Cartoon de Miguel Salazar |
Quando
o Inverno lhe bate à porta, Guimarães ganha uma nova banda sonora. Entre o fim
de Novembro e os dias iniciais de Dezembro, é rara a hora em que se não
escuta, em fundo, o som das baquetas a percutirem nas peles dos tambores. São
esses os dias em que as Nicolinas se anunciam e acontecem. De todas as
festividades cíclicas do calendário vimaranense, as festas que os estudantes
de Guimarães dedicam ao seu padroeiro são as que despertam emoções mais à flor
da pele e as mais desencontradas tentativas de interpretação. Estas são festas
singulares.
Da
origem das festas a S. Nicolau quase nada se sabe. Tem sido levantada a
hipótese de terem tido origem na Universidade
da Costa. Não entraremos aqui na discussão acerca da existência de uma
universidade no antigo convento da Costa. Independentemente da sua natureza
institucional, é seguro que ali existiu um estabelecimento para educação de
príncipes, que contou entre os seus alunos com o príncipe D. Duarte, que seria arcebispo
de Braga, e com o futuro Prior do Crato. Ministrava estudos superiores e teve
uma existência muito efémera. A sua história é muito interessante, nomeadamente
para o estudo da introdução da cultura humanista em Portugal. No entanto, até
hoje não foi encontrada qualquer evidência documental que relacione o Colégio
da Costa com o culto a S. Nicolau em Guimarães.
O
documento mais antigo que se refere a estudantes em dia de S. Nicolau em
Guimarães, até hoje conhecido, foi revelado recentemente pelo historiador Rui
Faria. Refere-se a uma queixa apresentada por uma tal Maria Cardosa contra dois
estudantes que teriam arrombado um postigo de sua casa na noite de S. Nicolau do
ano de 1645. Trata-se de um “instrumento de perdão” lavrado na Quaresma do ano
seguinte, quando a queixa foi retirada, por “descargo de consciência” da
queixosa. Revela-nos que, naquele tempo, os estudantes de Guimarães já praticavam
actos de subversão a coberto de S. Nicolau.
Bem
mais esclarecedor será um capítulo de visitação assinado em 23 de Fevereiro de
1675 pelo Arcebispo D. Veríssimo de Lencastre, referente a uma inspecção
episcopal à Colegiada de Guimarães, onde se lê:
Mandamos ao sacristão desta sé e a qualquer pessoa que
tiver jurisdição na sacristia com pena de excomunhão por si, nem interposta
pessoa empreste alguma capa de asperges para os estudantes, ou outra qualquer
pessoa andar a cavalo dia de S. Nicolau Bispo em companhia dos Escolares
causando turvações na vila e muitas indecências a que convém por este meio
atalhar.
Pelo
que nos informa, este documento é um precioso testemunho para a compreensão da
natureza e da origem dos festejos dos estudantes de Guimarães a S. Nicolau, uma
vez que nos remete para práticas identificadas em diferentes lugares da Europa
desde a Idade Média. No dia de S. Nicolau, escolhia-se um estudante que era
investido na condição de bispo e que, envergando trajes litúrgicos, montava num
cavalo ou num asno e, acompanhado pelos seus “acólitos”, andava pelas ruas e
pelos campos em brincadeiras e travessuras, chegando mesmo a presidir as
celebrações religiosas nas sés. Eram manifestações que consumavam jogos de
inversão da realidade, em que o mundo era virado às avessas e o poder era transmitido,
temporariamente, a loucos (recorde-se que, na Idade Média, as crianças eram
equiparadas aos tolos ou aos doidos). Estas práticas eram correntes nas sés
catedrais, que também eram escolas. Assim acontecia na Colegiada de Guimarães,
que tinha estatuto de sé catedral, existindo entre os titulares do respectivo
Cabido um cónego com a missão de ensinar os meninos do coro, o mestre-escola.
Parece
claro que o enraizamento do costume que o arcebispo proibiu em 1675 era mais
forte do que a autoridade eclesiástica. Se assim não fosse, não haveria
necessidade de repetir a proibição, como aconteceu em 1705, num novo capítulo
de visitação, desta vez assinada pelo D. Prior da Colegiada, D. João de Sousa,
onde se lê:
É coisa muito indecente que, no dia da festa de S.
