Vista da Alameda para o Toural, cerca de 1906, num tempo em que a Torre da Alfândega era usada como suporte de publicidade |
O cata-vento é uma geringonça
muito curiosa, embora seja apenas uma lâmina, mais ou menos ornamentada, que responde
ao sopro do vento, girando sobre um eixo e indicando para onde sopra. E, como o
vento é de seu natural inconstante, muda de direcção com constância. Cata-vento
e geringonça são palavras que ainda agora entraram em força no léxico político
português e que se aplicam com muita propriedade à discussão que em Guimarães se
acendeu por estes dias em torno da Torre da Alfândega (que muitos confundiam e,
pelos vistos continuam a confundir, com um pano de muralha). Todos os dias
(aliás, várias vezes em cada dia) temos visto surgir notícias, umas
contraditórias, outras aparentemente contraditórias, acerca da matéria que
incendiou a discussão. E, a cada nova notícia, lá está o cata-vento a apontar a
direcção das convicções, accionando a geringonça que, nas redes sociais, suporta a actual
maioria municipal, que se põe a dar voltas como a barata tonta, quantas vezes não percebendo que num momento diz algo muito convictamente, para logo a seguir dizer algo
muito diferente, com convicção ainda maior. Na sua firmeza, estas convicções repentinas, mesmo quando se colocam ao nível do mais rasteiro dos insultos,
são muito divertidas. Da gelatina também se diz que está firme quando está pronta
para receber a colher que a fará abater.
*
Da noite de ontem ficam duas declarações,
de pessoas que muito estimo, que foram acolhidas, pelos especialistas
instantâneos em minudências patrimoniais, jurídicas e históricas com uma salva
de palmas que se deve ter escutado até aos confins do Mundo, se é que não bem
mais além, lá para o outro lado da Morreira.
Refiro-me, em primeiro lugar, a
uma breve entrevista do pintor José de Guimarães à Guimarães Digital, em que
afirma que, ao contrário do que se tem propalado, a sua família não vendeu a
muralha.
Isto escutado, logo se começaram
a ouvir vozes dos que se encarniçavam, atirando-se às canelas dos que tinham
dado opinião sobre a questão da Torre da Alfândega, e que vão seguindo o padrão
do texto que que agora tenho à minha frente onde, depois de um chorrilho de
insultos aos “achantes histéricos” e de uma defesa acalorada do Presidente da
Câmara, que creio que a não agradecerá, conclui com uma proclamação heróica e
profética:
A torre não é de um particular, é nossa, é
de Guimarães, e sempre continuará a ser!
Antes assim fosse. Mas assim não
é. Vejamos porquê.
Transcrevo o que ouço José de
Guimarães dizer, em nome da sua família:
A muralha, que eu tenha conhecimento, não
nos pertencia e, portanto, nós não podíamos vender uma coisa que não nos
pertencia, nem sei se pertence a alguém, mas acho que não pertence a ninguém.
Se, eventualmente, a muralha nos pertencesse, o mínimo que nós faríamos, e isso
já faz parte da índole de cada um, com certeza que a púnhamos à disposição da
cidade.
Aquilo que José de Guimarães diz
acerca da muralha (note-se, porque esta nuance faz toda a diferença, que o
pintor fala da muralha, não da Torre da Alfândega), percebendo-se que está a referir-se
ao muro onde está a inscrição do Aqui Nasceu Portugal, é absolutamente rigoroso.
Em tempos, eu tinha prometido
escrever sobre a história da Torre da Alfândega, promessa que ainda não cumpri
e que não cumprirei já, por falta de tempo, embora possa adiantar algo sobre o processo
de apropriação da muralha por privados.
