Reflexão de João de Meira sobre ao sentido que fazia, em 1901, comemorar o 1.º de Dezembro (passando ao lado das referências datadas, facilmente se perceberá que mantém plena actualidade nos tempos que correm):
É próprio de velhos entrevecidos pela gota ou pelo correr de longos anos recordar, com saudade e superabundância de adjectivos laudatórios, os tempos idos em que tinham mocidade e vida e força.
Portugal assim é, notamo-lo com mágoa,
ao deslizar de cada novo ano, quando o primeiro de Dezembro chega e com ele a
retórica dos sermões comemorativos, dos números únicos, das poesias gritadas de
um camarote sobre plateias pasmadas.
E constatamo-lo com dor, porque
ninguém se gasta em recordações do passado senão quando o presente é doloroso.
Tito Lívio não aspirava a um retrocesso à época dos Tarquinos, mas Tácito a
cada momento corria em espírito aos dias de Augusto.
Todas as nações do mundo, tomadas
não sei de que vertigem ao passar do século findo para este século, trouxeram consigo
uma grande vergonha. A França teve a Questão Dreyfus, os Estados Unidos a
Escravidão de Cuba, a Inglaterra a sangueira do Transwaal. Mas Portugal alcança
sobre todas uma triste e desgraçada superioridade com as suas queda de abismo
para abismo.
E a culpa bem patentemente se tem
visto que não é, felizmente, do sistema que nos rege, mas dos homens que nos
governam.
Cá, como outrora na Judeia quando
Cristo andava na terra, há sempre um calvário pronto e cruzes disponíveis para
os homens de boa intenção e são juízo. Há sempre um modo argucioso de interpretar
a lei para vencer os adversários que pugnam pela justiça e pelo bem estar da pátria.
Quando as leis assim compreendidas
se mostram impotentes, fabricam-se outras de novo, ad hominem, e, se esta legislação, propositadamente escrita, também
nada consegue, o facciosismo tem ainda na mão de homens comprados a vitória
certa pelo cacete fratricida.
O exemplo aí está bem frisante
nas ultimas eleições de deputados, com a guerra feita aos correlegionários do
snr. conselheiro João Franco.
Pois em meio de tão desventurada
posição, se havemos de empenhar todas as forças na conquista de um nobre Porvir
gastamo-las em recordações do que lá vai.
Actualmente, as comemorações ao
primeiro de Dezembro com luminárias e récita de gala são descabidas e sem significação.
Quem é que, tendo gasto em
dissipações uma fortuna herdada, em vez de procurar reabilitar-se por um
trabalho honrado, junta ainda as derradeiras migalhas para celebrar o aniversário
da herança?
Procuremos primeiro sair do
atoleiro onde caímos, prossigamos nosso caminho de olhos sempre no Futuro e
depois saudaremos as glórias passadas, quando tivermos conquistado outras para
lhes pôr ao lado.
Hoje não.
[João de Meira]
Independente, Guimarães, 1 de Dezembro de 1901
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