Nicolau, que nesta vila se celebra pelos estudantes, andem os mesmos a cavalo
com sobrepeliz e murça, fazendo gravíssima ofensa à autoridade do hábito
canonical, e, sendo esta acção muito repugnante à veneração que se deve às
vestiduras dos sacerdotes, pois se convertem em usos sumamente profanos, de que
forem ordenadas para o culto divino, e detestando tão irreverente abuso,
proibimos a todos os nossos súbditos, sob pena de excomunhão maior ipso facto incurrenda,
que emprestem murças e sobrepelizes, nem consintam por algum modo, que se
sirvam das suas para o dito efeito.
Festas de Inverno
Os
documentos conhecidos dão consistência à inclusão das festas de S. Nicolau de Guimarães
no quadro das festividades cíclicas de Inverno que se celebravam extensamente
na Europa Medieval. Tinham uma feição carnavalesca, com as máscaras e a
inversão da hierarquia social sempre presentes. Ocorrendo entre o dia de S.
Nicolau (6 de Dezembro) e o dia dos Santos Inocentes (28 de Dezembro), assumem-se
como sobrevivências de festas pré-cristãs, as saturnais.
As
saturnais eram festas que aconteciam em Dezembro, evocativas dos tempos da
abundância, em que ainda não havia distinção entre homens livres e escravos. O
elemento mais singular destas manifestações era a inversão da ordem social.
Enquanto decorria a festa, os escravos recuperavam a liberdade e um deles era
eleito para governar temporariamente a cidade. A eleição de “obispillos” nas
sés catedrais espanholas remete-nos para esta prática de inversão da ordem e da
hierarquia social. Também aí se apagava, temporariamente, o poder instituído,
que era entregue a um “parvo”, num ritual que tinha um evidente sentido lúdico,
em que a ocultação de identidades através de máscaras favorecia a inversão de
papéis sociais.
Estas
festas resultavam num jogo complexo de transfiguração, subversão e celebração,
consumado em tempos de interregno da normalidade vigente e de folia desbragada
que, por regra, coincidiam com as férias dos estudantes no tempo mais frio do
Inverno. Não faltam nas Festas Nicolinas elementos que as integram neste
quadro.
Como
vimos, não nos é possível dizer desde quando se presta culto profano a S.
Nicolau em terras de Guimarães. No contrato de arrendamento
dos dízimos de Urgezes de 1734, o rendeiro ficou obrigado a pagar aos
estudantes a porção da renda que lhes era devida em dia de S. Nicolau, devendo
fazê-lo “com toda a boa satisfação, como é uso e costume e foi sempre”. Por
esta expressão, “foi sempre”, é-nos lícito concluir que estas festividades eram
tão antigas que, na primeira metade do século XVIII, já não era possível
precisar a sua origem.
Ainda sabemos muito
pouco acerca das festas dos estudantes nos séculos XVII e XVIII, sendo certo
que eles organizavam danças, folias e representações teatrais, nomeadamente
para recolherem os meios que lhes permitiram erguer a capela e sustentar a
Irmandade de S. Nicolau. Só a partir da segunda década do século XIX é que
começamos a ter uma visão mais próxima destas festas, percebendo-se que já
incorporavam boa parte dos elementos que hoje lhes conhecemos. Para esse
conhecimento muito contribuem os pregões escritos por João Evangelista Morais
Sarmento, os mais antigos que chegaram até nós (1817-1822). Naqueles tempos, já
era erguida no Toural a bandeira que anunciava que a festa dos estudantes ia
começar0. No dia de S. Nicolau, os estudantes recebiam e partilhavam a renda,
invadiam as ruas, castigavam os intrusos com banhos de água gelada no chafariz
do Toural, distribuíam as maçãs às damas, enchiam o velho burgo com as suas
folias, as suas danças e os batimentos ritmados e ruidosos nos seus tambores, mascaravam-se,
desafiavam as autoridades vigentes. Nos seus elementos mais marcantes, as
festas já eram o que são hoje.
As festas a S.
