A Primeira Tarde Portuguesa, pintura de Acácio Lino (Lisboa, Assembleia da República) |
O 24 de Junho
de 2004 é um dia que me ficou gravado na memória a tintas muito vivas. Era
feriado em Guimarães. Nos varandins graníticos da Sociedade Martins Sarmento,
as bandeiras erguiam-se a meia haste, em homenagem a Santos Simões, que tinha
falecido na véspera. As portas estavam abertas para os que ali vinham visitar o
Presidente pela última vez. Entre eles, Emídio Guerreiro que, um dia,
encarregara Santos Simões de executar as suas últimas vontades (por essa
altura, ele, que era quase um quarto de século mais novo do Emídio Guerreiro, confidenciara-nos,
divertido: “Tenho ali no cofre um documento com as disposições do Emídio
Guerreiro para o seu funeral, mas mal ele sabe que, quando eu for, ele ainda cá
fica…”). Nesse dia, participei, pela primeira vez, na sessão solene do 24 de
Junho em representação da SMS, acompanhando o vice-presidente António Ribeiro. Aqueles
também eram dias de futebol. Decorria o Campeonato da Europa e, naquele 24 de
Junho, Portugal teve uma vitória importante, apurando-se para as meias-finais. À
noite, a festa invadiu a cidade, mas não amainou a tristeza que nos preenchia.
Dois anos antes, nas
vésperas de um outro 24 de Junho, Santos Simões havia escrito um texto em que recriava
a Batalha de S. Mamede. Aqui fica.
24 DE JUNHO
Tarde de sol
manhã de orvalho
Por J. Santos Simões
A manhã rompeu baça, envolta naquele manto fino gemente de uma orvalhada tão própria da época. Ainda não eram seis horas e já se ouvia o tumultuar de cascos de cavalos sobre o lajedo à volta da Torre de Menagem. No salão nobre dos baixos da Torre, o Infante aguardava a chegada dos barões de Entre Douro e Minho aprazados de véspera para ali estarem cedo.
Urgia a tomada de decisões em vista das notícias
recebidas de véspera: apoiantes de D. Teresa e de Fernão Peres estavam
concentrados na Póvoa de Lanhoso e desde a manhã do dia anterior estavam em
movimento na direcção de S. Torcato.
O Infante e seus apoiantes sabiam que os seus
inimigos se movimentavam desde o princípio de Abril, rumando, os de sul do
Douro, pelo interior (Celorico, Trancoso, Lamego e, transposto o Douro, por
terras de Basto até à Póvoa de Lanhoso) para fugir ao Porto, que estava ao lado
do Infante, e as forças vindas da Galiza, que evitaram passar por Braga
(apoiante de Afonso Henriques), vindo por Ponte do Lima ou Ponte da Barca,
passando pelas pontes romanas de Caldelas (rio Homem) e de Amares (rio Cávado)
para chegarem sem obstáculo à Póvoa de Lanhoso cujo alcaide era favorável a D.
Teresa.
Foi decidido mandar vinte cavaleiros na direcção de
S. Torcato onde se sabia da “concentração das forças adversas – possivelmente
no seu acampamento na zona do convento”.
No mesmo salão nobre, foi rezada a missa de S.
João, pois era o dia do Santo.
Pouco depois de concluída, chegam os cavaleiros que
comunicam ao Infante e aos barões que tiveram um recontro com a guarda avançada
das tropas de Fernão Peres, quase no extremo norte das terras de Gildes, e que
marchavam na direcção do Castelo de
Guimarães.
“D. Afonso Henriques dispunha de uma força militar
considerável. (...) A grande maioria dos fidalgos portugueses, a poderosa
família dos Mendes da Maia e a de Egas Moniz, muitos cavaleiros e infanções e
homens de armas, o povo das vilas e as guarnições de numerosos castelos, a
começar pelo do Neiva e o de Faria (...). Mas entre os meios à disposição de D.
Afonso Henriques, figurava com grande realce, Guimarães”.
O inimigo é constituído por gente estranha e
indigna, di-lo a Crónica dos Godos. Obedece a ordens de um estrangeiro, o Conde
Fernão Peres de Trava, sobre o qual paira a suspeita de não servir lealmente a
causa da independência do Condado que era o grande objectivo político de D.
Teresa e que nessa altura já é uma causa quase nacional.
As suas forças são compostas por portugueses, mais
acomodatícios ou menos independentes, ligados D. Teresa e a D. Fernão e por
fidalgos galegos ou leoneses que prosseguem também políticas próprias: daqui
uma coesão fraca.
Luís da Câmara Pina refere: “Embora sem base de
cálculo aceitável, a hoste (de D. Fernão) não disporia, de mais de meia centena
de cavalos de batalha e dos animais de tiro, carriagem e peonagem
correspondentes – o que daria, para pessoal, cerca de 300 homens.
Não seria a meu ver, um exército combatente – a
hoste de D. Fernão apareceria, de preferência, como representação do poder
legítimo, formal e legal.”
A meio da manhã, a capa de orvalho vai-se diluindo,
e o Sol, a todo o instante, dissolverá o que resta, e o exército do Infante
está no sopé do monte e avança pelos campos que conduzem a Gilde. São 600
homens impacientes à espera do sinal do confronto com o inimigo. D. Afonso, em
certa altura, dará o sinal para o arranque, para o avanço sobre o adversário, e
é fácil recriar pela imaginação o estrépito dos cavalos, o tinir das armas, as
nuvens de flechas, a vozearia daquelas centenas de homens avançando como um
turbilhão pelo campo adiante.
O exército de D. Fernão, desmotivado e em menor
número, não sustem a avalanche e foge em debandada.
D. Afonso não os persegue e pelos campos ressoa um
hurra! de vitória.
Enquanto a peonagem de D. Afonso se encarrega de
socorrer os feridos e enterrar os mortos, o grosso das tropas regressa a
Guimarães.
À sombra segura do Castelo, combatentes e povo das
duas vilas de Guimarães gozam a primeira tarde portuguesa comendo, bebendo e
dançando.
Só ao fim da tarde o Infante reuniu com os barões
companheiros de luta para começar a pensar o futuro, agora que as fronteiras do
Condado estão sob um comando único até Coimbra.
E depois vieram as decisões.
E decidiram bem.
Se a história esta história não é verdadeira, é,
pelo menos, verosímil, o que nem sempre acontece…
Nota:
Em geral, as investigações sobre a Batalha de S. Mamede são dominadas pelas
investigações dos historiadores e são raros os que investigam a batalha no seu
aspecto militar, isto é, das condicionantes do enfrentamento tanto do ponto de
vista da composição e peso do efectivos como do terreno onde se podia ter
propiciado a batalha. E a partir da documentação histórica de que há fracas
informações coevas, da indicação de que o enfrentamento teve lugar próximo do
Castelo, foi possível encontrar argumentação não contraditória com os
documentos e racionalmente aceitável. A título de alerta, esclareçamos que o
entendimento de “lugar próximo de outro” tem variado substancialmente ao longo
dos tempos. No século XV a Índia, por exemplo, estava a muitos meses de viagem
por terra ou por mar e, hoje, está a horas de distância.
O propre (proximidade) do Castelo naquela época,
não podia significar senão um lugar, no máximo, a meia hora a cavalo.
Bibliografia:
850.º Aniversário da Batalha de S. Mamede: Estudo Militar da Batalha de S. Mamede, de Luís da Câmara Pina;
A Primeira Tarde Portuguesa, de José Matoso
Como nasceu Portugal, de Damião Peres
16 de Junho de 2002
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