Efeméride do dia: A servidão da vassoura


17 de Agosto de 1743
É notificado aos vereadores e procuradores do concelho, pelo seu escrivão Fernando Peixoto do Amaral, a provisão de El-rei D. João V, datada de 25 de Fevereiro de 1743 que extingue a obrigação vexatória que tinham os moradores das freguesias de Cunha e Ruílhe de vir varrer a Praça e açougue da vila de Guimarães na véspera de 7 festas do ano, obrigação que fora imposta por El-rei D. João I aos habitantes da vila de Barcelos.A provisão e a notificação que estão transcritas no livro 5º do registo da Câmara a folhas 62 a 64, acham-se copiadas no vol. 5.º, n.º 4, da Revista de Guimarães. Por tais documentos vê-se que foi neste dia a extinção da obrigação e não a 23 de Junho de 1744 como afirma o padre Caldas no seu "Guimarães, Apontamentos”, etc., vol 1, pág. 297 e seguintes, reportando-se ao testemunho de frei Francisco Xavier autor do manuscrito "Tratado Histórico" dos priores que hão sido do Real Mosteiro da Costa, etc.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 156 v.)

Dia da procissão do Corpus Christi. Madrugada ainda. Na Praça Maior de Guimarães, três homens varrem o terreiro da igreja da Senhora da Oliveira, cada qual com sua vassoura de ramos de giestas. Cada um tem a cabeça coberta com um barrete vermelho, com uma ponta pendente até à altura do cinto de couro, e uma espada, metida num cinto armado à esquerda. O peito era atravessado por uma faixa de baeta, também vermelha. Pendurados no cinto, como os caçadores fazem às perdizes, levavam também um sapato e uma meia, porque andavam com um pé calçado e outro descalço. Em volta dos três varredores, revoava o rapazio, soltando insultos e cantilenas injuriosas. Assim acontecia sete vezes ao ano nos dias das festas principais da vila de Guimarães. Há livros onde se lê que seriam nove vezes, assim como há os que dizem que os varredores seriam dois, e não três. Que delitos teriam cometiam aqueles homens que varriam Praça e os açougues de Guimarães enfiados em trajes tão grotescos e humilhantes? Nenhum.
Diz a tradição que esta servidão vexatória tem como origem num facto ocorrido aquando da tomada de Ceuta, a 22 de Agosto de 1415, que o Padre António Caldas descreveu:
Para a defesa desta praça em África, dividiu el-rei as estâncias da muralha, pelos moradores das cidades e vilas, que o acompanharam nesta empresa: acontecendo ficar a gente de Guimarães e Barcelos em estâncias seguidas, onde o combate com os mouros foi mais cruel e renhido.
Atemorizados os barcelenses pelo furor mauritano, desamparam o seu posto e fogem; mas logo os filhos de Guimarães, com o peito abrasado no amor da pátria, se dividem em dois terços, ocupando com um deles a estância abandonada, e defendendo-a até à vitória com inexcedível coragem.
Para castigar a fragilidade duns, premiando ao mesmo tempo a heroicidade dos outros, mandou D. João I, que de então para sempre dois vereadores de Barcelos, com um barrete vermelho na cabeça, banda ao ombro da mesma cor, espada à cinta, vassoura de giesta em punho, e com um pé calçado e outro descalço, viessem em todas as vésperas das festas da câmara varrer as praças e os açougues de Guimarães; entregando depois o barrete e a banda aos nossos vereadores, dando-lhes assim satisfação de tão vexatório tributo, que pagaram a esta vila por muitos anos.
Não havendo já em Barcelos quem se prestasse a servir de câmara, fez o duque de Bragança D. Jaime com a câmara e povo de Guimarães, um contrato solene, pelo qual ficou obrigado a dar do termo da vila de Barcelos, de que era senhor, as freguesias de Cunha e Ruilhe, para que estas — anexadas ao termo de Guimarães — dessem todos os anos dois homens, que viessem aqui satisfazer tão pesado encargo.