Nicolau giravam em torno da renda de Urgezes, que era retirada do dízimo que
cabia à Colegiada. Nos sucessivos contratos de arrendamento que se conhecem,
sempre se fez menção à obrigação do rendeiro de dar satisfação à parte da renda
que cabia aos estudantes no dia do seu orago. Quando as dízimas foram extintas,
na sequência da vitória dos liberais de D. Pedro IV em 1834, a Colegiada
declarou-se desobrigada de cumprir com a posse dos estudantes, por resultar de
uma renda que já não recebia, as festas terão sofrido um sério abalo. Os
estudantes moveram uma acção contra o Cabido, exigindo a reposição da
“imemorial posse de receberem do Reverendíssimo Cabido desta Colegiada em o dia
seis de Dezembro pela renda que o mesmo possui em Santo Estêvão de Urgezes duas
rasas de castanhas, dois almudes de vinho, dois centos de maçãs, meia rasa de
nozes, meia de tremoços, e duas dúzias de palha painça”. Acção que venceriam,
num primeiro momento, mas que, em definitivo, acabariam por perder.
Em 23 de Novembro de
1837, 39 vimaranenses aprovaram os estatutos da Associação Escolástica
Vimaranense, com o fim de “promover a continuação, aumento e luzimento dos
festejos do dia 6 de Dezembro, e pugnar por todos os foros e regalias que os
Estudantes desta Vila desfrutam, desde tempo imemorial”. Aí se definia quem era
estudante e quem gozava de foro escolástico: os que frequentavam qualquer aula
pública ou Mestres particulares de latim, filosofia, retórica ou qualquer outra
ciência; todos os eclesiásticos da vila de Guimarães; todos os indivíduos que
aí frequentam ou frequentaram aulas da Universidade. Perderiam esse estatuto se
não se mantivessem solteiros, se assentassem praça nos corpos da primeira
linha, se se dedicassem ao comércio ou a qualquer profissão mecânica (trabalho com as mãos), se exercessem
qualquer cargo público, civil ou militar, ou se tivessem abandonado os estudos
antes de completarem seis meses de frequência.
Agonia e ressurgimento
No século XIX as
festas aconteceram com alguma inconstância, até que, ao entrar no último
quartel de oitocentos, parecia ter chegado a hora do seu fim. Durante cerca de
vinte anos não se realizaram em Guimarães festas a S. Nicolau dignas desse nome
e as tentativas de as fazer ressurgir não passaram de pálidos fogachos do seu
antigo brilho. Mas em 1895 renasceram em todo o seu esplendor pelas mãos de um
grupo de entusiastas, com Jerónimo Sampaio e Bráulio Caldas à cabeça.
Ressurgiram com um figurino renovado e com um conjunto de números que já não se
centrava apenas no dia 6 de Dezembro. No início do século XX, João de Meira
inventou o nome por que hoje são conhecidas, Nicolinas. Sobreviveram à crise em
que quase pereceram, na sequência da instauração da República, e à extinção do
curso complementar do Liceu, entre 1928 e 1958. Passaram os tempos agitados que
se seguiram ao 25 de Abril e, com a massificação e a unificação do ensino
secundário, democratizaram-se e assumiram foros de manifestação multitudinária,
onde o cortejo do pinheiro foi ganhando crescente protagonismo. Apesar das
convulsões e mudanças que aconteceram ao longo do século XX, as Nicolinas
chegaram aos nossos dias mantendo, no essencial, o figurino desenhado pelos
restauradores de 1895.
Muito se tem
discutido acerca da natureza da festa vimaranense a S. Nicolau. Apesar de se
desenrolarem sob a invocação de um santo, as Nicolinas não têm carácter
religioso. São festejos inequivocamente profanos, quase sem dimensão religiosa,
sendo a excepção a participação dos estudantes nas novenas de Nossa Senhora da
Conceição de Fora. Tal natureza, que foi sempre clara, só em tempos bem
recentes se tornou um pouco mais difusa. Note-se que, desde o tempo em que
temos informações mais consolidadas sobre as festas, a Irmandade de S. Nicolau
não desempenhava nelas qualquer papel. Até ao início do século XX, a única
intervenção directa da Irmandade de S. Nicolau no contexto das festas que
conhecemos aconteceu por força de um acidente trágico aquando do levantamento
do pinheiro em 1842. Durante a operação de levantamento, o gigante tombou, provocando a morte a um jovem aprendiz de alfaiate.
