Eu nasci há cinquenta anos na
Rua Nova, hoje chamada Egas Moniz. Eu nasci no meio de prostitutas, nasci no
meio de bandidos e gente com pistolas na cinta, nasci no meio de tascos, nasci
numa rua que não tinha saneamento, que não tinha água, que era em terra.
Amadeu Portilha, vice-presidente da Câmara
Municipal de Guimarães. In Revista Rua, n.º 4, Junho de 2016
Não começasse a
citação que vai acima pela contextualização no tempo e no espaço do que se dirá
a seguir, e éramos capazes de ficar a pensar se a cidade de que se fala não se
situaria algures no remoto faroeste do tempo dos cowboys. Uma rua em terra, sem água nem saneamento e povoada de prostitutas,
bandidos e gente de pistola à cinta, em meados da década de 1960 é muito
difícil de conceber numa cidade de um país civilizado e, muito menos ainda, num
pequeno país situado no extremo ocidental da Europa, onde imperava uma ditadura
nada branda, mas muito extremosa nos seus cuidados que aplicava na conservação dos
brandos costumes da sua sociedade. Uma rua assim não existia na Guimarães de
que tenho memórias muito vivas, que remetem para o início da década de 1970,
muito menos a poucas dezenas de metros da casa onde então vivia, na rua Dr.
Avelino Germano, a que o nosso povo persiste em continuar a chamar de Tulha.
Já várias vezes
o disse e escrevi. As memórias vividas e contadas não são retratos objectivos
da realidade. São construções mentais que convocam muito mais do que o que
realmente aconteceu e se viu. Regra geral, são acrescentadas daquilo que, por
qualquer razão, se passou a acreditar que aconteceu e que não passam de
agregados de efabulações sobre um fundo com visos de realidade. É por isso que
os historiadores nunca utilizam as narrativas de memórias como fontes únicas
daquilo que escrevem.
Da rua Nova,
também conhecida, consoante os tempos, como rua Nova do Muro, rua Nova do
Comércio ou rua Egas Moniz, já falam os documentos desde a Idade Média. Era uma
rua com um estatuto social acima da média, onde predominavam clérigos e mercadores.
Segundo apurou a medievalista Conceição Falcão Ferreira, as rendas que ali se
pagavam eram das mais elevadas de toda a vila. Todavia, os documentos são
omissos quanto ao seu calcetamento, sendo muito provável que a rua fosse,
naquele tempo, de terra batida, situação que se terá mantido até ao início do ano
de 1664, quando a Câmara adjudicou a dois pedreiros da vila, os trabalhos da calçada
da rua Nova, feita com “pedra dura e grande”. Está a rua nova empedrada há mais
de 350 anos, portanto.
Quanto ao abastecimento
público de água à cidade de Guimarães, alimentado com água conduzida desde a
serra da Penha, foi inaugurado em 1904, sendo, o sistema regulado pelo Regulamento municipal de fornecimento e
consumo de águas em Guimarães, em que se afirmava que a Câmara estava em
condições de fornecer aos proprietários e
inquilinos água potável e para usos domésticos para quaisquer prédios situados
nas ruas onde houver canalização geral, que começou por abranger às artérias
do casco urbano onde a rua Nova se incluía. Portanto, a água canalizada na rua
Nova terá mais de um século.
Já quanto à
rede de saneamento as informações disponíveis são mais lacónicas. São
recorrentes os projectos de instalação de um sistema de esgotos, desde a década
de 1930 e, em particular, a partir da criação dos Serviços Municipalizados de
Água e Saneamento de Guimarães, em 18 de Dezembro de 1944. No entanto, boa parte
cobertura da mancha urbana central com rede de saneamento terá acontecido a
partir de 1971. Em Janeiro desse ano foi lançada a empreitada de saneamento da rua
de Santa Maria, praça da Oliveira, praça de S. Tiago e rua Dr. Alfredo
Guimarães”. É, portanto, possível que a rua Nova há 50 anos ainda não estivesse
servida pela rede de saneamento público, o que não significa que ali ainda se praticasse
o ritual medieval dos despejos para a rua ao anúncio de água-vai.
Mas o que menos
se percebe das declarações do actual vice-presidente da Câmara Municipal de Guimarães
não é o que diz sobre o chão ou a água ou os esgotos da rua Nova. O que mais
choca é o retrato insensato que faz das pessoas que lá viviam há meio século, revelador de inusitada leviandade e de uma insensibilidade social
absolutamente incompreensível num político com tais responsabilidades. Tenho bons
amigos, de diferentes gerações, que ali nasceram e cresceram e que têm orgulho por
terem origens numa rua habitada por gente humilde que lutava por dar uma vida
digna aos seus filhos e que agora têm todos os motivos para se sentirem magoados
e ofendidos com os rótulos de prostitutas, bandidos e pistoleiros tão
levianamente colados a si próprios e às pessoas com quem cresceram. Familiares,
amigos, vizinhos.
A entrevista
está carregada de afirmações grandiloquentes, categóricas e auto-satisfeitas, muitas
delas mal ancoradas na realidade e injustas para muitos dos protagonistas da
governação municipal desde o 25 de Abril (e mesmo alguns dos anteriores a essa
data), puxando de galões que, com um pouco de humildade de democrática, facilmente
perceberia que não lhe pertencem, em grande parte assentes na construção de uma
narrativa que não encaixa na cronologia dos factos (como quando diz: “há 25
anos pegamos no centro histórico que era um gueto onde as pessoas não gostavam
de ir”), com os quais, obviamente, não concordo. Mas há uma afirmação com que
concordo em absoluto, embora sinceramente o lamente. É a que foi puxada para
título da entrevista:
“A política
precisa de gente credível.”
1 Comentários