Pedras que falam (Aqui Nasceu Portugal)


Há algum tempo, a cidade percebeu que estava desaparecida a inscrição “Aqui Nasceu Portugal” que estava afixada na face visível da Torre da Alfândega da antiga cerca muralhada de Guimarães. Tal desaparecimento, como facilmente se concluía, apesar da estranheza inicial, não tinha em si qualquer mistério: tratava-se de uma simples operação de limpeza e de substituição do sistema de iluminação por outro mais eficaz e mais moderno. Porém, uma pequena ‘provocação’ que publiquei, acompanhando uma fotografia da torre sem a frase emblemática, deu origem a uma curiosa discussão no Facebook, de que resultou perceber-se que, afinal, havia ali um mistério. Aliás, dois mistérios: quando foi que se colocou o letreiro naquele muro secular e quem inventou aquela frase.
Dos muitos intervenientes da discussão, nenhum tinha resposta certa para tais perguntas que, aliás, já me tinham sido colocadas há um par de anos, quando a câmara de Guimarães reunia o argumentário para contestar o registo, por uma entidade privada, da marca “Aqui Nasceu Portugal”. Na altura, respondi o que sabia, que era pouco: que a referência mais antiga que tinha encontrado à expressão estava inscrita na capa de uma brochura que o Vitória Sport Clube tinha editado em 1958, aquando de uma digressão por terras de África, e que o letreiro da torre teria sido colocado quando a segunda metade do século XX já ia bem andada, provavelmente no início da década de 1970, supostamente por iniciativa da associação Unidade Vimaranense (aqui, o que julgava saber, resultava apenas de o ter ouvido dizer algum dia, a alguém).
Por estes dias, voltei ao assunto e julgo que já disponho de elementos de resposta suficientes para desfazer os dois “mistérios”.

Comecemos pela autoria da expressão “Aqui Nasceu Portugal”, que é um verdadeiro achado, já que onde se reúne, em apenas três palavras, as principais bases constituintes da identidade vimaranense: história, património, fundação, memória, berço. A explicação que aparecia como mais convincente, foi-me partilhada por um amigo na conversa do Facebook, que se recordava de ter tido um professor no Liceu que contava ter testemunhado o momento em que teria sido usada pela primeira vez: teria acontecido no Castelo de Guimarães, num discurso proferido por António de Oliveira Salazar. Esta versão foi-me depois reafirmada por outras pessoas. No entanto, uma pesquisa sistemática aos discursos de Salazar, que estão publicados, não a confirma.
A memória da invenção da expressão “Aqui Nasceu Portugal”, que substitui com vantagem as divisas “Berço da Monarquia”, pouco adequada em tempos da republicanos, e “Berço da Nação”, que quadrava melhor a um tempo em que tudo deveria ser a bem da Nação, está conservada dentro das paredes imponentes da casa da Sociedade Martins Sarmento e publicada nas páginas da sua Revista de Guimarães. Para a reconstituir, haverá que recuar até ao dia 28 de Novembro de 1927. Os que, na noite daquela segunda-feira, transpuseram a imponente fachada de Sociedade Martins Sarmento e se sentaram no seu Salão Nobre para escutarem uma conferência sobre o tema “Portugal visto de Guimarães”, não imaginavam que palavras que ali seriam proferidas perdurariam e se tornariam em legenda para uma cidade com o peso histórico e simbólico de Guimarães. 
O Inverno já se anunciava mas, ao que conta O Comércio de Guimarães do dia seguinte, o “tempo frigidíssimo” não constituiu impedimento suficiente para que “àquela Casa acorresse uma sociedade escolhida e ciosa de ouvir um dos primeiros pedagogistas portugueses”. A sala estava cheia e, “entre a assistência, viam-muitas senhoras, professoras, militares, advogados, médicos, industriais e comerciantes, estando também largamente representada a Academia”. O ambiente era festivo. A conferência iniciava um ciclo promovido pela Sociedade Martins Sarmento e seria proferida por um reconhecido linguista e pedagogo que, na juventude, pertencera ao círculo do poeta António Nobre e que, no tempo do franquismo, exercera funções de director-geral da Instrução Pública. Era autor de diversas obras, entre as quais se destacava uma “Antologia Portuguesa” em 24 volumes. Mais tarde, na década de 1930, seria professor catedrático das Faculdades de Letras das Universidades de Coimbra e de Lisboa.
Eduardo de Almeida, a quem coube a tarefa de apresentar o orador, o portuense Agostinho de Campos, fez um discurso introdutório que, no dizer do articulista do Comércio, não se ficou pelas costumeiras palavras de circunstância, podendo constituir, só por si, “uma brilhante conferência”, suficiente para preencher “um belo serão”, em que Eduardo de Almeida “com palavras cheias de eloquência, elegantes e graciosas, descreveu o estado mórbido da sociedade”, em que deixa transparecer “o desalento que o invade, por a sociedade ter resvalado para a podridão que a empesta”.
Agostinho de Campos (1870-1944)
Na sua longa conferência, Agostinho de Campos, depois de fazer o elogio Guimarães e de ressaltar a importância deste burgo na formação da nacionalidade portuguesa, partilhou um conjunto de reflexões sobre Portugal e o seu destino, por onde perpassava uma ideia algo ambígua de compromisso entre conservadorismo e mudança e em que defendia uma nova ética política que daria uma nova centralidade aos poderes locais e regionais.
Foi no seu ponto de partida, quando se referia às pedras de Guimarães que falavam, contavam memórias e apontavam direcções, que enunciou o trecho onde aparece, pela primeira vez, a expressão que inventou e que, décadas mais tarde, se transformaria na mais icónica das legendas de Guimarães:

Palavras, leva-as o vento — diz um provérbio. E eu direi que as palavras que o vento menos leva, são as que nos dizem as pedras que estão ao vento.
Quantas brisas, quantas ventanias, quantas tempestades não têm bafejado ou chicoteado as pedras do vosso castelo, e vede se a linguagem delas se calou, ou se, pelo contrário, não é cada vez mais forte, cada vez mais retumbante, cada vez mais solene, a voz com que essas pedras vos dizem e nos dizem: Aqui nasceu Portugal!

Estas palavras seriam lembradas no ano seguinte, aquele em que Guimarães descobriu, finalmente, a relevância da Batalha de S. Mamede para o processo de formação da nacionalidade portuguesa, quando, Eduardo de Almeida, numa conferência sobre S. Mamede, que proferiu na Sociedade Martins Sarmento em 6 de Julho de 1928, pediu à audiência: “Deixai-me repetir aquelas tão comovidas palavras de um bom português (o Dr. Agostinho de Campos) ainda não há muito proferidas nesta mesma sala”.
Estabelecida a sua origem, percebe-se que a apropriação da insígnia “Aqui Nasceu Portugal” por Guimarães e pelos vimaranenses não foi imediata. Passariam três décadas até que o Vitória Sport Clube a adoptasse como título para um “número único comemorativo da viagem do Vitória Sport Clube ao Ultramar Português”. Corria então o ano de 1959. Em 1966, o jornal Notícias de Guimarães compôs uma das suas celebradas primeiras páginas com que assinalava as Festas Gualterianas com a reprodução de parte do texto da conferência de 1927 de Agostinho de Campos, com um novo título, “A Mensagem de Guimarães”, e a expressão AQUI NASCEU PORTUGAL, composta a caixa alta, a sobressair.
Porém, ainda faltavam alguns anos para que a legenda que Agostinho de Campos inventou para Guimarães passasse a estar inscrita na Torre da Alfândega.
Aqui Nasceu Portugal!, número único, 1959 (exemplar da Sociedade Martins Sarmento

Primeira Página do Notícias de Guimarães de 7 de Agosto de 1966 (exemplar do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta)

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1 Comentários

Albano Guedes disse…
Belíssima e credível descrição que registarei com apreço na minha memória, pois não sendo de Guimarães natural, de Guimarães sou pelo coração e residência, desde 1959.