Seria a irmandade a organizar o seu funeral. Quanto à organização da festa, foi
sempre rigorosamente laica, estando a cargo da Comissão composta por
estudantes, eleita a cada ano.
Uma outra questão
que tem sido levantada recorrentemente, e que em alguns momentos tem sido fonte
de desacertos e de conflitos, é a que se prende com a delimitação do direito de
participação nas festas. O principal motivo da discussão resulta de não haver
doutrina fixada sobre a matéria, a não ser a que consta do estatuto da
Associação Escolástica de 1837. Originalmente, sendo dos estudantes de
Guimarães, acabavam por ser, essencialmente, festas dos coreiros da Colegiada,
já que, à falta de escolas, não haveria em Guimarães muitos mais estudantes. Ao
longo do século XIX, as festas foram assumidas pelos estudantes de Latim que,
grosso modo, era o que havia na cidade com natureza de ensino regular. A
extinção da aula de latim do professor Venâncio, em Julho de 1869, explica a
decadência das festas. O ressurgimento de 1895, não seria obra dos estudantes
do pequeno seminário da Oliveira, criado em 1891, mas da “Academia
Vimaranense”, ou seja, dos estudantes dos colégios então existentes. Mais
tarde, com a instalação do seminário-liceu em Santa Clara, instituído em 1896,
as festas passaram a ser assumidas pelos estudantes liceais.
Até ao último
quartel do século XX, as festas foram organizadas pelos estudantes que
frequentavam o ensino liceal em Guimarães, nomeadamente no Liceu Martins
Sarmento, depois Liceu Nacional de Guimarães e, a seu tempo, no Colégio Egas
Moniz. Com a unificação do ensino secundário, na sequência da reforma de
Sottomayor Cardia, foi decretada a extinção dos Liceus e das Escolas Técnicas
e, vencidas algumas resistências, as festas passaram a ser participadas pelos
estudantes das diferentes escolas da cidade. A condição para a participação nas
festas nunca foi a da frequência de a uma determinada escola pelos estudantes,
mas a natureza do ensino que frequentavam (o que explica a exclusão dos alunos
da antiga Escola Industrial). Com o modelo de ensino actualmente vigente, em
que as escolas secundárias tanto oferecem cursos científico-humanísticos como
profissionais, não faz sentido afirmar-se, como alguns dizem, que as festas são
privilégio dos alunos de uma escola, já que será preciso fazer-se grande
esforço para se perceber que o Liceu de Guimarães já não existe, por ter sido
extinto em 1978, e que os antigos ensinos liceal e técnico fazem hoje parte da
oferta educativa de todas as escolas secundárias. As Festas Nicolinas não são
das escolas, de nenhuma escola, são dos estudantes de Guimarães.
Outra controvérsia
que aflora na discussão da coisa Nicolina, resulta da dúvida sobre a existência
de uma idade ou de um grau de ensino a partir do qual se pode participar nas
festas. A resposta é simples: não há, nem nunca houve. Sendo, na origem, festas
dos meninos do coro da Colegiada, nelas sempre participaram estudantes que
frequentavam o equivalente aos actuais 3.º ciclo do ensino básico e ensino
secundário. A única limitação que outrora existiu, embora não fosse regra
escrita, era a condição do mínimo das três matrículas para se poder integrar a
Comissão organizadora das festas. A proibição da participação dos estudantes do
3.º ciclo no cortejo das maçãzinhas, imposta inopinadamente em 2014, não tem,
portanto, qualquer fundamento na tradição Nicolina. A este propósito,
recorde-se que no período que decorreu entre 1928 e 1958 não funcionou em
Guimarães o curso complementar do ensino liceal. Nessas três décadas, o Liceu
de Guimarães apenas tinha oferta até ao 5.º ano, correspondente ao actual 9.º
ano. Mas festas não se extinguiram. Antes pelo contrário, mantiveram-se sempre
vivas graças ao entusiasmo e ao esforço dos seus jovens estudantes.
