Igreja de S. Miguel e Castelo de Guimarães. Gravura de Pedroso a partir de desenho de B. Lima. Arquivo Pitoresco, vol. VI, 1864, p. 173 |
É um templo tão modesto que mais
depressa lhe chamaríamos capela do que igreja, mas que tem uma dimensão
simbólica que supera largamente a sua dimensão física: é a igreja onde, segundo
a tradição, foi baptizado D. Afonso Henriques, o rei fundador de Portugal. No
entanto, como já escrevemos antes, não
há qualquer base, a não ser essa mesma tradição, que permita afirmar que Afonso
Henriques, nascido no princípio do século XII, tenha ali recebido a água do
baptismo. Existe, aliás uma impossibilidade cronológica: a pequena igreja de S.
Miguel do Castelo só seria construída meio século depois da morte de Afonso
Henriques, tendo sido sagrada pelo arcebispo de Braga no ano de 1236 (conforme
constava numa inscrição exposta na sacristia, transcrita pelo padre Caldas).
É sobre a Igreja de S. Miguel do Castelo que escreve
Inácio de Vilhena Barbosa, no texto que agora reproduzimos e que foi inicialmente
publicado em 1864 no Arquivo Pitoresco.
Guimarães — S.
Miguel do Castelo
Este pequenino templo, de arquitectura
singelíssima e de fábrica humilde, que aí figura em a nossa gravura a par do
velho alcáçar do conde D. Henrique de Borgonha, é um dos mais venerandos
monumentos de Portugal.
Que importa que a arte o não fizesse belo,
nem rico, nem grande, se o respeito de tantos séculos o fizeram ilustre e se,
ainda mais que esse próprio respeito, algumas memórias históricas de alta valia
o tornaram digno da atenção e do acatamento das gerações que umas após outras
se vão sucedendo no nosso país?
Na opinião de alguns dos nossos antiquários, pertencem
a esta igreja as honras de primaz entre todas as paróquias do arcebispado de
Braga. Mas o que é certo, e lhe basta para documento da sua muita antiguidade,
é ter sido paróquia da vila velha de Guimarães, anteriormente à fundação da monarquia.
Porém outro é ainda o seu maior brasão.
No século XI, gozando da preeminência de capela
real do conde D. Henrique e de sua mulher, a rainha D. Teresa*, que viviam no vizinho
castelo, forneceu a água do baptismo ao infante que os portugueses levantaram
por seu primeiro rei. Esta honrada memória vale bem, ou diremos antes, vale
mais que quantas grandezas e magnificências o edifício pudesse ostentar. Vale
muito mais, certamente, porque comemora o nascimento para a graça cristã de um
verdadeiro herói, campeão da cruz, paladino da pátria, anjo da vitória, a quem
Deus armou o braço para expurgar esta terra dos agarenos que a tinham avassalado
e a quem deu força para fundar uma monarquia, não só em favor de uma família,
mas também em benefício da independência de uma nação.
Libertando, pois, o solo da pátria da opressão
estranha e assentando a autonomia do povo portuguesa em bases tão sólidas, que
não têm podido destruí-las ambições e esforços de inimigos poderosos, nem os vaivéns
da fortuna no decurso de mais de sete séculos em que tantas nações,
incomparavelmente maiores que a nossa, têm perdido a existência política; D. Afonso
Henriques adquiriu glória mais fulgente do que a de simples conquistador; mais
brilhante do que a sua coroa de rei. A sua glória é brasão que nobilita o berço
da monarquia; é reflexo que doira as páginas da nossa história; é luz que nos
deve alumiar para a conservação da nossa independência; e será como sol que nos
mantenha sempre quente no peito o amor da pátria e da liberdade.
É Guimarães uma das terras do nosso país
cujas antiguidades tem sido mais investigadas. Vários arqueólogos distintos se
dedicaram a esse estudo, em diferentes épocas, já remotas, publicando depois o fruto
das suas lucubrações. E todavia nenhum autor nos dá noticia da fundação da igreja
de S. Miguel do Castelo, apesar de serem tão minuciosos na da colegiada de Nossa
Senhora da Oliveira, que precedeu aquela.
Entretanto, boas razões fazem supor que a igreja
de S. Miguel foi erigida no segundo quartel do século X. A colegiada de Nossa
Senhora da Oliveira foi primitivamente mosteiro dúplex de frades e freiras da
ordem de S. Bento, e este teve por fundadora, no ano 927, a condessa D.
Mumadona, tia de Ramiro II, rei de Leão, e viúva de D. Hermenegildo, conde de
Tui e do Porto. O mosteiro deu origem à povoação, que, atraída da caridade de
D. Mumadona, veio sentar-se à sombra de seus muros, de onde depois se estendeu
até se pôr ao abrigo do castelo que a mesma condessa edificou para defesa daquela
casa religiosa.
Sendo este o princípio da vila de Guimarães,
é certo que a igreja de S. Miguel, primeira paróquia da vila, já existia quando
o conde D. Henrique de Borgonha e sua esposa entraram na posse do condado de
Portugal, em 1093. Porém, a porta principal do templo revela uma data
posterior, pois que a sua forma ogival pertence a um estilo de arquitectura
que, como já temos dito e repetido, foi introduzido em Portugal anos depois da
morte do conde D. Henrique, durante a regência da rainha D. Teresa ou no
governo de seu filho D. Afonso Henriques.