Como ninguém ignora, a muralha
tinha uma função defesa do velho burgo vimaranense que, com o crescimento urbano
de Guimarães para fora dos muros, foi deixando de cumprir a sua função. Este
processo acelerou-se num tempo em que a guerra com Espanha que se estendeu
pelos anos que se seguiram à Restauração de 1640 já estava finda e longe. No
início do segundo quartel do século XVIII, a muralha de Guimarães começou a ser
desmantelada, num processo que se estendeu até ao século XIX (com recidivas
pontuais no século XX, como aconteceu nos Palheiros ou aquando da edificação do
mamarracho onde até há pouco funcionaram os correios). As mais das vezes,
desmontava-se a muralha para reutilizar a sua pedra noutras edificações ou empedrar
as ruas. Em simultâneo, iniciou-se o processo de apropriação por privados do
chão adjacente à muralha, por regra através de actos de aforamento, em que a Câmara
cedia, mediante o pagamento de uma renda, o usufruto desses terrenos, por largo
prazo ou mesmo a título perpétuo. Os beneficiários dos aforamentos deveriam respeitar
um conjunto de regras que lhes eram impostas, que nem sempre eram exactamente as
mesmas. Em geral, ao adquirirem o direito de superfície sobre terrenos junto à
muralha, ficavam autorizados a edificar casas encostadas à cerca amuralhada,
que permanecia no domínio público. Com o tempo, em largos troços da cerca, foi
também autorizada a construção de casas do lado exterior da muralha, como
aconteceu na Alameda (que faz traseiras com a rua Nova do Muro) ou na rua de
Santo António (nas traseiras da extinta rua das Flores e de Valdonas).
No Toural, não houve permissão
para construir de encosto ao lado exterior da muralha, com o argumento de que
tais construções atentariam contra a grandeza da praça (em finais do século
XVIII, uma autorização régia permitiria a demolição do pano de muralha da sala de visitas de Guimarães, obrigando
a que as novas construções a erigir no local não ultrapassassem a linha da
muralha – foi assim que nasceu a frente dita pombalina do Toural).
Assim desapareceu das vistas dos
vimaranenses toda a muralha desde a Senhora da Guia até à rua de Santo António
e mais além, até ao Castelo, com uma única excepção: o pano do que sobrava da
Torre da Alfândega, pelo qual se alinharam as casas da actual Alameda e o
edifício onde hoje está o Café Milenário. O edifício que se ergueu do lado de
dentro desse pedaço de muro, cresceu encostado ao muro, mas não se apropriou
dele. Portanto, o pano de muralha onde se lê Aqui Nasceu Portugal não foi
objecto de qualquer transacção, nem agora, nem antes.
De onde se concluí que o muro de
granito que se eleva entre o Toural e a Alameda, onde está escrito “Aqui Nasceu
Portugal”, continuará a ter o mesmo proprietário de sempre: a Câmara de
Guimarães.
E de onde se pode concluir,
também, que o pano mais extenso da muralha que chegou aos nossos dias, que
acompanha pelo lado do Poente a Avenida Alberto Sampaio, também será propriedade
municipal e, ainda, que a propriedade do que sobra da muralha na rua Nova que não
esteja embebido nos edifícios pode ser controversa.
*
Em segundo lugar, remeto para a
leitura do que o meu amigo César Machado escreveu na sua página do Facebook
acerca das questões jurídicas que podem ser mobilizadas para a compreensão e
para a resolução da questão que agora nos preocupa: a devolução da Torre da Alfândega
à cidade, de que transcrevo o final:
Ora, é seguro que o que quer que venha a ser
pretendido pelo proprietário para construir naquele prédio tem de passar pela
apreciação e aprovação da Câmara Municipal? Tem, claro. E não só da Câmara.
Também da Direcção Regional de Cultura do Norte. Isso significa que, pretendendo
a Câmara tornar público o percurso da muralha, que permita mostrar a muralha e
a Torre da Alfândega, pode essa circunstância funcionar como condicionante do
licenciamento futuro que venha a ser apresentado? Pode, claro. Consensualmente?
– É o que sucede em imensos casos de licenciamento. As cedências ao domínio
público de partes de prédios destinam-se a dar resposta aos mais diversos fins
de interesse público. É comum e frequente; e consensual, por norma. E não
havendo consenso? – Bom, o direito tem mecanismos que permitem fazer sobrepor o
interesse público ao interesse privado. É uma das finalidades que visa servir.
Para esse efeito há a figura da constituição legal de servidão, a da
expropriação, e há outras. E isto está em aberto? Claro que está. Pois bem,
este é, claramente, um caso de interesse público. Então, está perdido
exactamente o quê?
