Afonso Henriques, santo? (2)


Durante séculos, a canonização de Afonso Henriques foi um desígnio nacional que, ora se apagava, ora ressurgia, especialmente em tempos em que a independência nacional precisava de ser melhor escorada. Assim aconteceu nas cortes de 1641, na sequência da Restauração da Independência.
Noutro contexto - o da necessidade de afirmação da origem divina do poder real-, D. José I dará seguimento a iniciativas que vinham do tempo do seu pai, D. João V, mandando iniciar novo processo para a canonização do primeiro rei de Portugal. Aconteceu no dia 6 de Junho de 1753.
Referindo-se àquela data, Fr. Cláudio da Conceição escreveria, no seu Gabinete Histórico (obra que, em 1828, dedicou a outro rei absoluto, D. Miguel):

Tendo-se sempre desejado neste Reino a canonização do seu primeiro Rei, o Senhor D. Afonso Henriques, na consideração das suas muitas e relevantes virtudes, se têm feito para isso várias diligências. No reinado do Senhor Rei D. João III se fez o costumado processo sobre suas virtudes. Nas Cortes, que se celebraram em Lisboa em 1641, pediram os Povos ao Senhor Rei D. João IV mandasse tratar deste negócio na Cúria Romana. José Pinto Pereira, Doutor em Teologia e em Direito Canónico, estando expedicionário Régio em Roma, aí escreveu Apparatus Historicus decem continens argumenta, sive non obscura sanctitatis indicia Religiosissimi Principis D. Alfonsi Henrici, Primi Portugaliae Regis, im­presso em Roma em 1728, um tomo de quarto; é dedicado ao Papa Bento XIII e juntamente ao Senhor Rei D. João V; o seu assunto é mostrar em discursos a Santidade do Senhor D. Afonso Henriques, primeiro Rei deste Reino. A prova do primeiro Discurso é a aparição de Cristo Nosso Senhor ao dito Soberano, e declarar-lhe a vitória, que havia de obter dos Mouros, e o desígnio da fundação de um Império nele para si. A prova do segundo é ser impetrado, por meio de votos, e orações, depois duma longa enfermidade de seus Pais. A prova do terceiro é a maravilha da sanidade dos defeitos, com que nascera, das pernas pegadas, uma por detrás da outra, obtida pela protecção da Virgem Mãe de Deus. A do quarto a aparição também da mesma Senhora, e dos Anjos, prestando-lhe auxílio em diversas Batalhas. A do quinto o grande zelo, que tinha pela Fé. A do sexto o objecto da instituição das duas Ordens Militares, de Avis e da Ala ou Asa. A do sétimo a piedosa fundação de cento e cinquenta conventos, ou mais, além de vários Mosteiros, para culto e honra de Deus. A do oitavo a oferta generosa, que de si e do Reino fez ao Apóstolo S. Pedro e a Santa Maria do Claraval. A do nono a grande piedade e reverência com que tratava os Vigários do Cristo e a pia afeição com que ouvia os Varões justos e Santos. A do décimo as virtudes que em sua vida praticou; os benefícios que nela lhe fez Deus; os prodígios que obrou depois da sua morte; a inteireza e fragrância do corpo; e a fama póstuma de Santo. Além de tudo isto, mandou o Senhor Rei D. José I principiar outro processo para a sua canonização, cujas ordens, procurações, e outros papéis conducentes ao mesmo respeito foram lidos no Real Mosteiro de Santa Cruz, junto ao sepulcro do mesmo Rei, na presença de toda a sua numerosa Comunidade, no dia 6 de Junho, em que o mesmo Senhor cumpria os seus anos, e se apresentaram ao Bispo Conde, que logo destinou o dia 11 de Julho, oitava da Festa da Gloriosa Rainha Santa Isabel, para se fazer a primeira sessão, como efectivamente se fez, com assistência das comunidades religiosas, lentes e doutores da Universidade e de toda a nobreza de Coimbra, com universal contentamento de todos. Repicaram-se os sinos da Catedral, da Universidade e de todos os conventos, colégios e freguesias. Com a mesma solenidade se fizeram as mais seguintes Sessões. Taís têm sido os desejos e diligências dos Portugueses, com o fim de verem colocado sobre os Sagrados Altares um príncipe que, pelo seu valor e zelo da Fé, livrou grande parto deste Reino do jugo maometano e deixou estabelecido o trono para os seus gloriosos descendentes.

Fr. Cláudio da Conceição, Gabinete Histórico, tomo XII (1750-1754), 2.ª edição, Imprensa Nacional, 1918, pp. 171-174

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