Não está averiguada a época precisa da sua introdução,
mas sim que isto se realizou em um dos dois citados períodos da nossa história.
Anteriormente, a arquitectura em voga era a normanda, à qual hoje alguns chamam
impropriamente gótico-normando. Raros
vestígios conserva o nosso país desta arquitectura, e esses poucos pertencem a
edifícios que ainda mesmo em novos eram mesquinhos. Porém, sem ser necessário
passar além dos Pirenéus, encontram-se muitos espécimes completos deste estilo.
A Espanha, que é mui rica em monumentos de todas as idades, desde a dominação
romana, possui alguns templos de arquitectura normanda, bem conservados e que,
em relação à época em que foram erigidos, podem ser classificados como
grandiosos. Em todos esses edifícios ver-se-ão de ordinário as portas de arco
de volta redonda, e nunca ogival, e as janelas ou frestas também com a mesma forma,
ou com a verga direita, como se pode observar nas janelas do paço do conde D.
Henrique, no castelo de Guimarães, e nas frestas da vizinha igreja de S.
Miguel.
Portanto, se a rainha D. Teresa ou seu filho
D. Afonso Henriques fizeram, como parece certo, obras de reedificação neste
templo, não seremos exagerados atribuindo a sua fundação ao meado do século X,
o que lhe dá uma existência de dois séculos, ou pouco menos, ao tempo daquela
reconstrução. Não é provável que precisasse de semelhante obra, tendo menos idade,
ainda que se tome em conta a pequenez do edifício, pois que, se a fábrica é
acanhada, não lhe falta contudo solidez, porque é toda construída de grandes
pedras de cantaria.
Excluímos também a ideia de que a dita
reedificação fosse empreendida posteriormente ao reinado de D. Afonso Henriques
porque, sendo a igreja de S. Miguel uma abadia antigamente apresentada pelo dom
prior de Guimarães, não se acha notícia daquela obra no arquivo da colegiada de
Nossa Senhora da Oliveira, como era uso fazer-se nessas eras.
O arquivo desta colegiada é dos mais ricos em
documentos antigos que há no reino; e pode dizer-se que é dos mais completos
porquanto, tendo escapado às devastações e descaminhos que têm empobrecido
tantos outros, conserva ainda todas as escrituras, doações, privilégios,
memórias, etc., desde o tempo da condessa D. Mumadona, não só pertencentes à igreja
da colegiada propriamente dita, mas também respectivas às igrejas que foram da
apresentação do seu dom prior.
A singeleza da arquitectura do templo de S.
Miguel está retratando bem ao natural o viver da geração que o levantou, e
ainda o da sociedade portuguesa quando o arcebispo de Braga, S. Geraldo, nele baptizou
a D. Afonso Henriques, correndo o ano, que se tem por mais provável, de 1094.
Como documento da sua muita antiguidade,
mostra o templo exteriormente, na parede lateral oposta à que a nossa gravura
representa, uns túmulos de pedra, metidos em arcos abertos no grosso da mesma parede.
Também existem dessa era remota várias sepulturas no adro.
Interiormente tudo ali respira humildade e
pobreza. Além da capela-mor tem dois altares, colaterais, mas colocados no
corpo da igreja. O da parte do evangelho é dedicado a Nossa Senhora da Graça e
o da parte da epístola a Santa Margarida, de quem o povo é ou foi tão devoto
que estendeu a sua invocação ao templo, de sorte que ao presente é mais conhecido
pelo título de Santa Margarida, do que pelo nome do seu verdadeiro orago.*
Em 1664, foi despojada esta igreja da sua
maior preciosidade arqueológica. D. Diogo Lobo da Silveira, dom prior da colegiada,
fez transportar a pia em que o nosso primeiro rei recebeu a graça do baptismo
para a sua igreja de Nossa Senhora da Oliveira**. E por essa ocasião ou,
talvez, em tempos mais modernos, crendo-se que tão honrada memória precisava de
ser enriquecida com ridículos arrebiques, cobriram o tosco granito com doiraduras
e pinturas ainda mais toscas, que foram renovadas não há muitos anos, e que lá
estão dando testemunho tanto do nosso atraso e mau gosto em assuntos de arte,
como da irreverência e desprezo com que tratamos os padrões históricos, que
merecem o nosso acatamento. O que se praticou com aquela veneranda antigualha é,
a todos os respeitos, uma verdadeira profanação, que só pode encontrar
desculpa, não na sinceridade da intenção, mas sim na rudeza dos tempos ou na ignorância
dos homens.
Entre os privilégios que desfrutou a igreja
de S. Miguel, contava-se a grande prerrogativa de ser imediata ao papa e, por
conseguinte, isenta da jurisdição dos arcebispos de Braga. Também lhe serve de título
honorífico o seu hospital do Anjo, cuja fundação, por muito antiga, é
desconhecida.
A igreja de S. Miguel é hoje uma das cinco paróquias
da cidade de Guimarães. Do castelo vizinho já tratámos a pág.
204 do vol. VI. Mas, tendo-nos esquecido declarar a sua invocação,
aproveitámos o ensejo para reparar esta falta. Foi o castelo consagrado a S.
Mamede pela condessa D. Mumadona. Consta isto do testamento da fundadora, que
se guarda no arquivo da colegiada de Nossa Senhora da Oliveira.
I. DE VILHENA BARBOSA.
[in Arquivo Pitoresco, vol. VII, Lisboa,
1864, pp. 172-174]
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