A existência da servidão da vassoura é um facto histórico que não oferece contestação. Existia mesmo. As certezas terminam aí. Os documentos conhecidos não confirmam o seu fundamento nos feitos da conquista de Ceuta e nunca ninguém viu a sentença de D. João I onde estaria consagrada. Alfredo Pimenta afirmou ser esta uma história da carochinha. E explicou porquê:

Nem o cronista da tomada de Ceuta narra a falência da bravura dos homens de Barcelos, nem ninguém viu a Sentença de D. João I.
Mas a servidão existia — isso é inegável. O que se ignora é a sua origem verdadeira.
Nem se entende que sendo ela destinada a castigar a fraqueza ou a cobardia dos barcelenses, o Duque D. Jaime pudesse encabeçá-la em duas freguesias que alienou, e passou para o termo de Guimarães, dando essa transferência em resultado ficarem os de Barcelos isentos da pena, e os de Guimarães com ela às costas; porque as freguesias de S. Miguel de Cunha e de S. Paio de Ruilhe, sendo barcelenses até o dia da transacção, passaram a ser vimaranenses, depois dela. Em qualquer caso, o que devia ser suportado pelos moradores de Barcelos, ou seus vereadores, passou a sê-lo pelos fregueses de Ruilhe e de Cunha, — não enquanto barcelenses, mas depois de entrarem no termo de Guimarães.
Acresce ainda, e não é pouco, que desconheço a data da incorporação das duas freguesias de S. Miguel de Cunha e de S. Paio de Ruilhe no termo de Barcelos — para que o Duque D. Jaime possa separá-las dele.
Porque muito bem as conheci como fazendo parte do termo de Guimarães, anteriormente.

Assim é. A conquista de Ceuta aconteceu em 1415. As freguesias de Cunha e Ruílhe já pertenciam ao termo de Guimarães em 13 de Julho de 1288, data em que aparecem no capítulo dedicado a Guimarães das Inquirições mandadas fazer por D. Dinis.
A referência mais antiga à servidão da vassoura que conhecemos foi escrita em 1512 por Mestre António, cirurgião de Guimarães, no seu Tratado sobre a província de Entre-Douro-e-Minho e suas abundâncias, que permaneceu inédito durante mais de quatro séculos:

E assim os desta comarca andaram vinte e tantos anos nas guerras de Castela pelos quais serviços lhe deram muitos privilégios estremadamente à vila de Guimarães que lhe deram o título de mui nobre e sempre leal, e o castelo de Guimarães nunca se acha ser tomado de mouros, os que fugiam das guerras de outras partes foram ajuntados em certos lugares como degredados e foram dados como tributários à dita vila de Guimarães para sempre como hoje em dia as de Cunha e Ruilhe, que são daqueles vêm cada ano varrer açougues e praças e ruas da vila de Guimarães e para outras quaisquer coisas que os mandem chamar, posto que vivem quatro léguas de Guimarães e não são do seu termo e assim eram os de Fão e Esposende se não o duque Dom Afonso que Deus tem por muitos serviços que lhe fizeram os tirou da dita sujeição e os deu a Barcelos por termo por que viviam mais perto dele e todos os privilégios principais que depois foram outorgados pelos reis a Lisboa e aos outros lugares do reino dessem eles assim que pela maneira que os termos outorgados a nossa mui nobre e sempre leal vila de Guimarães.

O texto de Mestre António ajuda-nos a perceber a razão de ser desta servidão vexatória. O cirurgião-escritor é claro quanto à origem desta costumeira: aquelas freguesias eram lugares para onde foram degredados os que deserto de guerras, tendo sido dados como tributários à dita vila de Guimarães. Note-se que não faz qualquer referência a Ceuta.
A alusão mais antiga a esta tradição é de finais do século XVII, aparecendo nas Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, do Padre Torcato Peixoto de Azevedo, versão depois reproduzida por António Carvalho da Costa, na sua Corografia Portuguesa e por António Caldas (cuja transcrição vai acima).
Ora, é naquela mesma obra de Carvalho da Costa que encontrámos uma pista para uma explicação credível, se bem que contraditória com a hipótese de Ceuta que o mesmo autor subscreve noutra passagem da sua obra, como vimos acima. Quando trata da freguesia de Santa Eugénia, o Padre Carvalho da Costa escreve:
Dizem foi antigamente couto de Guimarães e por castigo, e privilégio que tinham eram os moradores obrigados a ir-lhe varrer as ruas; mas sendo mui prejudicial a Barcelos haver aqui este couto tão seu vizinho, em que acolhiam seus criminosos, donde saíam a roubá-los, lhes deram em troca as duas freguesias de Cunha e Ruílhe com a mesma obrigação.
servidão da vassoura é uma tradição para cuja decifração ainda faz falta algum investimento. A versão made in Ceuta, não tem consistência. Inclino-me para que Cunha e Ruílhe fossem, como já dizia Mestre António, no princípio do século XVI, coutos de homiziados, que eram lugares onde alguém que tivesse violado a lei poderia viver em cumprimento de sentença judicial, libertando-se de outras penas em que tivesse incorrido, embora ficando sujeito a certas obrigações ou trabalhos, por vezes vexatórias. Essa poderá ser, tendo a acreditar, a origem desta obrigação. Provavelmente, seria anterior à tomada de Ceuta. Manteve-se até que D. João V a aboliu em 1743, apesar de se ter perdido a memória da sua razão de ser.
A explicação que a tradição perpetuou será, como o pressentiu Alfredo Pimenta, uma história da carochinha. Um conto a que, recentemente, historiadores imaginosos foram acrescentando um ou outro ponto.