Mascaradas
A interpretação do
significado do Pinheiro também tem
gerado alguma discussão. Na origem, por si só, o pinheiro não
significava grande coisa. Não era mais do que um mastro onde era colocada a
bandeira escolástica, um painel de madeira onde estava pintada a imagem da
deusa romana da sabedoria e da guerra, Minerva (aspecto que ajuda a consolidar a
percepção da natureza profana da festa). É um pinheiro, mas poderia ter sido um
carvalho, um choupo, um lódão ou um eucalipto, já que a dimensão simbólica
estava na bandeira que se içava, não no mastro. Com o tempo, a bandeira foi
perdendo importância (desapareceu mesmo, provavelmente nos meados da década de
1910), ganhando protagonismo o pinheiro, que tinha de ser
O pinheiro maior, o mastro
mais gigante
Que ao longe e ao largo canta a festa do estudante
A tradição do
pinheiro remete-nos para o velho costume, recorrente no nosso mundo rural, de
erguer uma bandeira à entrada da terra, anunciando que ali se estava em festa.
Mesmo em meio urbano, o Pinheiro das
Nicolinas não era única manifestação deste tipo em Guimarães. Outras festas, como
o S. João, se faziam anunciar na cidade de Guimarães com um pinheiro levantado
ao céu.
Já o pregão, ou
bando, era uma proclamação que servia para qualquer anúncio público, que saía à
rua com um pequeno cortejo, ao som de tambores que chamavam o povo a reunir. Havia
também um clarim, que soava para impor o silêncio para que se pudesse escutar a
mensagem do pregoeiro. Este ritual repetia-se em vários locais da povoação. O
bando municipal saía à rua com frequência, para fazer anúncios e proclamações das
mais diversas naturezas (nascimentos, mortes e casamentos na família real,
visitas oficiais, etc.). A última notícia que temos desta forma de publicitar data
de 1929, anunciando uma visita presidencial a Guimarães. Não sabemos ao certo quando
é que esta prática foi adoptada pelos estudantes de Guimarães para anunciarem
os festejos do dia 6 de Dezembro. O pregão nicolino mais antigo que chegou até
nós é de 1817 e é, como todos os que se lhe seguiram, mais do que um anúncio de
folias, uma interessante peça literária e informativa. O pregoeiro, mascarado e
em traje de gala, seguia num carro puxado por cavalos, vistosamente ornado, acompanhado por estudantes mascarados, a pé ou
a cavalo. Com o tempo, o acompanhamento ficou limitado a bombas e caixas,
desaparecendo o clarim.
Uma outra questão
que cumpre aclarar é a que respeita à utilização de máscaras pelos estudantes.
A máscara está no cerne da tradição das festas. Aliás, as festas a S. Nicolau
eram uma mascarada, ou seja, uma
manifestação de estudantes que ocultavam as suas identidades atrás de máscaras.
O dia 6 de Dezembro correspondia à abertura das festividades do Inverno,
inserindo-se num ciclo eminentemente carnavalesco, que se fechará com a entrada
na Quaresma. Ao longo do tempo, a máscara foi perdendo a sua importância
enquanto elemento de ocultação da identidade, acabando como mero adereço dos
membros da comissão no dia do pregão, já não sendo mais do que uma
reminiscência dos tempos em que os estudantes protagonizavam brincadeiras e tropelias
a coberto da impunidade que a ocultação da identidade pela máscara assegurava.
E a importância da máscara era de tal modo assumida que, mesmo quando o seu uso
era reprimido pelas autoridades públicas, os estudantes não hesitavam em
contrariar as proibições, arriscando a prisão.
Há uma justificação
recorrente para a utilização de máscara pelo pregoeiro nicolino, que justifica
a ocultação da identidade com uma atitude de desafio à censura vigente, afirmando
o direito à liberdade de expressão. Mas esta explicação choca com a realidade.
Regra geral, em tempos de ditadura, os pregões não eram especialmente
subversivos e a máscara, mesmo que permitisse esconder por completo as feições
do pregoeiro, de nada adiantava para ocultar a sua identidade, uma vez que ela
estava publicada nas versões impressas do pregão que eram distribuídas aquando
da sua leitura.
