A Santa casa da Misericórdia de Guimarães |
7 de Setembro de 1584
A Câmara manda, por pregões e sinetas pelas ruas e lugares costumados,
chamar todas as pessoas da governança e do povo, e, reunidos todos em sessão,
expõe-lhes que no tempo em que Sancho de Ávila veio por capitão-geral sobre a
cidade do Porto e defendê-las a D. António, esta vila dera-lhe dois mil
cruzados, para não vir alistar soldados nela, e como por direito o dito Sancho
de Ávila não podia levantar tal dinheiro, o que já lhe haviam dito, e tinha
vindo recado à Câmara que requeresse sua justiça ao Geral da gente de guerra
que neste reino estava: por isso era preciso tomar alguma decisão. Depois de
ponderado por todos o serviço de Deus, o proveito e a muita necessidade que
havia de uma Casa de Misericórdia que o povo requeria para se fazer, se os
moradores mais ajudassem com suas esmolas: foi solenemente acordado que, do tal
dinheiro e das mais dívidas à vila, faziam doação e esmola à confraria da
Misericórdia dela para ajuda de se fazer a sua casa no lugar que melhor
parecesse ao provedor e irmãos da dia Confraria, e logo se lavrou escritura de
doação trespassação e procuração, na nota de António Fragoso, para receber tal
dinheiro e mais dívidas. No mesmo dia e na mesma nota, que é muito ruim de ler
como todas as notas deste tabelião, o dito provedor e mesários da Misericórdia,
reunidos no Claustro da Colegiada, onde era sua sede, dão procuração a António
Gonçalves, confrade de menor condição, para requerer, procurar e receber o
mencionado dinheiro e dívidas.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 235)
Em Agosto de 1498, foi criada a Irmandade de Nossa Senhora da
Misericórdia, por intervenção da viúva de D. João II, a rainha D. Leonor, que
acolheu uma sugestão do seu confessor, Frei Miguel de Contreiras. O propósito
desta instituição era a de praticar as obras de caridade do catecismo cristão,
assumindo, entre outras, as missões de alimentar os famintos, de assistência aos
enfermos, da criação dos enjeitados, de dar sepultar aos mortos e de dar consolo
aos tristes. Outras confrarias ou irmandades com propósitos idênticos surgiriam
em Portugal e no seu império. Em Guimarães conhecemos duas: uma que funcionava
no claustro da Colegiada e outra na paróquia de S. Paio, mas não sabemos ao certo
quando foram constituídas.
Dos primórdios da Confraria que funcionou no Claustro da Colegiada pouco
sabemos, por se ter perdido o seu primeiro livro de termos ou actas e o segundo
apenas começar no ano de 1604. O Padre António Ferreira Caldas e Luís de Pina
afirmam que o seu primeiro provedor terá sido o Prior D. Fulgêncio, filho de D.
Jaime, Duque de Bragança. Sabendo-se que D. Fulgêncio ocupou a cadeira de Prior
de Guimarães no dia 3 de Agosto de 1567, tendo-a ocupado até à sua morte em
Janeiro de 1581, a Confraria que está n origem da Santa Casa da Misericórdia de
Guimarães terá surgido na segunda metade do século XVI.
Num documento datado de 1639, publicado por Rodrigo Pimenta no Boletim dos Trabalhos Históricos, com o
título Instituicam da Mizericordia desta
muy nobre e antigua Villa de Guimarães e Cathalogo dos Provedores e escriuães
q. até o prezente tem seruido nella, ficamos a saber que, desde que se
criou em Lisboa a Confraria da Misericórdia, em Guimarães havia uma irmandade,
constituída por seis irmãos da nobreza, outros tantos do povo e um provedor, os quais administravam as obras da
Misericórdia com toda a caridade e zelo cristão. Por esse tempo, a
assistência pública era assegurado por vários pequenos hospitais e gafarias
espalhados pela vila. No entanto, em Guimarães sentia-se a muita necessidade que havia de uma Casa de Misericórdia que o povo
requeria para se fazer. Mas faltavam os meios.
Em meados da década de 1580, conjugam-se as condições para que fosse
construída a instituição assistencial que todos tinham por necessária.
Aquando da guerra da sucessão que seria ganha por Filipe II de Espanha,
Guimarães tinha oferecido dois mil cruzados ao general espanhol Sancho de Ávila
que, no Minho, comandava as tropas de Filipe II, para que não mandasse alistar
soldados na vila. Entretanto, tendo contribuído para a derrota definitiva do D.
António, Prior do Crato, na batalha de Alcântara e para a consolidação do
domínio filipino sobre o território português, Sancho de Ávila seria derrubado
pelo coice de um cavalo, de que veio a falecer em Maio de 1583, sem ter
levantado o dinheiro que os de Guimarães lhe haviam oferecido.
No dia 7 de Setembro de 1584, a Câmara reuniu com as pessoas da governança e do povo, que mandara chamar por pregões e sinetas pelas ruas e lugares
costumados, para deliberar acerca do destino a dar àquela verba, tendo sido
decidido que seria entregue em doação e
esmola à confraria da Misericórdia dela para ajuda de se fazer a sua casa no
lugar que melhor parecesse ao provedor e irmãos da dia Confraria. No mesmo
dia, a mesa da Confraria reuniria no Claustro da Colegiada, sob presidência do
seu provedor, tendo decidido passar procuração
a António Gonçalves, confrade de menor condição, para requerer, procurar e
receber o mencionado dinheiro e dívidas.