Provisão de D. João V extinguindo a obrigação de Cunha e Ruílhe
Dom João por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves de aquém e de além mar em África, senhor de Guiné etc. Faço saber que havendo respeito ao que me representaram por sua petição os moradores das freguesias de S. Miguel de Cunha e S. Paio de Ruílhe, da sereníssima casa de Bragança, que havia trezentos anos se achavam obrigados pela câmara da vila de Guimarães a uma servidão injuriosa de irem sete vezes no ano a varrer a praça, terreiro e açougue da mesma vila por cada vez três homens das ditas freguesias a quem cabia por distribuição, aos que vestiam na câmara uma opa vermelha ou barrete da mesma cor de que caía uma ponta até o talabarte e a espada levavam e a metiam em um cinto armado a esquerda e os faziam descalçar um pé ficando com o outro calçado pondo-lhe ao cinto o sapato e meia que tinham descalçado e sendo conduzidos por um guarda que havia para isso deputado os faziam exercer naquela vil servidão assim como os das galés, estando os suplicantes sujeitos a ir varrer ainda debaixo de grandes penas com que eram vexados na falta de assim servirem, padecendo grandes injúrias e ludíbrios de grupos dos rapazes e outras semelhantes nas ocasiões desta sua servidão a qual se dizia era fundada por uma sentença que havia do snr. Rei Dom João o primeiro e tinham os vereadores da dita vila de Guimarães em seu poder por haverem estes suprido a falta que não chegara ao lugar por medo ou fraqueza a ordenança de Barcelos sendo-lhe destinado o sítio ou estância para o assalto da praça de Ceuta, por cuja causa proviera aos vereadores da dita vila de Barcelos esta servidão e o conde da mesma vila pelos livrar a impusera aos suplicantes, que sendo nesse tempo do termo da dita vila de Barcelos fizera passar as ditas freguesias para o termo da vila de Guimarães, sendo certo que se acaso havia a dita sentença não podia ser justo título para a servidão em que os suplicantes se achavam, porque se os vereadores da dita vila de Barcelos tinham como se dizia sido condenados na dita servidão não deviam padecer os suplicantes a pena, pois nas matérias penais não havia nem podia haver extensão e ainda quando todos os moradores fossem condenados não podia esta condenação ser transmissível a todos os sucessores, porque ainda pelo crime de lesa-majestade, que era o maior, não eram castigados os descendentes do culpado além dos netos e nem podia da mesma sorte dizer-se justo título o lapso de tempo de trezentos anos para prescrever a servidão ou escravidão contra o direito natural principalmente não havendo entre os cristãos escravos, ainda que a escravidão fosse pelo direito das gentes introduzida contra o direito natural primário por não ser esta observância permitida entre católicos e só sim entre infiéis e gentios havendo causa ou guerra justa e com maior razão sendo os suplicantes obrigados a esta servidão com rigorosas penas e condenações, prisões e outras vexações semelhantes que com medo à morte cumpriam, sendo regra comum de direito que todos os actos feitos por temor nem provavam a posse nem a título justo se deviam atribuir e porque os ditos vereadores da vila de Guimarães mais obrigavam os suplicantes para final reconhecimento da sua servidão com vestes e insígnias ignominiosas do que por haver daquela limpeza necessidade, pois os lavradores a faziam por conveniência própria das suas fazendas mandando quotidianamente varrer as ruas, praças, terreiro e açougue  recorriam à minha real protecção imediatamente para que os aliviasse desta servidão ou escravidão ficando usando os suplicantes do direito natural em que a natureza os pusera e visto o que alegaram e constou das informações do provedor da comarca da dita vila de Guimarães, ouvidos os oficiais da câmara dela e