O tempo e os progressos da humanidade não
tardaram a zombar da nova peia. A população transbordou por cima dos muros de
D. Dinis e, como se procurasse compensação ao constrangimento em que vivera
quase abafada pela estreiteza das ruas e pequenez dos terreiros, veio sentar-se
em volta de um grande campo, mesmo contíguo às muralhas, para o lado de oeste.
Destarte se formou a praça do
Toural, conservando o nome antigo do
campo que, por ser ali a feira do gado, lhe chamavam do Toural, que vale o mesmo que se dissessem — dos
Touros.
Vilhena Barbosa, in Arquivo Pitoresco, vol. VII, Lisboa, 1864, p. 217.
Vilhena Barbosa, in Arquivo Pitoresco, vol. VII, Lisboa, 1864, p. 217.
De todos os textos de Inácio Vilhena Barbosa
que aqui temos vindo a publicar, o que dedicou à descrição da praça do Toural é
um dos mais interessantes e mais ricos em informação. Era uma praça de tal modo
vasta e desafogada, especialmente quando comparada com as praças, pracetas,
ruas e vielas do interior do espaço amuralhado, que se lhe chamava campo. Alguns de nós lhe temos chamado
de sala de visitas, Vilhena Barbosa chama-lhe o Chiado de Guimarães, referindo-se especialmente à sua frente do
lado do nascente, ali onde antes passou a velha muralha e agora está um quarteirão de casas sob um risco uniforme e de arquitectura
regular, onde se reúnem diariamente
os tafuis e passeantes, para matarem as horas de ócio, conversando e inquirindo
novidades. Bem sabemos que persiste entre nós algum saudosismo do tempo em
que o Toural tinha como praça central um jardim com os seus canteiros
harmoniosamente desenhados, assim como noutros tempos outros suspiraram pelo jardim
público cercado de grades que ali esteve nos finais da monarquia. Porém, a leitura deste texto
e a observação da gravura que o acompanha ajudam a perceber que, no essencial,
a recente intervenção no Toural lhe devolveu a sua antiga configuração de praça
ampla e não confinada (e lá está o muito belo chafariz quinhentista a
confirmá-lo ‑ apenas faltou, no outro topo da praça, o cruzeiro do Fiado que
ainda lá estava quando Vilhena Barbosa conheceu o Toural).
Conta o historiador que, outrora, o Toural
foi palco de pomposas festas, mas que
naqueles dias acontecia ali semanalmente
um espectáculo sem dúvida mais curioso, mais belo e mais civilizador: era o
grande mercado de Guimarães, de todos os sábados,
em que Guimarães teria a primazia a todos
as povoações do reino, já que Vilhena Barbosa, que conhecia bem as terras
deste país, estava convicto de que nenhuma
outra possui um mercado semanal de tanta importância, tão concorrido de gente,
de géneros, mercadorias e gados.
O Toural
Por duas vezes foi cingida de muros a antiga
vila de Guimarães. A primeira cerca foi obra do conde D. Henrique, segundo
parece mais provável, ou, pelo menos, foi por este príncipe reformada e
aumentada. Com os privilégios e mais vantagens que lhe provinham de ser assento
da corte, tanto prosperou e cresceu, que, passado século e meio, tinha a
povoação rebentado o cinto com que a apertaram na infância, estendendo-se por
fora das muralhas.
Então traçou-lhe el-rei D. Dinis nova e mais
larga cerca, que abrangesse dentro em si todas as casas. Não bastou o seu
reinado para levar a cabo esta empresa. Continuou-a, porém, seu filho, D.
Afonso IV, que a concluiu; e el-rei D. João I aperfeiçoou-a e robusteceu-a,
adicionando-lhe altas torres ameiadas, com que ficaram melhor defendidas as
diversas portas da vila.
O tempo e os progressos da humanidade não
tardaram a zombar da nova peia. A população transbordou por cima dos muros de
D. Dinis e, como se procurasse compensação ao constrangimento em que vivera
quase abafada pela estreiteza das ruas e pequenez dos terreiros, veio sentar-se
em volta de um grande campo, mesmo contíguo às muralhas, para o lado de oeste.
