João de Meira. Retrato a óleo de Abel Cardoso, da colecção da Sociedade Martins Sarmento. |
Na manhã do dia 24 de Setembro de
1913, faleceu em Gominhães, Guimarães, João Monteiro de Meira, professor da
Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Aos trinta e dois anos de idade,
desaparecia uma das inteligências mais fulgurantes do seu tempo. No dia
seguinte, o jornal O Primeiro de Janeiro
dava a notícia e traçava o perfil da sua personalidade multifacetada. Aqui
fica, para se conhecer melhor quem foi João de Meira.
Dr. João de Meira
Por telegrama recebido,ontem de tarde, pelo snr. director da Faculdade de
Medicina do Porto, foi conhecida nesta cidade noticia da morte do nosso amigo e
ilustre professor daquele estabelecimento científico Snr. dr. João Monteiro de
Meira, que expirou às onze horas da manhã, na sua casa de Gominhães, no
concelho de Guimarães.
Apesar de o sabermos doente há muito tempo e irremediavelmente condenado,
tal era a gravidade do mal que o minava, a triste notícia impressionou-nos
dolorosamente.
De longe conhecíamos este bom generoso e admirável cheio de talento e de
confiança no valor próprio, que logo aos primeiros passos sua carreira
académica soube marcar distintamente um lugar entre os melhores espíritos da
sua geração. Duma cultura literária e científica absolutamente invulgar na sua
idade, já entre os condiscípulos se fazia notar pela seriedade das suas
leituras e por uma profunda devoção pela obra dos nossos maiores escritores.
Os livros de Camilo, de Antero de Quental, de Eça de Queirós, de Ramalho
e de Oliveira Martins, eram o mais agradável recreio para o seu espírito; e o
autor do “Eusébio Macário” foi sempre o seu escritor predilecto, podendo
afirmar-se que ninguém em Portugal o conhecia melhor, nem com maior consciência
faria a crítica das suas obras. E à medida que ia completando o seu curso
médico e conquistando as mais elevadas classificações, o literato não abdicava
perante o homem de ciência que nele se estava formando. Antero e Cesário Verde
imitava-os do tal forma que não era possível distinguir entre os versos que
escrevia os daqueles dois grandes poetas.
As revistas literárias onde colaborou, quase sempre com pseudónimos
arquivam uma parte valiosíssima dessas belas tentativas. Pertenceu a um grupo
de rapazes do talento, alguns dos quais adormeceram já, como ele no regaço
reparador da morte. Outros, têm hoje um nome nas letras, no jornalismo e no
professorado. João de Meira, ao terminar o curso médico, depois de haver
provado literariamente o que valia, embora não renunciasse às letras, que
sempre cultivou com devoção, preferiu, como alguns dos seus camaradas,
consagrar-se ao ensino superior. O concurso que realizou perante a Faculdade do
Medicina foi mais uma elevada afirmação do seu grande mérito e na regências das
cadeiras que lhe foram confiadas, na colaboração dos jornais científicos em que
assiduamente escreveu, na direcção interina da “Morgue” evidenciou sempre
invulgares aptidões e a seriedade de um professor verdadeiramente moderno.
Ainda estudante, depois de escrever imerso em jornais literários, tentou
também o jornalismo político, revelando um excepcional valor de polemista e do
combatente.
Desde a adolescência, as suas horas de maior prazer espiritual eram as
que passava entro os livros com que, pouco a pouco, formou uma escolhida
Biblioteca. Dominava-o uma ânsia constante de saber, uma curiosidade ardente e
insatisfeita de leitura. Assim, eram-lhe familiares as melhores obras das
literaturas estrangeiras que habitualmente lia nos originais.
Falamos do literato e do professor, é necessário acrescentar que João de
Meira era um nobre e alevantado carácter, um coração leal e generoso, um amigo
sincero e dedicadíssimo. Na comoção deste momento, em que mal podemos traçar as
rápidas notas que aí ficam, enviamos a seu pai, o snr. dr Joaquim José de Meira
ilustre professor e clínico em Guimarães, e a seu irmão, o nosso amigo dr.
Gonçalo de Meira, digno conservador em uma das comarcas do norte, a expressão
do nosso profundo pesar.
*
O Dr. João de Meira nasceu em Guimarães, a 31 de Julho de 1881. Concluiu
o seu curso médico, defendendo tese em 30 de Janeiro de 1907. A dissertação
inaugural que então apresentou, intitulada “O concelho de Guimarães — Estudo de
demografia e nosografia”, que alcançou a alta classificação de 20 valores, é um
trabalho notável, revelador de um vasto estudo e do mais profundo saber. Ainda
nesse livro o escritor erudito prestou o melhor auxílio ao académico.
Foi nomeado, depois do brilhante concurso, em que apresentou como
dissertação a obra “O parto cesáreo, sua historia, sua história, sua técnica,
seus acidentes, suas indicações e prognóstico”, lente substituto da secção
cirúrgica, por decreto do 7 de Maio de 1908, tomando posse desse lugar no dia
14 do maio do mesmo ano.
Por decreto de 22 de Fevereiro de 1911, foi colocado no lugar de
professor ordinário da 3.ª classe — Farmacologia e Ciências Naturais—, regendo
também a cadeira do Medicina Legal, até que adoeceu, em princípios de Fevereiro
deste anuo
Foi colaborador assíduo da “Revista de Guimarães”, dos “Arquivos da
História da Medicina Portuguesa”, da “Gazeta dos Hospitais”, e dirigia
ultimamente por deliberação do Conselho da Faculdade, os “Anais Científicos da
Faculdade de Medicina”, deo que se encontra completo o primeiro ano.
Fundou, há anos, em Guimarães, “O Independente”, jornal que manteve a
princípio uma acentuada feição literária e no qual escreveu contos cheios do
originalidade, publicando também inúmeras poesias e sustentando rigorosas
polémicas. Reuniu, em separata desse jornal, as cartas inéditas de Camilo ao
ilustre arqueólogo dr. Martins Sarmento; e, ainda recentemente, publicou um
interessante folheto, intitulado “As influências estrangeiras em Eça de Queirós”.
No “Mundo Ilustrado”, desta cidade, fez sair. Com pseudónimo, um conto
fantástico género Conan Doyle, “Um cadáver evadido da Morgue”*, que produziu uma
profunda sensação; e uma curiosa novela “Eusébio Macário em Guimarães”,
imitação de Camilo, traçada duma forma que se assemelha, absolutamente à do
grande escritor, que ele tanto admirava.
O professor João do Meira morre com trinta e dois anos apenas; e contudo,
poucos na sua idade terão afirmado um tão alto valor e tão complexas e variadas
aptidões intelectuais.
* O título daquele conto, recentemente publicado pela Sociedade Martins Sarmento, é um pouco diferente do que aqui aparece: “O cadáver que se evade”.
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