Nós queremos dormir, snr. Administrador do Concelho de Guimarães!


Em 1902, a pacatez vimaranense foi agitada por uma publicação entitulada, o Burgo Podre, que dois jovens vimaranenses, Eduardo de Almeida, que escrevia os textos em prosa, e Alfredo Pimenta, que escrevia em verso, tinham trazido de Coimbra no fundo das malas. Os textos saíam anónimos.  Pimenta escreveria mais tarde que eram dezasseis página tremendas, irreverentes, sacrílegas com que nos propúnhamos dinamitar o burgo, purificar o Céu, e alimpar as almas, e lavar os corpos dos nossos conterrâneos. O primeiro número (apenas se publicaria outro) terminava com um texto onde se prova ao snr. Administrador do Concelho, em termos amaneirados, por várias razões filosófico-jurídicas que os morteiros e os sinos incomodam.
Aqui fica, à atenção do Jorge Castelar, que se queixa do mesmo:

Senhor Administrador do Concelho de Guimarães,
Quando um incidente feio da nossa política vos instituiu no honroso encargo de delegado e representante do governo e do governador civil (art. 269 do Cód. Administ.) nesta terra de Guimarães, nós, e os seus mais cidadãos, ficamos esperançados em que se restabeleceria a paz e modorra das coisas públicas. Poderiam as conhecidas e imutáveis rameiras passear imponente os seus cabelos gordurosos e as saias de ganga, às horas mais vivas, os largos mais movimentados; poderiam as mulheres das sardinhas atormentar os burgueses honestos com esses palavrões infames, que eles, honestamente, gritam às esposas, antes de adormecerem, pensando nas irregularidades do câmbio; poderiam as tricanas insultar o “Fole” e arrancar-lhe aqueles vis estrídulos de gargalhadas parvas; poderiam os carrejes despir a blusa e arrancar o número; poderiam abarrotar-se os tascos de malvados e galdérias, que decilitrassem, sem cerimónia e sem sobressalto, quantos caes lhe consentisse a bolsa e o crédito; poderiam certos marialvas atropelar excursionistas, manhã ainda, esposa em casa, além no Cavalinho. Essa esperança alegrava-nos porque, soltas as línguas, violadas as posturas, Guimarães seria Guimarães essencialmente ordinária cheia de lama, analfabeta e malcriada; essa esperança alegrava-nos porque teríamos todos os dias azo de ler, em correspondência, as bravatas de um herói argamassado a esta terra pela sua dignidade, a lutar pela morigeração dos costumes num estilo de conselheiro Acácio em mistura de Palma Cavalão, a expor eternos escândalosvasos de urina despejados sem aviso, marido e mulher a socarem-se em pleno Jardim, bêbados cantando obscenidades repelentes.
Porque, Il.mo Senhor, a terra por que velais é positivamente caracterizada por esse conjunto abjecto de factos.
Mas não – os executores das vossas ordens multam as rameiras, multam as mulheres das sardinhas, obrigam à blusa e a número os carrejões, prendem os bêbados embora, todos os dias, nós tenhamos de admirar os cabelos gordurosas, aprender novas obscenidades, ouvir os arrancos angustiosos e coceguentos do idiota e esmolar a galdéria que se nos atira aos braços para não experimentarmos a navalha barata doa mente.
E, embora contrariados, num meio que não é o nosso, carecidos de bravatas e de facadas, nós somos os primeiros a cantar a vossa força autoritária ainda mesmo que essa força se traduza em amaviosas serenadas de violas, ferrinhos, flautas e rebeca, em mil encarceramentos de batoteiros que, ao dia seguinte, voltam para o café de lepes em que jogam, na apreensão de uns bilhetinhos protestantes que não ofendem a Carta Constitucional no seu art. 6.° e na carta aberta no Barroso, no Cosme, no barato para as despesas das vossas correrias administrativas.
É essa força que nos anima, Il.mo Senhor, a vir hoje incomodar-vos reclamando a vossa atenção para uma pulhice atroz, funérea, neriana.
Houve, tempos idos! um vosso colega que, como se achasse hospedado no Hotel do Toural e como quer que o enfastiasse, ou espertasse, o sino da Misericórdia, aos domingos, chamando para a missa das 11, reduziu o trabalho ao sineiro a meia ração de badalo.
Ora o facto é que, desde que vivemos, nós somos obrigados a receber a folhinha e, ao que nos consta, o snr. Dr. Abel de Andrade não se lembrou ainda de obrigar os homens de Portugal a andar a par das coisas da sacristia, nem tais coisas fazem parte do ensino público visto não se encontrarem para tal fim expressas em diploma algum oficial.
Acresce que nós nos deitamos tarde – ou porque os livros nos prendam à banca, ou seja porque jogássemos largas horas a sueca, o bilhar ou a bisca lambida, ou seja porque os bordéis e as tascas nos demorassem. Logo de madrugada, escuro ainda, quando nos regalávamos no melhor do sono, não nos doendo os calos, quando a nossa cabeça repousava mais docemente no colo da nossa mulher – esposa, amante, tolerada –, quando assistíamos, em sonho, Il.mo Senhor, ao desfiar da nossa glória, mundos de ouro, haréns de fadas, um lugar de amanuense, um lugar de varredor, a herança do tio, a carta da noiva, rivais passados a espada, a taluda, quando, como ensina Lagel, nessa perda momentânea da vontade e da inteligência, presos às mais febris alucinações, encontramos dentro em nós tesouros ignorados — eis que rebenta a mais estrepitosa, a mais sonora, a mais retumbante, a mais satânica, a mais álacre das bimbalhadas, os sinos de S. Domingos, os sinos da Oliveira, os sinos de S. Paio, os sinos das Dominicas, o sino de S. Pedro, os sinos da Misericórdia, os sinos de S. Dâmaso, os sinos do Campo da Feira, os sinos do Anjo, os sinos de Guimarães, os sinos de todo o mundo a badalarem desenfreados, danados, epilépticos. E logo um estrondear incrível de foguetes, de morteiros, de bombas, a pirotecnia a estoirar no espaço.
Arremessamos, loucos de desespero e impotência, as botas, os chinelos, os travesseiros, as calças, sem conseguirmos emudecer essa epopeia infernal de sons.
Isto não pode ser!
V. Exa., que goza de uma fama justa de pacatez, que rega as suas roseiras, que ama o capote à espanhola e o chapéu de coco, V. Exa., que se deita regularmente às 9 horas para se levantar às 9 horas do dia seguinte, V. Exa., que sabe, bem melhor do que nós que não há publicista algum que de preferência se dedique ao direito administrativo – Bonasi, de Foaq, le Blari, Ducroq, Vivieu, Posada, Piernas Hurtado, Santamaria de Paredes, Colmeiro – que aconselhe o barulho como meio de aperfeiçoamento de costumes, e decorou os parágrafos 15.° e 16.° do art. 278 do Cod. Administ., V. Ex.a, que é honrado, honesto e conservador – não pode consentir tal coisa.
Nós queremos dormir, snr. Administrador do Concelho de Guimarães!
[Eduardo de Almeida], Burgo Podre, Guimarães, 1902

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