Na cidade: a exposição

Fotografia tirada a partir da actual avenida D. Afonso Henriques, algures entre 1926 e 1931. Ao fundo, a torre da Alfândega tapada por um painel publicitário da Vacuum Oil, colocado no Verão de 1926. Os plátanos  da Avenida, aqui visíveis, foram cortados no final de 1931.

Até ao próximo dia 10 de Julho, estará patente na extensão do Museu de Alberto Sampaio, na praça de S. Tiago, em Guimarães, uma exposição de fotografia em que a associação Muralha mostra mais uma notável colheita de fotografias antigas de Guimarães, das muitas que se guardam na sua colecção. Uma exposição que, se vale muito pela imagem de conjunto que nos dá de uma cidade que, em parte, ainda aí está e que, em parte, já desapareceu, vale acima de tudo pelo fascínio dos detalhes, muitos deles surpreendentes. Uma exposição não perder, por todas as razões e mais as que descobrirão os olhos dos que as visitarem.

Entretanto, aqui fica um dos pequenos textos que consumaram a minha pequena contribuição para esta iniciativa, correspondendo a um desafio do meu amigo Rui Vítor Costa.


A Cidade, no início do século XX
Nas primeiras linhas de Húmus, Raul Brandão descreve a Vila que servirá de pano de fundo à sua obra-prima:

Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva – o castelo – restos intactos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. A torre – a porta da Sé com os santos nos seus nichos – a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade.

Sem esforço de imaginação se percebe que este é um retrato da Guimarães na viragem de oitocentos que o escritor bem conhecera e muito diferente da imagem romântica que guardámos.

No início do século XX, Guimarães era, para os que a habitavam, uma cidade decrépita, atravessada por um emaranhado de ruas, vielas e recantos escuros e insalubres, onde já muito tardava a modernidade, que lhe recortaria avenidas largas e praças amplas e luminosas. Se havia uns quantos monumentos, como o Castelo ou Colegiada, venerados como reminiscências de um passado glorioso, o mais que persistiam eram antigualhas sem serventia, velhas cicatrizes que não deviam ser expostas. Como aquele pedaço de muro da torre da Alfândega, feito de granito toscamente aparelhado.

Feia coisa, muitos pensaram. Cubra-se, alguém disse.

Assim se emparedou o que sobrava da única torre da velha cerca de muralhas de Guimarães que resistiu ao desmonte para empedramento das ruas. Com uma camada de reboco e outra de tinta branca, a antiga adquiriu nova feição e uma utilidade acomodada aos tempos modernos. Guimarães ganhou um painel publicitário.

Por aqueles tempos, as velhas cidades portuguesas engalanavam-se para saudarem o progresso que ia chegando ao som de fanfarras e foguetes. Assim sucedeu quando o povo de Braga, ignorando os protestos de alguns dos seus concidadãos mais esclarecidos, aclamou festivamente o derrube da muralha romana, então percebida como um espartilho que atrasava o advento do progresso na antiquíssima cidade dos arcebispos.

É certo que em Guimarães existia uma consciência patrimonial colectiva que velava pela salvaguarda dos padrões da sua identidade. Mas no património a salvaguardar não se incluíam as casas nem as ruas estreitas, sinuosas e insalubres do espaço a que hoje chamámos centro histórico. Se a Guimarães faltavam praças espaçosas, ruas arejadas e avenidas largas preparadas para acolherem a circulação dos novos meios de transporte motorizados que se anunciavam, não lhe faltaram projectos para beneficiar de tais melhoramentos. E não foi a consciência patrimonial vimaranense que impediu a concretização de tais melhoramentos.

A poucos, provavelmente a ninguém, Guimarães deve tanto no que toca ao estudo de da divulgação da sua história e do seu património como ao Abade de Tagilde, João Gomes de Oliveira Guimarães. Em 1906, no exercício das funções de Presidente da Câmara, gizou um programa de renovação urbanística que envolvia demolições extensas, com o muito saudado propósito de alargar ruas e praças. Se tais projectos nunca saíram do papel, foi pelas razões do costume: falta de dinheiro, inércia e agendas políticas (raramente o senhor que se segue assume os projectos de quem o antecedeu). Em boa hora: se estes empreendimentos, e outros que se seguiram, tivessem sido concretizados, Guimarães até poderia ser hoje uma cidade mais moderna, mas dificilmente seria Património Mundial.

Aspecto da exposição. Fotografia de Paulo Pacheco.

NA CIDADE
A Colecção de Fotografia da Muralha no Museu de Alberto Sampaio (MAS)
De 12 de maio a 10 de Julho
Extensão do MAS, Praça de S. Tiago, Guimarães.

Exposição organizada por Alexandra Xavier, Miguel Oliveira, Nuno Vieira e Rui Vítor Costa, com imagens da colecção de Fotografia da Muralha e textos de António Amaro das Neves, António José Oliveira, Célia Pontes, Isabel Fernandes, Maria José Meireles, Miguel Bastos, Miguel Frazão e Rosa Maria Saavedra.

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