Camilo Castelo Brando representado por Rafael Bordalo Pinheiro no seu Álbum das Glórias. |
Camilo Castelo Branco teve uma relação próxima com Guimarães,
especialmente desde o tempo em que andava fugido à justiça, por força da sua
relação amorosa adulterina com Ana Plácido, e foi acolhido por Francisco Martins
Sarmento no solar da sua família, em Briteiros. Quando se instalou em Seide, Guimarães
passou a ser terra que visitava frequentemente, estando muito presente na sua
obra, como
já aqui temos visto recorrentemente. Para as gentes do berço da monarquia, a sua fisionomia algo singular e o seu rosto com
picadas da varíola faziam-no mais conhecido do que
as suas obras. Entre os vimaranenses, Camilo destacava-se pela extravagância da
sua figura e pelo destempero das sua imprecações, como contava Alfredo
Guimarães em 1911, no texto que aqui se reproduz.
Camilo, para a história da sua vida
Teria um livro raro de anedotas,
acerca de Camilo, o escritor que se dispusesse a uma viagem de meses pelos
arredores de S. Miguel de Seide (em Famalicão), correndo sobretudo as freguesias
de Vermoim, Joane. Requião, Landim e Santa Marinha da Portela, a investigar,
entre cavadores e morgados, do que foi a vida íntima desse grande impulsivo e
genial improvisador, Camilo Castelo Branco — dando as falhas morais do homem de crítica implacável que escrevera, à mistura,
tanta página de amorosidade, de imprecação e de juízo moral.
Dele se contam, por lá (à maneira
do que, após a sua morte, se conta de tanto artista e homem público),
monstruosidades sem numero; factos que são, positivamente, a contestação de
tudo quanto sobre a sua generosidade se haja escrito. E factos tão duros, e
todos tão singulares, que (de alguns que ouvi), me pareceu que um novo Camilo
se encerrava naqueles episódios, — um Camilo que ninguém trazia a público e,
portanto, uma estranha face da sua biografia que há-de dispersar-se no livro inédito e grande da memória dos seus vizinhos.
Tudo quanto se tem escrito sobre
a extraordinária figura do romancista dos Brilhantes do Brasileiro, pretendendo ser o seu retrato, o considero dum interesse exclusivamente literário. Camilo, em Lisboa,
nada dá — porque saiu daqui com uns anos ainda inúteis para o trabalho da escrita;
na Samardã nada dá, porque passou ao número dos mortos o seu amigo Padre António
de Azevedo — único homem que podia ter feito as memórias da sua meninice; e o Camilo estudante no Porto e em Coimbra (em períodos
extremamente curtos), desse pouco valerá a pena pesquisar e guardar.
*
Da vida do grande romancista
depois do caso da fuga com Ana Plácido e da prisão na cadeia do Porto — isto é:
quando já homem — é que devíamos recolher, sobretudo, as memórias, os factos estranhos.
Desejo, agora, tratar de vários
factos da vida sacudida desse homem singular, na cidade de Guimarães; mas antes
deixem que lhes conte (a propósito dessa inteligente mulher que se precipitara
no agitado mar da vida do autor das Memórias do cárcere), dois interessantes episódios, que eu garanto
serem absolutamente verdadeiros:
Camilo estava em Coimbra com Ana
Plácido em 1870, para procurar médicos, e hospedava-se no Hotel Mondego. Entrou ali, certo dia, a visitá-lo. um
estudante de direito, rapaz beirão de longa cabeleira “à Barjona” e atitudes de
esperteza, que veio a ser mais tarde o escritor Cândido de Figueiredo. Camilo
recebeu-o na sala de visitas do hotel, falou-lhe do seu livro de versos Quadros Cambiantes (sobre que havia escrito), da demais literatura
da época e perguntou-lhe, por fim:
— Quer,
talvez... visitar a sr.ª D. Ana Plácido, que se encontra nesta casa
?...
— Com todo o prazer!
E os dois, mestre e discípulo,
seguiram por um longo corredor escuro, até à porta do quarto. Camilo bateu.
— Quem é ?...
disse uma voz forte e serena.
— Eu e uma
nossa visita, Cândido de Figueiredo.
— Podem entrar.
Abriu-se a porta, Camilo deu
passagem ao poeta janota dos Quadros, e os dois viram-se num momento encerrados no quarto. O que era a “jovem
senhora” que se fizera raptar e vivia já então, em 1870, na companhia do homem
que amorosamente a apartara dos bailes elegantes da cidade do Porto? Era aquela
mulher que, ali em frente, se reclinava no leito — estatuada e alva! — cobrindo-se
com um roupão de cassa, claro, e fumando, um grande prospero e óptimo charuto.
— Ninguém,
certamente ninguém podia fumar mais à sua vontade. No gosto com que expelia o fumo do charuto, e o adiantava entre dois dedos,
lia-se “comodidade”, “hábito”,
“predilecção” e, mesmo, “vício”.
E elucidou, ainda, o sr. dr. Cândido
de Figueiredo:
— Note, você, que o roupão
que a cobria era levíssimo; tão leve que, através das largas flores que se desenhavam,
quase se via toda a roupa branca, e o próprio
corte da camisa, no seio. Era uma mulher robusta, bem formada, e com todas as
indicações de que dez anos antes devia ter sido uma óptima mulher!
