9 de Agosto de 1899: a morte do patriarca

Retrato mortuário de Francisco Martins Sarmento (Agosto de 1899), com as condecorações que lhe foram atribuídas, que se recusou a usar em vida.

A notícia começou a correr ao início da tarde do dia 9 de Agosto de 1899: morreu o Sarmento. Esperada, a notícia não chegava de surpresa, o que não impediu que a cidade de Guimarães fosse tomada por uma profunda comoção. Desaparecia o “maior cidadão vimaranense” daquele século. Muito se escreveu sobre os padecimentos físicos do arqueólogo, que se arrastavam há mais de uma década, mas a causa da sua morte todos a sabiam, como testemunharia o redactor de O Comércio de Guimarães que redigiu a notícia do desaparecimento do descobridor da Citânia de Briteiros: “este homem foi vítima do seu profundo amor pelo estudo”.

As homenagens fúnebres a Francisco Martins Sarmento, de tão grandiosas e impressionantes, ficaram bem gravadas na memória dos que nelas participaram. O cadáver, foi entregue na sexta-feira, à noitinha, à direcção da Sociedade Martins Sarmento, que o recebeu no átrio do palacete de Sarmento, tendo sido conduzido pelos sócios iniciadores daquela instituição, Avelino da Silva Guimarães, Avelino Germano da Costa Freitas, Alberto Sampaio, Domingos Leite de Castro, Francisco Ribeiro Martins Costa (Agra) e João Gomes de Oliveira Guimarães, o Abade de Tagilde, num cortejo iluminado por numerosos archotes empunhados por membros da SMS, que seguiu até à Igreja da Colegiada, onde o corpo seria velado pela noite dentro.

Às cinco horas da tarde de sábado, 12 de Agosto de 1899, hora prevista para a saída do cortejo fúnebre se pôs em marcha, a praça da Oliveira e as ruas adjacentes estavam preenchidas por uma massa compacta de gente. Por essa altura, uma tempestade desabrida caía sobre a cidade Guimarães, num último pranto ao seu patriarca. A chuva só permitiu que o funeral saísse uma hora mais tarde. Em todas as ruas por onde passava, as lojas estavam fechadas em sinal de luto e, nas janelas, havia mulheres de luto cerrado em lágrimas.

Junto ao jazigo onde Francisco Martins Sarmento ficaria sepultado até à sua trasladação, em 1904, para o cemitério de Briteiros, Avelino da Silva Guimarães, amigo de Sarmento e um dos obreiros da Sociedade Martins Sarmento, proferiu um discurso emocionado. Disse:



Senhores:

Entrámos opressos neste recinto de tristezas, neste caudal de saudades amargas.

Acompanhámos o dr. Francisco Sarmento à sua derradeira jazida.

Nesta hora solene, em que a ciência portuguesa se reveste de crepes, em que a cidade de Guimarães sente estos de dor, vimos dizer-lhe o último adeus.

Vimos prestar esta homenagem melancólica e dolorida ao homem que foi, por muitos anos, a glória da sua terra, o amor próprio dos vimaranenses.

Que não é exclusivo de indivíduos esta paixão: as multidões também a alimentam.

E a individualidade eminente, da envergadura gigantesca de Sarmento, pelos seus talentos, pelas suas virtudes, pelo seu trabalho pela rectidão inquebrantável e amor da justiça, saliente, sempre manifesto amor de justiça, inspirou a nobre paixão da cidade.

A paixão de justo orgulho da cidade de Guimarães sentiu-se oprimida resvalando, em irreprimível consternação, para a escuridão de um túmulo, que traga a fonte viva deste amor colectivo, deste culto popular, geral e profundo, pelo homem forte e rico de benemerências intelectuais e morais, agora reduzido a pó.

É a consternação de hoje, última cena perante a tragédia da vida individual de um vulto grandioso.

Mas amanhã, ao revermos monumentos imorredouros da obra grandiosa do morto ilustre, a alma colectiva da cidade receberá conforto, sentirá renascer as expansões de antigo orgulho, o amor próprio da população há-de reviver pujante e intenso pelo nome, aureolado de glória imarcescível, do grande cidadão, que foi um guia seguro, um vivo exemplo de virtudes cívicas, um trabalhador infatigável, pelo bem, pelo belo, pela verdade.

