As maçãs dos estudantes



É posse, é obrigação dar-vos as maçãzinhas.
Esses pomos de amor, perfeitos, coradinhas.
(Bráulio Caldas, Bando Escolástico de 1895)


Nos últimos dias, tem-se falado de maçãs em Guimarães. E hoje é o dia do cortejo da entrega das maçãs que ocupa o lugar culminante nas festas que os estudantes vimaranenses dedicam, há séculos, ao seu patrono S. Nicolau. Na sexta-feira realizou-se uma interessante conferência de Raul Rodrigues, professor da Escola Superior Agrária de Ponte de Lima (Instituto Politécnico de Viana do Castelo) sobre o tema: Maçãs do Minho: resgatando um património perdido. Hoje mesmo foi inaugurado na Horta Pedagógica de Guimarães um Pomar das Maçãzinhas. Ambas as iniciativas aparecem explicitamente associadas à tradição Nicolina e ao seu “património vegetal”, tendo subentendida: entre tantas espécies de maçãs (o professor Raul Rodrigues já coleccionou um cento de variedades diferentes de “maçãs do Minho” e, ao que se percebe, a sua colecção ainda não estará completa.
Pelo que leio na notícia colocada no site da Câmara Municipal de Guimarães onde se anuncia a plantação das primeiras macieiras no Pomar das Maçãzinhas, haverá alguma inclinação para se assumir a maçã da variedade porta-da-loja como estando “tradicionalmente associada às Festas Nicolinas e às Maçãzinhas” e eu temo que poderei ter tido alguma responsabilidade em induzir alguém em erro quando, aqui há dias, no lançamento do magnífico livro “Guimarães Top Secret” de Samuel Silva e José Caldeira, a uma pergunta sobre quais seriam as maçãs das Nicolinas, eu respondi algo do género: isso não é segredo, pode ser a maçã porta-da-loja, mas há um segredo bem escondido dentro do género, o das “deliciosas ameixas” de Guimarães, que foram um dos principais produtos de exportação da cidade no século XIX, mas de que se perdeu por completo o rasto. Se me expressei mal e induzi alguém em erro, repetindo um erro que tenho escutado recorrentemente, aqui me penitencio e afirmo, com clareza, que não tenho nenhum argumento que possa sustentar que a maçã que tradicionalmente é entregue pelos estudantes nas pontas das suas lanças, a cada 6 de Dezembro, seja da variedade porta-da-loja ou de qualquer outra variedade específica.
Dos documentos que conheço, apenas posso dizer que as maçãs dos estudantes são perfeitas, redondinhas, formosas, mimosas, rubras, na cor rivais do rosto das raparigas, rosadas, da cor da rosa, lindas, rubras, vermelhas, rubicundas, pequeninas. E também podiam ser menos lisas, enrugadas mesmo, e descoradas, sendo estas destinadas às criadinhas de sala e à “governante austera e dura”.
A mais antiga referência às maçãs da festa de S. Nicolau está nos contratos de arrendamento do dízimo de Urgezes, em que o rendeiro ficava que com a de “dar em cada dia de S. Nicolau de cada um ano aos Estudantes que forem à dita freguesia na forma de seu costume, 2 alqueires de castanhas assadas, meio alqueire de nozes, meio alqueire de tremoços, 200 maçãs, 2 almudes de vinho e duas dúzias de palha de argola (ou painça)”.
Como se vê, da obrigação atribuída ao rendeiro não consta nenhuma referência à qualidade de maçã a entregar, mas apenas ao número de frutos, o que, estou certo, ajudará a explicar a tradição de serem pequenas as maçãs dos estudantes. Se o contrato apenas referia o número de maçãs a entregar, nada dizendo quanto ao seu peso ou tamanho, é compreensível que o rendeiro escolhesse os frutos mais pequenos e não os mais avantajados.
Nos textos que chegaram até nós, dos que as festas foram produzindo ao longo dos últimos dois séculos, não faltam referências às maçãs, que são sempre descritas como vermelhas, redondas e pequenas. As únicas referências a tipos de maçãs que até hoje encontrámos aparecem no pregão de 1846, escrito por José Nepomuceno da Silva Ribeiro, onde, a dado passo, se lê:

Amanhã só pertence ao estudante
Das damas ofertar à mais galante,
A essa a quem se esmerou a natureza,
Loura castanha, a bela camoesa,
Tocar-lhe a mão nevada e à voz de amor
De alma e vida ficar-lhe devedor.

E no pregão de 1864, de que foi autor o padre António José Ferreira Caldas, onde se lê:

Verás grupos de ledos estudantes
Assoberbar fogosos rocinantes,
E formando magnífico cortejo
Dar faustoso começo ao seu festejo,
Oferecerão às damas, em fineza,
A nacarada e bela camoesa,
O pomo sempre tido em mor valia,
Que, em mimos, ricas jóias desafia,
E a mente de fecundos literatos
Muitas vezes tem posto em duros tratos.


Assim sendo, ficamos com duas hipóteses: ou as maçãs dos estudantes de Guimarães são apenas vermelhas, redondas e pequenas, sem distinção de variedade, ou são maçãs camoesas. Eu inclino-me para a primeira hipótese.

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