O largo de S. Lázaro, numa estereoscópia de Antero Frederico de Seabra de 1858, anterior à deslocação do Padrão que o afastou do meio da rua. |
29 de Agosto de 1864
2ª feira.- Às 6 horas da tarde foi de novo colocada, com grande pompa e
solenidade, a cruz do histórico padrão de S. Lázaro, que no ano passado (vide
20 de Março de 1863) foi removido do sítio em que estava assente, para outro
próximo. O acto foi feito com assistência do governador civil, Câmara
Municipal, administrador do concelho, Cabido, mesas de algumas corporações e
vários titulares e cavalheiros. No largo de S. Lázaro estava levantado um
pavilhão, onde se fez e assinou a acta da solenidade. A rua de D. João I estava
toda endamascada e embandeirada, subindo ao ar muitos foguetes e tocando duas
músicas, sendo uma paga por diversos moradores da dita rua para celebrarem a
inauguração do tanque da mesma rua. À noite o tanque esteve iluminado e algumas
casas desta rua, tocando ali a mesma música, a outra andou percorrendo as ruas
da cidade.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 186)
Chamam-lhe Padrão de S. Lázaro, Padrão de D. João I, Padrão de Ceuta ou
mesmo Padrão dos Pombais. A tradição associa-o a uma romaria de gratidão de D.
João I à Senhora da Oliveira em que o rei entrou em Guimarães pela rua de Gatos
(ou seja, de Entre-Regatos, porque naquela rua, que corresponde ao fundo da
actual rua D. João I – o troço mais próximo do Toural chamava-se rua de S.
Domingos - confluem as ribeiras de Couros e de Santa Luzia), e, descalço,
completou o caminho que o levava à igreja da Colegiada. Segundo a versão mais
corrente, a visita do Mestre de Avis à Senhora da Oliveira terá acontecido em
1386, sendo uma romagem de agradecimento pela vitória em Aljubarrota. A outra
versão remete para duas décadas depois, sendo o seu motivo o sucesso da tomada
de Ceuta, em 1415. Segundo ambas as versões desta tradição, o local onde esteve
originalmente implantado o Padrão marcava o local exacto onde o rei se
descalçou.
Em meados do século XIX, andando-se a construir a estrada de Guimarães a
Vila Nova de Famalicão, discutia-se qual seria a sua directriz na entrada da
cidade. Em 1858, uma petição assinada por mais de quatro centenas de habitantes
da cidade e das freguesias contíguas subscreveram um documento em que pediam à
rainha que não fosse atendida a pretensão da Câmara de fazer com que a entrada
na cidade se fizesse pelo Proposto, mas sim pelo local inicialmente previsto,
ou seja, por S. Lázaro e pela rua de Gatos. Esta seria a opção adoptada. Para
tanto, havia necessidade de proceder a melhoramentos naquela rua e na de S.
Domingos, o que implicaria, nomeadamente, a remoção do padrão para outro local,
pois estava no meio da rua.
No dia 20 de Março de 1863, iniciou-se, com pompa e circunstância, a remoção
do Padrão, com a cerimónia de lançamento da primeira pedra. As ruas de Gatos e
de S. Domingos engalanaram-se para a festa: as casas estavam cobertas com
colchas de seda e damasco, iluminando-se à noite, à entrada da rua de S.
Domingos, junto ao Toural, ergueu-se um arco festivo, subiram ao ar foguetes,
uma banda de música tocou no largo de S. Lázaro até às 11 da noite. Um cortejo,
formado ao meio-dia na casa da Câmara e aberto pela bandeira da Câmara,
transportada pelo fiscal Manuel Isidoro da Costa Vaz Vieira, onde se
incorporaram o governador civil e o seu secretário-geral, o administrador do
concelho, autoridades judiciais e presidente da Câmara. A fechar, a banda de
música da terra. As corporações
religiosas e muitos cavalheiros que tiveram convite, abstiveram-se de ir, em
sinal de protesto pela remoção do Padrão. O arcipreste de Guimarães benzeu
a primeira pedra, tendo lançado o cimento, com uma colher de prata, todas as
autoridades presentes, a começar no governador civil e a terminar no presidente
da Câmara. Seguidamente, discursou o governador civil que anunciou que, dali
para a frente, aquela rua passaria da designar-se como Rua de D. João I.
Não faltaram as vozes que se ergueram contra a trasladação do monumento,.
No jornal Religião e Pátria de 26 de
Março de 1863, classificava-se a obra como um acto de destruição e vandalismo e perguntava-se:
Que dirão as gerações futuras
quando souberem que houve uma Câmara em Guimarães que, a pretexto de melhorara
a cidade e de reconstruir e aformosear uma rua, mandou, por entre as pompas e
aparatos que nós presenciamos, remover dum lugar para outro o marco histórico
levantado no sítio em que se apeou o Snr. D. João I, quando, coberto dos louros
da gloriosa tomada de Ceuta, veio a esta cidade cumprir o voto que tinha feito
a Santa Maria de Guimarães?
Concluídas as obras de alargamento e melhoramento da rua de D. João I, o
padrão desmontado em Março de 1863 seria reconstruído no local onde hoje se encontra,
desviado 2 metros e 30 centímetros do seu sítio original. A cerimónia de
reposição da cruz aconteceu no dia 29 de Agosto de 1864 e teve a mesma
solenidade do acto de remoção. Participaram as mesmas autoridades, desta vez
com a presença de algumas corporações religiosas. Os moradores a rua festejaram
como antes, engalanando as suas casas e queimando foguetes. Duas bandas de
música animaram a festa, no local e pelas ruas da cidade. Mais do que
festejarem a reposição da cruz no Padrão, os da rua de D. João I festejam o abundante tanque de água que fora colocado
junto das suas casas.
Quanto à data de construção e ao que representa o Padrão erigido em S.
Lázaro, as dúvidas persistem. Pela sua arquitectura (um alpendre aberto, de
planta quadrada, apoiado em quatro pilares de fuste liso e entablamento dórico,
que abriga uma cruz com uma figura de Cristo de numa das faces e a de Nossa
Senhora na outra, decorada com motivos góticos tardios ou mesmo
renascentistas), percebe-se que é obra da primeira metade do século XVI, pelo que
se afigura pouco provável a sua suposta ligação aos feitos de D. João I em Aljubarrota
ou em Ceuta.
Tanto a versão da tradição que liga o Padrão ao feito de Ceuta, que era a
mais aceite, como a que remete para a vitória em Aljubarrota (com a associação à
lenda da meada de ouro que D. João terá doado à Colegiada), são tardias (ao que
se percebe, dos séculos XIX e XX). Pela parte que me toca, inclino-me para aceitar
a explicação do cruzeiro que é dada pelo Padre Torcato Peixoto de Azevedo, e
que tem sido ignorada nos estudos que tratam deste monumento.
Tornando à Praça do Toural, na parte do norte se caminha pela rua de S.
Domingos para poente até à travessa que tem o cruzeiro, que a divide da rua dos
Gatos, e se caminha por esta para poente até o rocio de S. Lázaro, o qual tem
no meio uma capela dos Santos Reis, toda de abóbada de pedra, e debaixo da
alpendrada da dita capela um magnífico cruzeiro feito à custa dos devotos de
Nossa Senhora da Apresentação.
Torcato Peixoto de Azevedo, Memórias
Ressuscitadas da Antiga Guimarães, p. 323
Assim sendo, o cruzeiro teria sido mandado fazer por fiéis da Senhora da
Apresentação e estaria vinculado à capela de S. Lázaro. O Padrão de S. Lázaro,
portanto.
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