A igreja de S. Miguel do Castelo em 1864

Igreja de S. Miguel e Castelo de Guimarães. Gravura de Pedroso a partir de desenho de B. Lima. Arquivo Pitoresco, vol. VI, 1864, p. 173


É sobre  a Igreja de S. Miguel do Castelo que escreve Inácio de Vilhena Barbosa, no texto que agora reproduzimos e que foi inicialmente publicado em 1864 no Arquivo Pitoresco.


Guimarães — S. Miguel do Castelo
Este pequenino templo, de arquitectura singelíssima e de fábrica humilde, que aí figura em a nossa gravura a par do velho alcáçar do conde D. Henrique de Borgonha, é um dos mais venerandos monumentos de Portugal.
Que importa que a arte o não fizesse belo, nem rico, nem grande, se o respeito de tantos séculos o fizeram ilustre e se, ainda mais que esse próprio respeito, algumas memórias históricas de alta valia o tornaram digno da atenção e do acatamento das gerações que umas após outras se vão sucedendo no nosso país?
Na opinião de alguns dos nossos antiquários, pertencem a esta igreja as honras de primaz entre todas as paróquias do arcebispado de Braga. Mas o que é certo, e lhe basta para documento da sua muita antiguidade, é ter sido paróquia da vila velha de Guimarães, anteriormente à fundação da monarquia. Porém outro é ainda o seu maior brasão.
No século XI, gozando da preeminência de capela real do conde D. Henrique e de sua mulher, a rainha D. Teresa*, que viviam no vizinho castelo, forneceu a água do baptismo ao infante que os portugueses levantaram por seu primeiro rei. Esta honrada memória vale bem, ou diremos antes, vale mais que quantas grandezas e magnificências o edifício pudesse ostentar. Vale muito mais, certamente, porque comemora o nascimento para a graça cristã de um verdadeiro herói, campeão da cruz, paladino da pátria, anjo da vitória, a quem Deus armou o braço para expurgar esta terra dos agarenos que a tinham avassalado e a quem deu força para fundar uma monarquia, não só em favor de uma família, mas também em benefício da independência de uma nação.
Libertando, pois, o solo da pátria da opressão estranha e assentando a autonomia do povo portuguesa em bases tão sólidas, que não têm podido destruí-las ambições e esforços de inimigos poderosos, nem os vaivéns da fortuna no decurso de mais de sete séculos em que tantas nações, incomparavelmente maiores que a nossa, têm perdido a existência política; D. Afonso Henriques adquiriu glória mais fulgente do que a de simples conquistador; mais brilhante do que a sua coroa de rei. A sua glória é brasão que nobilita o berço da monarquia; é reflexo que doira as páginas da nossa história; é luz que nos deve alumiar para a conservação da nossa independência; e será como sol que nos mantenha sempre quente no peito o amor da pátria e da liberdade.
É Guimarães uma das terras do nosso país cujas antiguidades tem sido mais investigadas. Vários arqueólogos distintos se dedicaram a esse estudo, em diferentes épocas, já remotas, publicando depois o fruto das suas lucubrações. E todavia nenhum autor nos dá noticia da fundação da igreja de S. Miguel do Castelo, apesar de serem tão minuciosos na da colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, que precedeu aquela.
Entretanto, boas razões fazem supor que a igreja de S. Miguel foi erigida no segundo quartel do século X. A colegiada de Nossa Senhora da Oliveira foi primitivamente mosteiro dúplex de frades e freiras da ordem de S. Bento, e este teve por fundadora, no ano 927, a condessa D. Mumadona, tia de Ramiro II, rei de Leão, e viúva de D. Hermenegildo, conde de Tui e do Porto. O mosteiro deu origem à povoação, que, atraída da caridade de D. Mumadona, veio sentar-se à sombra de seus muros, de onde depois se estendeu até se pôr ao abrigo do castelo que a mesma condessa edificou para defesa daquela casa religiosa.
Sendo este o princípio da vila de Guimarães, é certo que a igreja de S. Miguel, primeira paróquia da vila, já existia quando o conde D. Henrique de Borgonha e sua esposa entraram na posse do condado de Portugal, em 1093. Porém, a porta principal do templo revela uma data posterior, pois que a sua forma ogival pertence a um estilo de arquitectura que, como já temos dito e repetido, foi introduzido em Portugal anos depois da morte do conde D. Henrique, durante a regência da rainha D. Teresa ou no governo de seu filho D. Afonso Henriques.
