Quando na Fiscal servia,
Ao guarda que vigiava
Quer de noite quer de dia
O fagócito igualava
Sempre em perpétua vigia
E do micróbio pensava
Um candongueiro fazia
Que as barreiras forçava
Da Vila da Economia
E Garrett não descansava
Lá seguia, lá seguia
As reacções mencionava
Nem uma só lhe esquecia
Das gerais papagueava
Das particulares dizia
E o auditório pasmava
De tanta sabedoria
Que como a água brotava
E como a água corria.
E o Tiago meditava
Esta coisa lhe ocorria
Se a hora terminava
E ele não emudecia!
Quem a torneira fechava
Quem o homem calaria?
Tanta ciência inundava
Tanta ciência asfixia.
Eu em ela já nadava
Dentro em pouco afogaria
Quem de mim se apiedava
Ai meu Deus! Quem me acudia
Até Teodoro mostrava
Que tanta treta o enchia
De tão vermelho que estava
Até empalidecia!
E o Bernardo meditava
Que esta maçadoria
A aturar bem mais custava
Do que a contínua arrelia
Que a mulher lhe pregava
E de que ele fugia.
Mas quando em tal ponto estava
Desta tão linda poesia
Minha bexiga falava
Qualquer coisa me dizia
O esfíncter repontava
Dizendo que não podia.
E com custo o obrigava
A não dar sensaboria.
Só esta agora faltava.
Esta coisa eu não sabia
Eu nitro às vezes tomava
Mas tão bem não me fazia
Como diurético actuava
A muita sabedoria!
Ah! Se o mijo me faltava
Se o rim se me entupia,
Remédio pronto lhe dava
Lição de concurso ouvia
E assim mijava, mijava
Toda a noite e todo o dia.
                                      João de Meira

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