Mortos vivos

Antoine Wiertz, O Enterro prematuro, 1854. Bruxelas, Royal Museums

É um dos medos mais recorrentes entre o comum dos mortais: acordar um dia de um sono profundo e perceber que se está debaixo de terra, encerrado dentro de quatro tábuas. Contavam-se histórias de sepulturas exumadas onde se encontravam cadáveres que se tinham movido, com os dedos encrespados e o caixão com sinais evidentes de tentativas desesperadas para o abrir a partir de dentro por quem, julgando-se morto, tinha sido enterrado vivo. Este receio, sustentado em factos verídicos, não afectava apenas mentes supersticiosas, sendo partilhado por pessoas reconhecidamente racionais que, com alguma razão, não tinham suficiente confiança nas determinações da ciência médica. Esse era o caso, por exemplo, do arqueólogo Francisco Martins Sarmento, que no seu testamento deixou instruções para prevenir a possibilidade de ter que passar por tal provação: o seu funeral apenas deveria acontecer quando transcorridos dois dias após a sua morte e o seu óbito deveria ser confirmado por dois médicos que, após a confirmação, lhe deveriam cortar as artérias carótidas. Se a fatalidade da morte o não atormentava, não suportava a ideia de ser sepultado vivo.
No século XIX, com a crescente popularidade da imprensa, as notícias de mortos que, afinal, estariam vivos quando foram dados à terra, eram relativamente frequentes. Assim como eram frequentes as que relatavam casos de pessoas dadas como falecidas e que se erguiam, durante os seus velórios, com desmedido susto para os que as velavam. Este medo era também alimentado por obras literárias que se tornaram muito populares, como O Enterro Prematuro, de Edgar Allan Poe. Por aqueles tempos, na Inglaterra, havia mesmo quem fosse sepultado em “caixões de segurança”, dotados de um mecanismo de alerta que seria accionado caso a sua morte fosse apenas aparente, que funcionava de um modo muito simples: na sua sepultura era instalada uma sineta onde estava preso um cordel que seria amarrado aos dedos da mão ou do pé do defunto. Se este se mexesse, o sino tocava, alertando quem lhe providenciaria o socorro.
Esquema de funcionamento de um "caixão de segurança".
Nas páginas dos jornais de Guimarães encontram-se diversos relatos de ocorrências com mortos que, afinal, estavam vivos, como aconteceu com Antónia Amélia, cuja ressurreição foi contada pelo jornal Religião e Pátria de 12 de Novembro de 1862, na notícia que a seguir se transcreve.

Morta sem o estar!
Vamos narrar um facto digno de sérios comentários. Por ele se verá-quanto é necessária a maior circunspecção e prudência a respeito enterramento de qualquer pessoa, e quanto é útil e aproveitável a lei que determina que aos mortos se não dê sepultura antes de passarem 24 horas depois do seu falecimento.
A exma. sra. D. Antónia Amélia Pinheiro da Silva Rocha, irmã do nosso amigo o ilmo. sr. Manuel Pinheiro da Silva Rocha, de Sta. Cristina de Arões, já há muito gravemente enferma duma inflamação intestinal, depois duma demorada febre gástrica, teve, num dos dias da semana passada, um violento espasmo nervoso, que lhe durou 2 noites e 1 dia. Passava-se isto na Póvoa de Varzim, para onde ela tinha ido acompanhada de algumas pessoas da família. Durante este estado, conservou sempre todos os sinais de morte — olhos fechados, corpo e pulso frio, o braço e a mão esquerda muito inchados e roxos etc. A família, aterrada com a sinistra ideia de morte, participou para esta cidade aquele suposto falecimento e ordenou que marchassem para lá umas andas, que conduzissem para aqui o cadáver, e que se lhe preparasse o funeral na capela das freiras de N. Sra. de Madre de Deus, vulgo— Capuchinhas. Estava pois tudo disposto para o enterramento — e já as andas iam às Necessidades, pequena distância da Póvoa —, quando a morta ressuscita e chama por sua extremosa mãe. Mais tarde um pouco, e aquela infeliz senhora seria, ainda em vida, dada em pasto aos vermes do sepulcro.
Tire-se pois daqui a ilação conveniente e haja mais cuidado e circunspecção em não adiantar o enterramento de qualquer pessoa.
Quantos infelizes terão ido morrer debaixo da lousa sepulcral!

Religião e Pátria, 12 de Novembro de 1862

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