Damas e cavaleiros
Importa também
perceber o significado do cortejo das maçãzinhas. Na sua origem, trata-se de um
jogo de galanteio e de partilha, em que os estudantes distribuíam a “renda” de
Urgezes. Como se percebe, o cortejo e a entrega das maçãs eram, no passado,
algo diferentes daquilo que são hoje. Eram, desde logo, bem mais espectaculares.
Os estudantes vinham, desde Urgezes, a cavalo (os mais novos) ou em carros (os
outros). Em chegando ao Toural, andavam em volta do pinheiro, em preito de homenagem
a Minerva. Depois, dispersavam-se pela cidade, entregando as maçãs espetadas
nas pontas das suas lanças, enfeitadas com fitas coloridas, às damas que as aguardavam nas janelas e
varandas das suas casas. Não havia, como se percebe, um local fixo onde elas se
concentravam à espera dos cavaleiros,
que distribuíam as maçãs sem desmontarem dos cavalos ou dos carros que os
transportavam.
As danças de S.
Nicolau são, nos dias de hoje, um dos espectáculos da agenda cultural de
Guimarães que despertam mais interesse. No entanto, na sua origem, não estavam
confinadas ao palco de um teatro, sendo espectáculos de rua que, por regra,
animavam as festas religiosas e as celebrações públicas, confundindo-se com as
folias e as comédias.
Em Guimarães, eram
particularmente notáveis as danças e folias que acompanhavam a procissão do
Corpo de Deus, nomeadamente a dança do rei David, a dança da Judenga, a dança
da Mourisca, a dança da pela, a dança dos instrumentos, a dança das ciganas, a
dança dos azeiteiros, a dança dos tendeiros (dança de fitas), a dança dos
linheiros, a dança das pescadeiras (peixeiras), a dança dos mercadores do pano
do linho ou a folia das moças. Aliás, como já se disse, foi com danças e
comédias que a irmandade de S. Nicolau financiou a construção da capela do seu
padroeiro. As danças de S. Nicolau integram-se neste género de manifestações, tendo
origem em sátiras animadas e ruidosas que os estudantes representavam pelas
ruas da cidade no dia 6 de Dezembro, antes da distribuição das maçãs. Eram o
número mais forte e mais emblemático das festas.
As representações
aconteciam nas ruas e também podiam ser levadas à cena em algumas casas. A partir
de meados do século XIX, começaram a ser representadas também no teatro D.
Afonso Henriques, mas continuaram a sair à rua no cortejo da entrega das maçãs,
perdendo aí muita da sua antiga graça. Os carros alegóricos que nos tempos que
correm saem às ruas da cidade, aquando da entrega das maçãs, são uma pálida
imagem daquele que foi o número mais emblemático e mais esperado das festas a
S. Nicolau em Guimarães.
Dos números do
programa actual das Festas Nicolinas, a roubalheira
é o de incorporação mais recente. Introduzida na restauração das festas em
1895, cedo se tornou em foco de controvérsia. Mas
não lhe faltam raízes na cultura popular minhota, resultando da adaptação em
meio urbano de uma antiga tradição mais própria do meio rural, que acontecia
por altura das festas dos santos populares, em especial duranta a festa do S.
Pedro, assinalada, em terras próximas da cidade de Guimarães, como o dia dos atrancamentos. Por essas aldeias
afora, na manhã de 29 de Junho, era costume os caminhos aparecerem atrancados com alfaias agrícolas, vasos,
utensílios e animais domésticos, desviados dos seus lugares habituais por
bandos de rapazes. A roubalheira nicolina
adapta e replica esta velha usança.
Manifestação de virilidade?