Destarte se formou a praça do Toural,
conservando o nome antigo do campo que, por ser ali a feira do gado, lhe
chamavam do Toural, que vale o mesmo
que se dissessem — dos Touros.
No princípio foi-se guarnecendo de casas
pelos lados de oeste e do sul, deixando inteiramente livre a muralha da vila,
que limitava o campo pela parte de leste, entrando um pouco pela do norte.
Assim se conservou até ao primeiro quartel do século XVIII; porém nesse espaço
de tempo, que não foi menos de dois séculos, fizeram-se consideráveis
melhoramentos na dita praça, tais como um formoso chafariz, fabricado em 1588,
um esbelto cruzeiro, erigido em 1650, e assentos de pedra junto da muralha, em
todo o seu comprimento.
Este lanço de muro ficava entre a torre da
alfândega e a torre de S. Domingos, chamada em eras anteriores de Nossa Senhora da Piedade, em razão de
uma capela com esta invocação que estava próximo dela. Erguia-se a primeira
destas duas torres na extremidade do campo para o lado sul e a segunda no
extremo do norte, fazendo aí um ângulo com a porta também chamada antigamente
de Nossa Senhora da Piedade e depois porta da Vila. A torre que a defendia
tinha recebido o seu novo nome do convento de S. Domingos, da ordem dos
pregadores, que fora fundado perto do campo do Toural e da sobredita torre.
Até ao período do século XVIII acima referido,
as casas desta praça eram quase todas de alpendrada sobre colunas de pedra, ao
uso antigo. Nos fins, porém, desse mesmo século e no começo do seguinte, que é
a época de maior prosperidade de Guimarães, pelo grande desenvolvimento da sua
indústria fabril e do seu comércio de exportação para o Brasil, procedeu-se à
construção de prédios, que deram à praça do Toural um novo e mais grandioso
aspecto.
Foi demolido até aos alicerces todo o lanço
de muros da cerca de D. Dinis e em seu lugar se edificaram dois quarteirões,
compostos de diferentes propriedades, mas sob um risco uniforme e de arquitectura
regular relativa a cada quarteirão, com lojas, sobrelojas, e mais dois andares
no quarteirão maior, e três no mais pequeno, correndo-lhes pela frente um largo
passeio lajeado.
Onde estava a torre de S. Domingos, ao norte,
construiu-se outro prédio, parecido com estes, e nesse mesmo lado se edificaram
outros ao diante. A porta da Vila e a
porta Nova, também denominada postigo de Sampaio, desapareceram,
deixando franca passagem a duas ruas que entram na praça. A primeira daquelas
ruas, que conduz ao terreiro da Misericórdia* e à rua Sapateira e praça de
Nossa Senhora da Oliveira**, conserva o nome de porta da Vila.
Os outros lados da praça não apresentam
regularidade de construções; todavia, foram-se reformando as velhas casas de
alpendrada e contam alguns edifícios de boa aparência.
A praça do Toural é bastantemente vasta. Não
sabemos a medida da sua extensão, mas parece-nos, se não nos falha a memória,
que não será muito inferior à da nossa praça de D. Pedro, sendo também pouco
menos larga do que esta.
Levanta-se o cruzeiro quase na extremidade do
norte. Assenta a cruz sobre uma esbelta e alta coluna de ordem coríntia, se bem
nos lembrámos, cuja base está colocada em um patim, de onde descem para a praça
cinco degraus. No pedestal em que repoisa a haste da cruz, lê-se a seguinte
inscrição: Esta obra mandou fazer o juiz
e irmandade de Nossa Senhora do Rosário no ano de 1650.