Sim, que para o sábio e para o estudioso, os Ora Maritima, os Argonautas, e tantos produtos do seu estudo indefesso, da sua crítica viva e firme, não são epitáfios, mas monumentos devida intelectual sempre pujante;

que para os patriotas, as conquistas de renascença vital vimaranense, para que tanto cooperou a sua acção directa, o seu influxo e prestígio, não se reduzem a cinzas das tremendas destruições, a pulverizações de ingentes cataclismos: mas continuam radicadas e seguras e a inspirarem novas conquistas, novos progressos nas evoluções futuras da vida colectiva;

que para os humildes, a Sociedade Martins Sarmento continuará viva, robusta pela dedicação dos seus consócios, socorrendo, solicitamente, com a actividade de ardentes patriotas, com o vigor de apóstolos de caridade social, oferecendo agasalho intelectual aos infelizes, fortalecimento aos pequeninos pelo pão, pelo sal, gerador de virtudes e riqueza, da instrução geral e profissional.

Não, o Sarmento não morreu; apenas desapareceu, mas vive e viverá perpetuamente pela luz intensa e irradiante das suas obras científicas, pela utilidade e benemerência de instituições estabelecidas.

Vai, é certo, cerrar-se sobre o corpo, a pedra sepulcral; mas abrem-se francos e iluminados novos capítulos de história contemporânea.

Não vemos mais o homem: a morte tragou-o; a lei biológica inquebrantável não sofre uma excepção; a família — a esposa amantíssima, a enfermeira extremosíssima, os sobrinhos tão respeitadores e dedicados, os parentes, os amigos e admiradores perderam a sua tão característica, tão amorosa, tão paternal, tão lhana, cavalheirosa, modesta, atraente convivência; mas o seu espírito lucidíssimo, a sua cultura profundíssima, a sua lição tão respeitada, continuam vivas na — Revista de Guimarães, na Citânia e no Sabroso, na Sociedade Martins Sarmento, nos Lígures, no Ora Marítima, nos Argonautas, nas centenas de estudos que ilustraram numerosas publicações científicas de Portugal, de Espanha, de França, de Alemanha.

Um homem grande nunca morre: durante a vida orgânica, vive e ilumina pelos seus feitos; paralisado o organismo, vive no foco luminoso das instituições que fundou, que sugeriu ou inspirou, pelas colaborações em que como que se realiza a transmigração do seu espírito; para homens como Francisco Sarmento, a morte é apenas o começo da vida gloriosa na história geral das ciências, na história das altas devoções patrióticas, renascendo e revivendo na pureza e opulência imaculadas e radicadas em monumentos imorredouros.

Senhores: deixemo-lo em paz; continuemos o nosso culto no estudo e incremento das instituições que nos legou.

Como não raro sucede com o herói de batalhas, dirigindo um combate, prostrado, crivado de balas, quando os sons clamorosos da guerra, o fragor e embriaguez da ingente pugna, o ódio estonteante de lutas em vagalhões no terrífico marulhar humano… continua-se obedecendo aos últimos ditames, realizando o plano delineado… assim, nós vimaranenses continuaremos a batalha travada, que viver é combater (militia est vita hominis), que o nosso querido extinto, herói laureado de batalhas pelo justo, pelo belo e pelo bem, deixou-nos, nas instituições e monumentos criados, o luminoso plano e os derradeiros ditames.

Nós, os vivos, herdeiros de um valiosíssimo tesouro intelectual, façamos este voto à borda de um túmulo; trabalhemos, lutemos, combatamos!

No cumprimento deste voto, que traduz e continua o seu culto fervoroso e constante pela Pátria, pela Justiça, pela ciência — constituamos a melhor das homenagens, o preito mais elevado, a estátua mais duradoura, a mais brilhante florescência da nossa alma colectiva oferecida ao grande nome do maior cidadão vimaranense deste século!


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