Não está averiguada a época precisa da sua introdução, mas sim que isto se realizou em um dos dois citados períodos da nossa história. Anteriormente, a arquitectura em voga era a normanda, à qual hoje alguns chamam impropriamente gótico-normando. Raros vestígios conserva o nosso país desta arquitectura, e esses poucos pertencem a edifícios que ainda mesmo em novos eram mesquinhos. Porém, sem ser necessário passar além dos Pirenéus, encontram-se muitos espécimes completos deste estilo. A Espanha, que é mui rica em monumentos de todas as idades, desde a dominação romana, possui alguns templos de arquitectura normanda, bem conservados e que, em relação à época em que foram erigidos, podem ser classificados como grandiosos. Em todos esses edifícios ver-se-ão de ordinário as portas de arco de volta redonda, e nunca ogival, e as janelas ou frestas também com a mesma forma, ou com a verga direita, como se pode observar nas janelas do paço do conde D. Henrique, no castelo de Guimarães, e nas frestas da vizinha igreja de S. Miguel.
Portanto, se a rainha D. Teresa ou seu filho D. Afonso Henriques fizeram, como parece certo, obras de reedificação neste templo, não seremos exagerados atribuindo a sua fundação ao meado do século X, o que lhe dá uma existência de dois séculos, ou pouco menos, ao tempo daquela reconstrução. Não é provável que precisasse de semelhante obra, tendo menos idade, ainda que se tome em conta a pequenez do edifício, pois que, se a fábrica é acanhada, não lhe falta contudo solidez, porque é toda construída de grandes pedras de cantaria.
Excluímos também a ideia de que a dita reedificação fosse empreendida posteriormente ao reinado de D. Afonso Henriques porque, sendo a igreja de S. Miguel uma abadia antigamente apresentada pelo dom prior de Guimarães, não se acha notícia daquela obra no arquivo da colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, como era uso fazer-se nessas eras.
O arquivo desta colegiada é dos mais ricos em documentos antigos que há no reino; e pode dizer-se que é dos mais completos porquanto, tendo escapado às devastações e descaminhos que têm empobrecido tantos outros, conserva ainda todas as escrituras, doações, privilégios, memórias, etc., desde o tempo da condessa D. Mumadona, não só pertencentes à igreja da colegiada propriamente dita, mas também respectivas às igrejas que foram da apresentação do seu dom prior.
A singeleza da arquitectura do templo de S. Miguel está retratando bem ao natural o viver da geração que o levantou, e ainda o da sociedade portuguesa quando o arcebispo de Braga, S. Geraldo, nele baptizou a D. Afonso Henriques, correndo o ano, que se tem por mais provável, de 1094.
Como documento da sua muita antiguidade, mostra o templo exteriormente, na parede lateral oposta à que a nossa gravura representa, uns túmulos de pedra, metidos em arcos abertos no grosso da mesma parede. Também existem dessa era remota várias sepulturas no adro.
Interiormente tudo ali respira humildade e pobreza. Além da capela-mor tem dois altares, colaterais, mas colocados no corpo da igreja. O da parte do evangelho é dedicado a Nossa Senhora da Graça e o da parte da epístola a Santa Margarida, de quem o povo é ou foi tão devoto que estendeu a sua invocação ao templo, de sorte que ao presente é mais conhecido pelo título de Santa Margarida, do que pelo nome do seu verdadeiro orago.*
Em 1664, foi despojada esta igreja da sua maior preciosidade arqueológica. D. Diogo Lobo da Silveira, dom prior da colegiada, fez transportar a pia em que o nosso primeiro rei recebeu a graça do baptismo para a sua igreja de Nossa Senhora da Oliveira**. E por essa ocasião ou, talvez, em tempos mais modernos, crendo-se que tão honrada memória precisava de ser enriquecida com ridículos arrebiques, cobriram o tosco granito com doiraduras e pinturas ainda mais toscas, que foram renovadas não há muitos anos, e que lá estão dando testemunho tanto do nosso atraso e mau gosto em assuntos de arte, como da irreverência e desprezo com que tratamos os padrões históricos, que merecem o nosso acatamento. O que se praticou com aquela veneranda antigualha é, a todos os respeitos, uma verdadeira profanação, que só pode encontrar desculpa, não na sinceridade da intenção, mas sim na rudeza dos tempos ou na ignorância dos homens.
Entre os privilégios que desfrutou a igreja de S. Miguel, contava-se a grande prerrogativa de ser imediata ao papa e, por conseguinte, isenta da jurisdição dos arcebispos de Braga. Também lhe serve de título honorífico o seu hospital do Anjo, cuja fundação, por muito antiga, é desconhecida.
A igreja de S. Miguel é hoje uma das cinco paróquias da cidade de Guimarães. Do castelo vizinho já tratámos a pág. 204 do vol. VI. Mas, tendo-nos esquecido declarar a sua invocação, aproveitámos o ensejo para reparar esta falta. Foi o castelo consagrado a S. Mamede pela condessa D. Mumadona. Consta isto do testamento da fundadora, que se guarda no arquivo da colegiada de Nossa Senhora da Oliveira.
I. DE VILHENA BARBOSA.

[in Arquivo Pitoresco, vol. VII, Lisboa, 1864, pp. 172-174]

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