O outro episódio constou-mo uma
linda e piedosa senhora da Portela de Requião; e, como o primeiro, está
absolutamente autenticado, e é inédito.
D. Ana Plácido tinha adoecido. O
seu estado não era grave, mas umas terríveis dores nevrálgicas apertavam-lhe
dolorosamente a cabeça.
Camilo andava, numa dessas
manhãs, a divertir-se no terreiro da casa de S. Miguel de Seide, com os
pequenos Jorge e Nuno, guiando-lhes, a pé, uma parelha de autênticos e fogosos cavalos.
De repente o Jorge grita:
— Ó pai, mete pela escada!
E Camilo (sem sequer reparar nas
visitas que ali tinha para sua mulher), atirou um pontapé a uma ilharga de um
dos cavalos, fê-los galgar um degrau, apertarem-se e caírem,
precipitadamente, num barulho ensurdecedor que agitou toda a casa. Ao recordar-lhe,
uma criada, que “a senhora” estava doente, Camilo sorriu e atirou para fora o
chicote... todo impassível.
A senhora que me contou este episódio
rematou com esta significativa frase:
— Tinha pintas na cara como as cobras!...
*
Também dos passeios semanais do
romancista ao berço da monarquia se contam cenas
muito interessantes.
Camilo, aos sábados de manhã cedo
(porque era dia de feira), fazia-se certo em Guimarães. Rompia a cavalo pela
rua dos Pombais — quase
sempre com seu filho Jorge—; e,
subindo as ruas de Gatos, S. Domingos e Toural (lado sul), ia instalar-se na antiga Hospedaria da Gaita, que ficava ao princípio da rua de Mata diabos.
De dia, o romancista passeava na
feira, conversava em certas lojas, parava no botequim do Vago-Mestre e estudava, talvez, esses tipos cheios de observação da sua novela A viúva do enforcado. O Eusébio Macário devia ter
tido ali, também, um grande estudo. E outro tanto a cena da Enjeitada, da criança exposta na roda de Guimarães, que ele por certo colheu de algum caso da travessa
que faz face com o edifício da Câmara daquela cidade, chamada ainda hoje Travessa dos Enjeitados.
Camilo aparecia em Guimarães quase
que nas circunstâncias de vestuário em que Rafael Bordalo o fixara para o seu
magnifico Álbum das
Glórias:
longo casaco de camelão; uma tira de seda preta enlaçada na frente do colarinho; um alto chapéu de
pasta, em chaminé, óculos, a
face mosqueada das bexigas, calções ajustados de anta preta, botas “à Frederica”
e um cassetete arroxeado
ao pulso. Na partida envolvia-se, pela cara, numa capa dom-juanesca. Mas durante o dia mantinha,
inalteravelmente, essa toilete mestiça: de
morgado e boleeiro.
No botequim da terra, à noite,
Camilo jogava imenso; e perdia quase sempre. Para ele — como, creio, para quase
todos os jogadores — existiam cartas de azar, de perda certa. O “monte” era o
seu fraco.
Cá fora, na sala do botequim, ao
largo da Oliveira, o Jorge
Botelho, já então com evidentes manifestações de loucura, fazia o espectáculo dos frequentadores. Era certo que, em aparecendo um polícia, o
pequeno se metia debaixo de uma das mesas, tremendo e mostrando os olhos arrasados
de choro, aflitivamente abertos. Alguns fregueses daquela ralé burguesa — que então, mais do que hoje, deviam
ser de uma brutalidade a toda a prova — entretinham-se, pelas costas do Camilo,
com a amargura e tortura nervosa da pobre criança. Uma das suas maiores agonias
era ouvir bater, violentamente, as bolas de um bilhar. Jorge Botelho, sempre que
sentia essa vibração dura e forte, levava aflitivamente as mãos aos ouvidos,
estalavam-lhe as lágrimas nos olhos grandes, e, rompendo num choro angustioso, corria
à procura do pai, para junto da mesa do “monte”.
Estas notas reais são, quanto a
mim, de uma significação curiosa, porque creio justificarem, relativamente,
todos os documentos médicos que até hoje se possuem acerca da ascendência e descendência
desse escritor sobre todos os pontos de vista iminente.
Era assim que ele passava os sábados em Guimarães. Como aí digo,
Camilo (infeliz no jogo), arruinava-se. Os seus débitos e desmandos de língua,
na batota de Guimarães, eram extraordinários. E regressando tarde ao hotel —
quando regressava!...— levantava-se poucas horas depois, montava a cavalo com o filho,
traçava a capa e rompia, lá ao fim das mesmas ruas, pela estrada plana de
Creixomil — a qual liga Guimarães com Famalicão.
*
Dou-lhes estas poucas palavras sobre a vida do homem inquieto e
infeliz. E não querem elas significar, no seu todo desagradável a minha menos
admiração pelo grande escritor — o qual eu, aliás, considero o maior de todos
os prosadores portugueses.
Alfredo Guimarães
Serões.
Revista mensal ilustrada, nº 72, Lisboa, Junho de 1911, pp. 56-58
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