A primeira tarde portuguesa - Batalha de São Mamede, assinada por Acácio Lino, 1922, fotografia de Carlos Pombo, 2005. Fonte: Museu da Assembleia da República. |
A
primeira tarde portuguesa é uma legenda feliz para traduzir o pensamento de
Alexandre Herculano acerca da importância da batalha de S. Mamede enquanto
momento fundador da construção da nacionalidade portuguesa, sem o qual, na
opinião do grande historiador, “constituiríamos provavelmente hoje uma
província de Espanha”. Manuel Alegre classificou-a, num discurso que fez em
Madrid, em 2003, como uma “belíssima expressão que podia ser um verso”. E fez
dela verso de um poema:
Afonso de si mesmo então nascia
Sobre o cavalo e a espada e a terra brava
E quando disse Portugal ninguém sabia
Ao certo que sentido essa palavra
Fosse do ar de Junho ou da leveza
Com que o crepúsculo em Guimarães caía.
Nessa primeira tarde portuguesa.
Há muito que vemos atribuída a expressão a primeira tarde portuguesa ao pintor amarantino Acácio Lino, que a usou como título para o quadro de grandes dimensões que pintou em 1922 para o palácio de S. Bento, então sede do Congresso da República, hoje da Assembleia da República, em que representou a sua visão da batalha de S. Mamede. No entanto, tem sido creditada a outros autores, nomeadamente a José Mattoso e a Alexandre Herculano, como transparece da conclusão da frase atrás citada, em que Manuel Alegre se lhe refere, quando escreve que o “autor por sinal é Alexandre Herculano e não, como já foi escrito, o Professor José Matoso”.
Afinal,
quem é o autor da designação a primeira tarde portuguesa, que tem sido usada
como insígnia do feito de 24 de Junho de 1128? Acácio Lino, Alexandre Herculano
ou José Mattoso?
1. José Mattoso?
O medievalista José Mattoso utilizou-a para dar o título a uma memorável
conferência que proferiu na Sociedade Martins Sarmento em 24 de Junho de 1978,
dia em que se assinalavam os 850 anos de S. Mamede. Um texto incontornável para
a compreensão dos antecedentes da batalha e do seu significado no processo de
fundação de Portugal, que não terá sido lido por quem atribui a José Mattoso a
autoria da expressão que dá título à conferência, que começa assim:
“Faz
hoje 850 anos que se travou aqui perto a batalha de S. Mamede. A esta jornada
chamou já um artista "primeira tarde portuguesa".”
Em
nota de rodapé, Mattoso esclarece que se trata de um “painel da autoria de
Acácio Lino, que representa a batalha de S. Mamede e se encontra no Palácio da
Assembleia da República”.
O texto de Mattoso foi publicado na edição de 1978 da “Revista de Guimarães” e está disponível no repositório digital da Casa de Sarmento.
Não,
não foi José Mattoso o inventor da primeira tarde portuguesa.
2.
Será Alexandre Herculano?
A
primeira tarde portuguesa poderia ter saído da pena de Herculano, porque
corresponde ao seu pensamento sobre a relevância histórica da batalha travada
junto de Guimarães em 1128, uma vez que, como afirmou Mattoso na conferência da
Sociedade Martins Sarmento, “só com Alexandre Herculano é que S. Mamede se,
considera, pela primeira vez como o dealbar da Pátria”. Mas ficamos sem perceber
porque é que o nosso mais destacado medievalista contemporâneo, profundo
conhecedor da obra de Herculano, atribui o título ao pintor e não ao autor da História
de Portugal.
Tendo
em conta a riqueza simbólica da expressão, estranhamos que nenhum dos autores
que citam Herculano a propósito de S. Mamede tenha alguma vez identificado o
texto de onde a expressão teria sido extraída. Uma busca sistemática na vasta obra
publicada de Alexandre Herculano não produziu qualquer esclarecimento.
A
primeira tarde portuguesa, dita por Herculano, seria plausível, mas não parece
que seja criação sua.
3.
Resta Acácio Lino, a quem José Mattoso atribui a autoria da expressão, citando
a “História de Portugal” — dita de Barcelos, terra onde foi impressa, ou
de Damião Peres, que a dirigiu —, cujo primeiro volume abre com uma
reprodução de uma pintura que representa a Batalha de S. Mamede, com esta
legenda:
A PRIMEIRA TARDE PORTUGUESA
(painel de Acácio Lino existente no Palácio do Congresso).
O
volume inicial da “História de Portugal” foi publicado em 1928, sendo a primeira menção da emblemática expressão
que até agora encontrámos. A segunda será numa outra obra de Damião Peres, “Como
nasceu Portugal”, editada pela primeira vez em 1942, onde se lê, a propósito do confronto de S. Mamede:
“Essa
luminosa tarde foi realmente a primeira tarde portuguesa - como a designou um
grande artista.”
