Em comunicado ontem divulgado, a Câmara
Municipal de Guimarães informa que
Os edifícios por detrás da muralha,
Monumento Nacional desde 1910, que foram transacionados entre os privados,
terão de constituir servidão pública de acesso público ao cimo deste monumento
da Torre de Alfândega, no processo de licenciamento obrigatório a submeter à
aprovação da Câmara e da Direção Regional de Cultura do Norte para a sua
reabilitação e regeneração.
Se assim não for, a Câmara de Guimarães
iniciará o processo expropriativo desta servidão pública.
A intenção que aí se manifesta é de saudar.
Mas presta-se a controvérsia, como já veremos, e é manifestamente insuficiente, porque, pretendendo apenas salvaguardar o acesso público ao cimo da Torre da
Alfândega, não salvaguarda a Torre da Alfândega, propriamente dita, para o
domínio público.
Onde reside a possibilidade de controvérsia,
que ainda poderá suscitar alguns engulhos? No facto desta tomada de posição
partir do pressuposto, explicitamente afirmado, de que a muralha é “Monumento
Nacional desde 1910”. Ora, não há nenhuma evidência de que em 1910 a muralha de
Guimarães tenha sido classificada como monumento nacional. Vejamos porquê.
As bases para classificação dos monumentos
nacionais foram fixadas por decreto do Ministério das Obras Públicas de 30 de
Dezembro de 1901 (Diário do Governo n.º 153 de 12 de Julho de 1902). Foi com
base neste decreto que, a 27 de Agosto de 1908, o Castelo de Guimarães foi classificado
como monumento nacional (decreto Ministério das Obras Públicas — Diário do
Governo, n.° 199, de 4 de Setembro), ficando sob a alçada do Ministério das
obras Públicas, com, excepção do “terrapleno, paiol e mais dependências”, que pertenceriam
ao Ministério da Guerra.
Dois anos mais tarde, um novo de decreto do Ministério
das Obras Públicas (Diário do Governo n.º 136. de 23 de Junho) publicará a
lista dos imóveis que deveriam ser considerados monumentos nacionais, entre os
quais se contavam os já anteriormente classificados. Do concelho de Guimarães,
constam da lista dezasseis monumentos, a saber: a enigmática “Anta de
Polvoreira”, que nunca existiu, a Citânia de Briteiros, a Citânia de Sabroso,
dois marcos miliários da “Série Capela”, pertencentes ao Museu Arqueológico da
Sociedade Martins Sarmento, a lápide das Taipas (Ara de Trajano), as igrejas de
S. Miguel do Castelo, Nossa Senhora da Oliveira e S. Martinho de Candoso, o claustro
da Igreja de S. Domingos, o cruzeiro da Senhora da Guia, o Castelo de Guimarães
(já classificado em 1908), o Padrão de D. João I, as ruínas do Paço dos Duques
de Bragança, os Paços Municipais e a Ponte Velha de Vizela.
Como se vê, compulsando aquele decreto, não
há nele qualquer referência à cerca de muralhas de Guimarães. Poder-se-ia
admitir que poderia estar abrangida pela classificação do Castelo, mas esta
ideia afigura-se muito pouco plausível, quando se analisa a lista dos documentos
classificados pelo decreto de 1910. Nela constam diversos castelos, com menção
expressa, sempre que era o caso, às dependências abrangidas pelas respectivas classificações,
como se verifica pelos seguintes exemplos:
Montemor-o-Velho – Castelo de Montemor-o-Velho,
compreendendo a igreja anexa.
Cintra – Castelo dos Mouros, compreendendo a cisterna.
Lisboa – Castelo de S. Jorge e resto das cercas
de Lisboa.
Beja – Castelo de Beja, designadamente a Torre
de Menagem
Já o Castelo de Guimarães aparece listado
como:
Guimarães – Castelo de Guimarães.
Não há referência à muralha, portanto. Se a
classificação do Castelo a abrangesse, seria natural que a referência fosse
idêntica à de Lisboa (“Castelo de S. Jorge e resto das cercas de Lisboa”).
Mas existem outros argumentos que nos
permitem concluir que a muralha de Guimarães e a Torre da Alfândega não foram abrangidas
pela classificação de 1910. Esta conclusão resulta da leitura de dois artigos
do decreto do Ministério das Obras Públicas de 30 de Dezembro de 1901, que
tratam do processo de classificação de imóveis de propriedade particular, a
saber:
Art.º 3.º Os imóveis que forem propriedade
particular poderão ser classificados com assentimento do proprietário, devendo ser
especificadas no respectivo decreto as cláusulas a que fica sujeita a classificação.
[…]
Art.º 5.° Quando o proprietário de um imóvel
se opuser à classificação deste, poder-se-á proceder à expropriação por utilidade
pública, mediante lei especial que a autorize, depois de verificada a indispensabilidade
da expropriação e de haver sido ouvido o Conselho dos Monumentos Nacionais.
Ora, tal como hoje, em 1910 só uma pequena
parte da muralha pertencia ao domínio público, pelo que a sua classificação teria
necessariamente que ser precedida pelos procedimentos previstos nos artigos do
decreto acima transcritos. Os imóveis de propriedade particular (como era o
caso da Torre da Alfândega) só poderiam ser classificados com o consentimento
dos respectivos proprietários ou, quando estes o não dessem, na sequência de um
processo de expropriação por utilidade pública. E tal, manifestamente, não aconteceu.
Nem consentimentos, nem expropriações.
De onde se conclui que o decreto de 1910
apenas classifica o Castelo, não a cerca de muralhas, nem a Torre da Alfândega.
De onde se conclui também que não será
correcta a informação que consta na lista dos monumentos nacionais publicada em
2001 pelo Instituto Português do Património Arquitectónico, onde se lê:
553 - Muralhas de Guimarães Braga, Guimarães,
Oliveira do Castelo Dec. 16-06-1910, DG 136, de 23 Junho 1910
De onde se conclui, finalmente, que a muralha
de Guimarães, ao contrário do que muitos supõem, não está classificada como Monumento
Nacional.
Deve ser tempo de começar a tratar do
assunto.
3 Comentários
Não estava a lembrar-me desse pormenor que neste caso será de relevante importância para sanar eventuais dúvidas quanto ao desfecho deste assunto de importância relevante, não só para os vimaranenses e cidade, mas para a Humanidade.