Corresponde ao cruzeiro, no lado oposto da
praça, o chafariz, que é de forma tão elegante e delicada que podia servir de
adorno no meio de qualquer jardim. Cai a água de duas taças para um tanque
cercado de assentos. As taças, e as mui delgadas colunas que as sustentam e separam,
são cobertas de lavores que, apesar de esculpidos no granito, produzem belo
efeito. Sobre a taça superior, serve de remate ao chafariz uma esfera de bronze
doirado, coroando dois escudos igualmente de bronze, colocados um contra o
outro, nos quais se vêem pintadas as armas reais em um deles e uma águia
coroada no outro.
A nossa gravura, copiada de uma fotografia,
representa esta parte da praça, em que avulta o chafariz. À esquerda vêem-se os
dois quarteirões de que acima falámos. A estampa mostra dois prédios do maior e
parte do mais pequeno. As lojas destes quarteirões são ocupadas quase todas por
mercadores de panos de lã e de sedas. É aqui, nas lojas e no passeio de lajedo
que corre junto delas, que se reúnem diariamente os tafuis e passeantes, para
matarem as horas de ócio, conversando e inquirindo novidades. É o Chiado de Guimarães.
Outrora, quando o comércio dos linhos, das
cutelarias e dos curtumes de coiros espalhava profusamente entre o povo de
Guimarães riqueza e alegria, faziam-se amiúde pomposas festas na praça do Toural.
Aproveitavam-se todas as solenidades e quaisquer pretextos de regozijo público
para se fazerem danças populares com esquisitas invenções de vestuário,
cavalhadas, fogo de vistas e outras diversões, cujo aparato era realçado pela
grandeza da praça e pela multidão dos espectadores.
Hoje nada disto se faz mas, em seu lugar, vê-se
ali semanalmente um espectáculo sem dúvida mais curioso, mais belo e mais
civilizador. É o grande mercado de Guimarães, de todos os sábados. Neste ponto
leva esta cidade a primazia a todos as povoações do reino. Cremos que nenhuma
outra possui um mercado semanal de tanta importância, tão concorrido de gente,
de géneros, mercadorias e gados. A praça do Toural apresenta nesses dias um
panorama encantador e pitoresco, pela variedade dos produtos ali expostos à
venda e pela diversidade e cores garridas dos trajos das camponesas ou lavradeiras, como lhes chamam em todo o
Minho. Enche-se a maior parte da praça com loiça de barro e de pó de pedra, de
indústria nacional, mas de diferentes procedências; de loiça fina inglesa; de
objectos de vidro; cutelaria; ferragens; utensílios de uso doméstico; espelhos
e perfumarias; instrumentos agrários, etc. No restante da praça, em volta do
chafariz, estão dispostos hortaliças, frutas, aves, ovos, queijos, etc.
Mas não se julgue que a isto fica limitado o
mercado. O vizinho terreiro da
Misericórdia é todo ocupado com barracas arruadas, em que se vende panos de
lã, sedas, chitas, cassas, e outras fazendas de lã, linho e algodão, de indústria
estrangeira e nacional, fato feito para os dois sexos, colchas, cobertores, etc.
No terreiro de S. Sebastião, também
vizinho, que se comunica com a praça do Toural pelo sul, e no espaçoso terreiro de S. Francisco, imediato a
este, faz-se a feira de cereais e legumes e das suas variadas preparações. Aí
se vende por grosso, em sacas, e por miúdo, mui diferentes qualidades de trigo,
centeio, milho e suas respectivas farinhas; feijões e grão-de-bico, pão cozido
de variadíssimas formas e de todo o género de cereais, pão-de-ló, biscoitos e
outros doces. No vasto campo da Feira***
e nas ruas que o comunicam com o terreiro
de S. Francisco, faz-se a exposição de gados, em que abunda o vacum.
Concorrem, pois, a este grande mercado,
milhares de expositores e compradores de muitas léguas em redor da cidade.
I. DE VILHENA BARBOSA.
[in Arquivo Pitoresco, vol. VII, Lisboa,
1864, pp. 217-218]
*Vid. a gravura
a pág. 345 do vol. VI.
** Vid. a gravura
a pag. 353 do vol. IV.
*** Vid. pág.
92 deste volume.
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