Para
que não restassem dúvidas sobre a identidade do artista, o historiador identifica
o autor do painel, em nota de rodapé:
“Acácio Lino pôs o título de A primeira tarde portuguesa ao seu painel que representa a batalha de S. Mamede, o qual se encontra no palácio da Assembleia Nacional, e de que pode ver-se uma reprodução em tricromia na História de Portugal, por nós dirigida, volume I. págs. 8-9 (Barcelos, 1928).”
Nas
décadas que se seguiram, até ao final do século XX, os historiadores que
utilizam a expressão atribuem-na ao mestre Acácio Lino, nunca a Herculano. A
título de exemplo, transcrevo o que escreveu de Joaquim Veríssimo Serrão, numa
obra publicada em 1992 (“A essência e o destino de Portugal: orações históricas”),
referindo-se ao recontro de S. Mamede:
“Esse
acontecimento foi já definido por um grande artista, refiro-me a Mestre Acácio
Lino, como "a primeira tarde portuguesa", sendo a partir de então que se
marchou abertamente para a independência do Condado.
4.
Em aqui chegando, uma pergunta se impõe: de onde vem a atribuição a Alexandre Herculano
da expressão a primeira tarde portuguesa?
Pelo
que já percebemos, se Herculano não é o seu autor, bem poderia ter sido. Mas,
até agora, nada encontramos que o comprove.
A
mais antiga referência à suposta autoria de Herculano que conhecemos data já do século
XXI e está no texto de… Manuel Alegre, referido no início desta publicação. Aí
escreveu o poeta de O Canto e as Armas:
“Não
é culturalmente exacto que Portugal tenha começado na batalha de S. Mamede,
nessa primeira tarde portuguesa, belíssima expressão que podia ser um verso,
cujo autor por sinal é Alexandre Herculano e não, como já foi escrito, o
Professor José Matoso.”
Manuel
Alegre voltaria ao assunto numa crónica sobre futebol, publicada no jornal Público, no dia 1 de
Julho de 2006
“Talvez o nosso destino, desde aquela «primeira tarde portuguesa» (assim se referiu Alexandre Herculano à batalha da fundação, em S. Mamede, Guimarães), seja o de, antes de enfrentarmos os outros, termos sempre de começar por aturar alguns dos nossos.”
E, em
Abril de 2010, na oração inaugural da Cátedra Manuel Alegre, na Universidade de
Pádua:
“Eduardo Lourenço, num ensaio sobre a minha escrita, fala da "nostalgia da epopeia". Eu tenho essa nostalgia. A minha visão de Portugal é uma visão poética, uma visão integradora, em que se misturam poemas, batalhas, revoluções.
“Dessa
visão faz parte "a primeira tarde portuguesa", essa belíssima expressão com que
Alexandre Herculano se refere à vitória do primeiro rei Afonso Henriques na batalha
de São Mamede, em Guimarães, esse breve e decisivo momento em que Portugal
começa.
O escritor repetiria
a mesma ideia em Dezembro do mesmo ano, no texto de um apelo que dirigiu aos
escritores português:
“A minha visão de Portugal é uma visão poética, uma visão integradora, de que fazem parte “a primeira tarde portuguesa”, essa belíssima expressão com que Alexandre Herculano se refere à vitória de Afonso Henriques na Batalha de S. Mamede […].”
Na falta de evidências que nos contradigam, diremos que será Acácio Lino o autor que melhor resumiu o pensamento de Alexandre Herculano sobre o papel fundador da Batalha de S. Mamede.
Bastaram-lhe quatro palavras:
~*~
Ficha
de inventário do Museu da Assembleia da República do quadro A primeira tarde portuguesa, de Acácio Lino (1922)
Batalha
de São Mamede - 1128
Museu:
Museu da Assembleia da República
Nº
de Inventário: MAR 2145
Super
Categoria: Arte
Categoria:
Pintura
Autor:
Acácio Lino de Magalhães (1878-1956)
Datação:
1922
Suporte:
Tela.
Técnica:
Óleo sobre tela.
Dimensões:
Comp: 736 Alt: 318
Descrição:
Tela rectangular, disposta na horizontal, colada na parede. Composição
pictórica em tons de roxo, branco, verde, sépia, azul e ocre amarelo.
Representação de uma batalha campal onde se opõem duas frentes de combate: a
direita marca a ofensiva liderada por um homem a cavalo e de braço erguido, que
incita os soldados; as lanças, bandeiras e corpos inclinados para a frente,
funcionam como uma massa que avança em cunha para o lado oposto da composição,
dotada de vectores que ditam linhas de força visualmente agressivas. O lado
esquerdo da composição marca uma dupla estratégia defensiva e desistente, com
um segundo plano onde se vêm alguns soldados resistindo, resguardados por
escudos e recolhendo uma bandeira, e um primeiro plano marcado por corpos de
homens e um cavalo caídos no chão, e homens abandonando o campo de batalha,
voltando as costas às hordes adversárias. Ao fundo, no canto superior esquerdo,
surge um castelo. Em baixo, ao centro, em cartela, vê-se a data
"1128". Assinado e datado no canto inferior direito: "Acácio
Lino / Porto 1922".
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