Do aparato do vasto
corpo interpretativo do significado das Nicolinas que tem sido produzido nas
últimas décadas, têm ganho especial relevo as leituras que associam as festas a
um agregado de manifestações de virilidade dos rapazes de Guimarães. Eis-nos
perante matéria assaz curiosa, que tem alimentado discussões muito pitorescas,
coloridas e algo apimentadas. É certo que existem, nas festas, alguns elementos
que se prestam a uma associação simbólica muito literal de natureza sexual,
eminentemente fálica. O pinheiro, um enorme pau (o maior da região)
majestosamente erecto, tem conotações óbvias, agiganta-se sugestivamente na sua
dimensão de putativo totem fálico quando se invoca o nome científico da árvore
que lhe deu origem, pinus pinaster; a baqueta que o estudantes empunham é
um objecto com uma configuração que facilmente a associa ao órgão sexual
masculino; o entusiasmo com que se sangram e rebentam as peles dos bombos
sugere uma representação, mais ou menos óbvia, da desfloração feminina...
Acontece que a
generalidade deste género de associações é de formulação e de verbalização
muito recente, remetendo-nos para aqueles dias em que estava muito viva a
controvérsia a participação das raparigas nas festas, para além da sua função
passiva no dia das maçãzinhas. Se as festas eram uma espécie de ritual de
passagem associado ao género masculino, correspondendo a um momento em que os
rapazes afirmavam simbólica e publicamente a sua pujante virilidade, que
sentido poderia fazer a abertura à participação ao elemento feminino, que
necessariamente incorreria na classificação de contra-natura? Suspeitamos que a
coincidência temporal do advento destas explicações de natureza freudiana com a
discussão acerca da participação das raparigas nas festas não será mera
coincidência.
Por mais que estas
interpretações possam ser apelativas e aparentemente literais, não nos parece que
o simbolismo do pinheiro vá além de representar a bandeira que apregoa aos
quatro elementos que os estudantes de Guimarães estão em festa, que a baqueta não
seja mais do que um pedaço de madeira torneada usado para percutir na pele do
bombos e que, se se sangram os bombos
e se lhes rebentam as peles, será apenas por falta de jeito dos seus tocadores...
Em aqui chegando,
percebemos que as festas de Guimarães a S. Nicolau são um caso singular de
sobrevivência e vitalidade. Tendo surgido em tempos em que brotavam por toda a
Europa as festas de Dezembro, de feição intrinsecamente carnavalesca,
associadas à criança, aos estudantes e ao Inverno, lograram, mais do que
sobreviver, viver até pleno século XXI, continuando a dar mostras de uma
vitalidade que teima em não esmorecer. Como se explica tal fenómeno? Acima de
tudo por não se terem deixado cristalizar, adaptando-se ao tempo e às transformações,
mantendo uma coerência e uma consistência sem paralelo e sobrevivendo às
mudanças dos séculos, das mentalidades, da organização social, dos sistemas,
dos regimes, dos governos, das escolas e dos estudantes, ao mesmo tempo que
densificavam as suas dimensões simbólicas e preenchiam a sua galeria de
patronos, percursores e heróis. S. Nicolau e Minerva, mas também os
restauradores Jerónimo Sampaio e Bráulio Caldas, João de Meira, o inventor do
nome por que hoje conhecemos as festas e o seu primeiro historiador, a Senhora
Aninhas, a mãe protectora dos estudantes, ou, mais recentemente, Hélder Rocha,
o nicolino-mor, símbolo de gerações de estudantes particularmente jovens que
não deixaram que a tradição se extinguisse.
Há um outro lado
deste processo de sobrevivência que não temos visto referido e que nos parece
interessante. Ao longo do tempo, as Festas Nicolinas foram incorporando
manifestações que eram comuns nas vivências públicas e nas festas populares da
nossa região: os anúncios públicos de viva voz, os bandos ou pregões, as
bandeiras anunciadoras das festas, as danças e folias, os roubos rituais. Práticas
tradicionais, já desaparecidas da generalidade das nossas festas, mas que se
mantêm vivas nas Nicolinas. Porque estas festas, respeitando a tradição, sempre
souberam ser do seu tempo, em cada tempo.
Enquanto em Guimarães houver um Estudante
Com força para tocar, com alma, num zabumba,
A Festa viverá, altiva e triunfante,
E ninguém poderá acompanhá-la à tumba!
Pregão de 1905 (João de Meira)
[Texto publicado no número de Dezembro de 2015 da revista Mais Guimarães]
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