remetendo a cópia da primeira obrigação que os suplicantes fizeram e por não satisfazerem com os documentos em que fundavam a sua resposta foram por especial ordem minha notificados para que os juntassem ao que não satisfizeram e pretenderam ser nesta Corte ouvidos para o que se mandou ao corregedor do cível da cidade Simão da Fonseca e Sequeira que no termo de oito dias ouvisse e com o que os suplicados disseram e novamente os suplicantes representavam tendo outrossim já sido ouvida a nobreza e povo da dita vila de Guimarães, que requereram e pediam se conservasse a dita servidão como privilégio concedido à Senhora da Oliveira da mesma vila e que sobre a posse dela os poderiam os suplicantes demandar pelos meios ordinários, e dando-se vista ao procurador da minha real coroa deste requerimento e com as respostas que deu se me fez consulta pela mesa do desembargo do Paço em treze do mês de Agosto de mil setecentos e trinta e quatro e em resolução dela de dez de Fevereiro de mil setecentos e quarenta e dois por fazer aos suplicantes graça e mercê Hei por bem extinguir esta ignominiosa servidão e que sobre a continuação dela se não admita requerimento algum de novo e se ponha perpétuo silêncio nos que houver e para que esta minha resolução tenha seu devido e verdadeiro cumprimento mando ao provedor da câmara da dita vila de Guimarães a faça intimar aos oficiais da Câmara da mesma vila para que assim o tenham entendido e passará certidão nas costas desta minha provisão por que conste o haver assim executado e sendo outrossim registada nas partes a que tocar e se cumprirá como nela se contém e valerá posto que dure o seu efeito mais de um ano sem embargo da Ordenação do livro segundo título quarenta em contrário e esta minha provisão que foi obrada na forma da lei de vinte e quatro de Julho de mil setecentos e treze mando se cumpra e guarde inteiramente como nela se contém e se entregue aos suplicantes moradores das freguesias de S. Miguel de Cunha e S. Paio de Ruílhe ou a seu procurador para seu título e pagaram de novos direitos cinco mil e quatrocentos réis que se carregaram ao tesoureiro deles a folhas trezentas verso do livro 3.º de sua receita e se registou o conhecimento em forma no livro sétimo do registo geral a folhas cento e setenta e seis. El-Rei Nosso Senhor a mandou por seu especial mandado pelos doutores Gregório Pereira Fidalgo da Silveira e António Teixeira Alves, ambos do seu conselho e seus desembargadores do Paço. João de Medeiros Teixeira a fez em Lisboa a vinte cinco de Fevereiro de mil setecentos e quarenta e três, de feitio, seiscentos réis. E eu Gonçalo Francisco da Costa de Souto-Maior a fiz escrever. (Seguem-se as assinaturas e registos)

Certidão de notificação. — Certifico eu Fernando Peixoto do Amaral escrivão da câmara proprietário nesta vila de Guimarães e seu termo por Sua Majestade que Deus Guarde etc. que por mandado do doutor provedor desta comarca intimei aos vereadores e procurador do concelho desta mesma vila a resolução de Sua Majestade que nesta se faz menção, hoje em Guimarães dezassete de Agosto de mil setecentos e quarenta e três anos. Fernando Peixoto do Amaral. E não se continha mais na dita provisão e certidão que eu Fernando Peixoto do Amaral escrivão proprietário nesta vila de Guimarães e seu termo por Sua Majestade que Deus guarde fiz aqui registar da própria bem e fielmente que está na verdade sem coisa que dúvida faça e à própria, que entreguei ao doutor provedor desta comarca, me reporto, e por ser verdade me assino de meu sinal costumado de que uso hoje nesta vila de Guimarães aos dezassete dias do mês de Agosto de mil setecentos e quarenta e três anos. Sobredito Fernando Peixoto do Amaral a fiz registar. Fernando Peixoto do Amaral.

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