O documento descoberto por Rodrigo Pimenta acerca da instituição da Misericórdia,
informa que, no dia 18 de Setembro de 1585, a Confraria da Misericórdia de Guimarães
passou por uma reformulação na sua orgânica, que reduziu a irmandade a número certo de irmãos. Percebe-se que se
estava a redimensionar para lançar mãos à empresa que tinha pela frente.
Dois anos depois, a 10 de Junho de 1587, o rei autorizaria a Câmara a entregar
à Misericórdia 500 cruzados, dos sobejos das sisas, com a condição de que
aquela verba não poderia ter outra
aplicação que a da obra da casa da Misericórdia de que havia necessidade
fazer-se.
A casa da Misericórdia, assim como a respectiva igreja, seriam erguidas
na rua Sapateira (actual rua da Rainha), no chão anteriormente ocupado por casas
doadas à Confraria ou adquiridas por esta. Para tal fim, no dia 2 de Abril de
1588 foi assinado um alvará régio que autorizava a Misericórdia a expropriar os
prédios de que necessitava para fazer avançar a sua obra. No entanto, em 12 de
Dezembro do mesmo ano, o rei recusaria à Misericórdia autorização para usar a pedra de uma tapagem que estava dentro dos
muros da vila, no rocio da banda de dentro da porta da garrida, que por já ser
desnecessária, o povo derribara um pedaço, de que se fizera uma porção de
calçada para tornar a usar das serventias que de antes que ela fosse feita se
servia; pedindo a que restava e chegava para maior parte da igreja e Casa da
Misericórdia, que andavam construindo no meio da rua da Sapateira que era a
principal de Guimarães.
A primeira pedra da Casa da Misericórdia seria lançada no último dia de
Maio do ano de 1588. O provedor era então Francisco Rebelo, senhor da Comenda de
Unhão, que estava ausente naquele dia, tendo sido benzida pelo Cabido da Colegiada
no dia 7 de Junho do mesmo ano. A obra seria dirigida por Pedro de Oliveira,
cavaleiro do Hábito de S. Tiago. A primeira esmola para as obras foi entregue pela
Câmara e pelo povo da vila, no valor de 200$000 réis também provenientes de
sobejos das sisas.
Os dois mil cruzados oferecidos à Confraria da Misericórdia em 1584 para
a fundação da sua Casa não seriam fáceis de receber, chegando a Misericórdia contratar,
no início de Novembro de 1593, um tal Diogo Afonso Caneiros, com a tarefa de o
cobrar, ficando o cobrador com direito a metade do que conseguisse receber,
tamanha era a dificuldade da cobrança.
Entretanto, a Câmara solicitaria ao rei que fosse concedida à Câmara a
receita do um ceitil em cada quartilho de
vinho e azeite e em cada arrátel de pescado que na vila e termo se vender,
para aplicar em várias obras públicas e para as obras da Misericórdia pela muita necessidade que há de se acabar a casa
nova da Santa Misericórdia que há anos que está começada, que o povo da vila
não é poderoso para a poder acabar. O rei responderia com um alvará, em que
autoriza a prorrogação daquele imposto por dez anos, com a condição de que um
terço desta receita fosse entregue à Misericórdia, para gastar com as obras.
Os trabalhos nas fundações e nos anexos da Misericórdia arrastaram-se até
1595. No dia 16 de Abril desse ano, Gonçalo Lopes, mestre de pedraria, e o seu
genro Pedro Afonso de Amorim, moradores na Rua Caldeiroa, celebraram escritura
com a Misericórdia, através da qual se obrigaram a construir, em pedra, a
respectiva capela. Três anos depois, António Fernandes, carpinteiro da Rua Nova
do Muro, adjudicou a colocação da cobertura da capela-mor da igreja da
Misericórdia. Em 1599, Guimarães seria devastada pela terrível Peste Pequena,
que, de pequena apenas teve o nome. Enquanto durou, a vila esvaziou–se de gente
e as obras da Misericórdia tiveram de ser suspensas.
Passada a tormenta, são retomadas os trabalhos. No dia 22 de Junho de 1600,
a Misericórdia, com o aval Gonçalo Lopes e Pedro Afonso de Amormi, nomearia Manuel
Luís e Jerónimo Luís, mestres, respectivamente, das obras do Arcebispo de Braga
e das do Mosteiro de Pombeiro, para procederem à vistoria da obra de pedraria
A empreitada de pedraria ficou concluída em Abril de 1601. A 14 de
Novembro de 1604, já depois da morte do mestre Gonçalo Lopes, a Misericórdia
encarregou da construção da fachada e do coro alto da igreja os seus
sucessores, Pedro Afonso de Amorim,genro, e João Lopes de Amorim, filho. A Casa
da Misericórdia e a sua Igreja foram inauguradas em 1606, altura em que a
irmandade abandonou em definitivo o claustro da Colegiada (o espaço que aí ocupou
passou a ser conhecido por Misericórdia
Velha).
Acolhendo enfermos a partir do ano de 1606, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães é um dos primeiros do seu género em Portugal.
Acolhendo enfermos a partir do ano de 1606, o Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães é um dos primeiros do seu género em Portugal.
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