Não sendo jurista, percebo os
argumentos desenvolvidos e concordo com eles, pelo que me escuso de os
discutir. Parecem-me boa doutrina para aplicação ao caso vertente, expressa com
suficiente clareza para que qualquer leigo, como é o meu caso, a entenda.
Aplique-se até onde for preciso, digo eu.
No entanto, permito-me notar que os
considerandos que antecedem a indicação das saídas que a lei prevê para
ultrapassar dificuldades que possam surgir, sugerem que a posição da Câmara neste
dossier tem sido linear, resultando
de pensamento previamente maturado e suficientemente sólido. Aliás, a mesma
ideia tem estado presente nas sucessivas tomadas de posição de responsáveis da
autarquia e de muitos dos que lhe têm servido de coro. Porém, todos percebemos desde
o princípio que a Câmara foi apanhada desprevenida quando, em Março de 2016,
foi confrontada pelo vereador Torcato Ribeiro com uma transacção consumada em
Agosto de 2014. Dos responsáveis da autarquia, começámos por ouvir desvalorizar
o assunto, depois afirmar que o que tinha sido vendido era um imóvel sem
interesse para o projecto de acesso à muralha e à torre (que até o tem, e
muito, mas disso se falará depois) e que a Câmara até estava atenta à situação
do número 33 da rua do Anjo, para, logo a seguir, fazer sair um comunicado em
que ameaçava avançar com processo expropriatório caso o comprador do prédio
anteriormente considerado sem interesse se recusasse a constituir servidão
pública para acesso ao cimo da Torre da Alfândega, para, por último, anunciar
que já havia entendimento com o mesmo comprador, tendo-se alcançado o “objectivo
essencial”, dando como garantido o acesso público à Torre da Alfândega, embora
nada adiantando quanto ao modo como esse acesso iria ser concretizado. Em apenas dois dias, era
difícil dizer coisas mais diversas.
Como diria o outro, não havia
necessidade… Todos compreenderíamos se os responsáveis da autarquia tivessem
dito, desde início, que tinham sido apanhados de surpresa, já que a venda de
que tinham tido conhecimento se referia a um edifício urbano localizado na rua Dr.
Avelino Germano, vulgarmente conhecida como Tulha, local onde a Câmara não
tinha qualquer interesse ou necessidade em usar do direito de preferência que a
lei lhe confere. Em vez disso, tentou-se tapar o Sol com a peneira e foi o que
se viu. A humildade no reconhecimento de um desacerto não diminui, nem
amesquinha, antes pode ser um sinal de grandeza.
Quanto ao mais, era bom que a malta
do vitupério escorreito, sempre lesta na defesa da honra da sua dama, sossegasse
e percebesse que estamos todos no mesmo barco, porque todos queremos que a torre seja devolvida à cidade.
*
Pergunta o meu amigo César
Machado:
– Então, está perdido exactamente o quê?
Respondo como já respondi onde a pergunta
foi colocada: até agora, não se perdeu nada. Ganhou-se uma oportunidade. E
seria muito triste se a deixássemos escapar.
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PS: O que escrevi acima acerca da propriedade do muro da torre da Alfândega foi escrito com base na informação disponível acerca dos procedimentos adoptados no século XVIII para o aforamento do chão junto do muro e na informação prestado por José de Guimarães ao Guimarães Digital. Sabemos que, em alguns casos, a Câmara, ao fazer a venda definitiva dos antigos foros, também vendia a pedra dos muros que com eles confinavam. Pelo que se depreende, não terá sido esse o caso da Torre da Alfândega.
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PS: O que escrevi acima acerca da propriedade do muro da torre da Alfândega foi escrito com base na informação disponível acerca dos procedimentos adoptados no século XVIII para o aforamento do chão junto do muro e na informação prestado por José de Guimarães ao Guimarães Digital. Sabemos que, em alguns casos, a Câmara, ao fazer a venda definitiva dos antigos foros, também vendia a pedra dos muros que com eles confinavam. Pelo que se depreende, não terá sido esse o caso da Torre da Alfândega.
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