Francisco Martins Sarmento, 1833-1899 (auto-retrato) |
9 de Agosto de 1899
À uma hora da tarde, faleceu
o dr. Francisco Gouveia Martins Sarmento.(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 134)
Se me perguntam quem foi o vimaranense que mais se destacou ao longo
dos muitos séculos que Guimarães já conta, para além de Afonso Henriques, não
tenho qualquer dúvida em responder: Francisco Martins Sarmento. Para o
demonstrar, basta ler as notícias da imprensa vimaranense que anunciaram a sua
morte, no dia 9 de Agosto de 1899.
A notícia era esperada. No dia 8 de Agosto de 1899, O Comércio de
Guimarães noticiava que continuava gravemente
enfermo o nosso ilustre patrício Francisco Martins de Gouveia Morais
Sarmento, dando conta dos telegramas que iam chegando a pedir notícias da saúde
do arqueólogo. Até o rei D. Carlos, então em Vila Real de Santo António, transmitiu,
através do Conde de Arnoso, a sua preocupação pela doença de Sarmento. Havia
muito que lhe tinha sido diagnosticada uma gastro-hepatite
crónica, que quase o levara no em 1890. No início de 1899, contraiu uma
pneumonia grave. No Verão deste ano, durante a sua habitual estadia em
Briteiros, começou a padecer duma congestão
espinal, a que se seguiu a paralisia dos membros inferiores que acabaria
por lhe tomar o cérebro até certo ponto.
Segundo o Comércio de Guimarães, este homem foi vítima do seu profundo amor
pelo trabalho. A causa final, localizada no sistema nervoso, foi até certo
ponto o resultado do excessivo trabalho a que aquele sistema orgânico se expôs
durante muitos anos. Faleceu na sua casa no Largo que hoje tem o seu nome,
no dia 9 de Agosto de 1899.
Eis como os jornais de Guimarães deram a notícia:
Dr. Francisco Martins Sarmento
Morreu !...
É mais uma existência preciosa, mais uma lucidíssima inteligência, mais
um talento fulgurante, que a Morte implácavel, no seu constante ceifar nos
arrebatou, deixando nas ciências e nas belas-letras uma lacuna impreenchível.
Morreu!...
E a sua morte veio vibrar um golpe profundo e cruel na alma de todos
aqueles que o conheciam, do todos os vimaranenses, pois S. Exa. era uma alma
boa e pura. contando os amigos pelos conhecimentos e desconhecendo por completo
os ressentimentos e inimizades.
Morreu!...
E por ele chora não só Guimarães, a terra que lhe foi berço, e Portugal
que se orgulha de ser a sua pátria, mas todo o mundo civilizado: por ele deitam
luto pesado e tétrico a Imprensa, a Poesia, as Letras e as Ciências.
Vimaranense, Guimarães, 10 de Agosto de
1899
Martins Sarmento morreu.
Acaba de soltar o último alento o sábio ilustre, o santo varão, que refulgia
como estrela de primeira grandeza no horizonte da sua pária, eclipsando-se agora
para rebrilhar com puríssima e pujantíssima luz nas eternas páginas da história.
Por muito dolorosa, por muito pungente que seja a fatalíssima nova, ela
passou funebremente sobre Guimarães em lágrimas e vai ecoando neste momento, como
longínquo dobre 4de finados por todos os recantos do país e por todas as culminâncias
do mundo civilizado, deixando na sua triste passagem o luto na alma, e a
saudade amaríssima duma perda irreparável e inconfundível.
Porque Martins Sarmento não era só um cidadão prestantísimo, honra da sua
terra natal; não era só um trabalhador infatigável, um arqueólogo distinto, glória
da sua pátria: era um sábio, era um santo, glória e honra da humanidade.
Por isso a nova pungentíssima há-de ecoar funebremente por toda a parte
onde, de há muito, o nome de MARTINS SARMENTO era conhecido e venerado.
Carácter inconcusso, carácter honestíssimo, ele era mais que um engenho
proeminente e um douto de primeira plana: era uma incrustação de virtudes
esmaltando uma incrustação de glórias.
Mas não há lamentos que arranquem dos braços da fatalíssima morte o modesto
e laborioso trabalhador, o pensador profundo, o sábio venerando; nem há palavras,
nem frases, nem discursos que pintem mediocremente a dor que tão doloroso acontecimento
veio encher o espírito de quantos conheciam e adoravam o ilustre filho de Guimarães.
Martins Sarmento morreu; e este facto em toda a sua crueza lancina a alma vimaranense, e cobre de crepe a pátria que perdeu um dos homens que mais a
glorificaram e enobreceram neste último
meado do século.
O Comércio de Guimarães, Guimarães, 11 de
Agosto de 1899
Homenagem a Martins Sarmento
Acaba de extinguir-se uma vida que foi preciosíssima.
Morreu Martins Sarmento, uma relíquia da nossa terra e uma glória
nacional. Pranteando a sua morte, recordaremos à boca do seu túmulo o que foi
este homem a cujo cadáver se prestaram as solenes homenagens do mais belo culto
criado pela superstição humana.
Façamos isso: não e tão ocioso como pode pensar-se, não é tão pouco
positivo como muitos supõem: não é uma simples missão contemplativa iluminada
por um espírito metafísico… Olhando para o passado, pode ver-se muitas vezes o
futuro: foi junto do túmulo dos heróis que outrora se armaram os guerreiros.
E a vida de Martins Sarmento é uma lição para os que trabalham;
recordemos a sua individualidade como quem prega uma cruzada.
(…)
Temperamento imensamente complexo e imensamente incoerente: ao mesmo
tempo generoso e bom, irónico implacável, impassível como um estóico mas
arrebatado em lances de entusiasmo, espírito conjuntamente aberto a teorias
revolucionárias e docemente apaixonado e convicto por velhas tradições
românticas da história do passado.
Sendo um profundo sabedor, tendo uma perfeita orientação sociológica e
política, era um estrénuo patriota, um ardente defensor de consagrados direitos
nacionais; por isso se sentia indignado quando falava do ultimatum inglês dizendo ter sido mil vezes preferível uma guerra,
à antiga, em que o povo todo se erguesse numa onda de fúria contra o despotismo
britânico; e acreditava que se assim acontecesse teríamos tido do nosso lado a
vitória.
Tendo uma inteligência rijamente temperada, andava entretanto envolta
numa dormente atmosfera de ingenuidade e de romantismo.
Fisionomia singular, vincada em sulcos profundos, com os ossos quase a
rasgar-lhe a pele, que era da cor do bronze, cabelo e barbas negras, alto e
esguio, era uma estranha figura antiga contrastando flagrantemente com notáveis
infantilidades da sua alma simplíssima e boa.
Carácter austeramente honrado, duma sincera lealdade lusitana,
despretencioso e modesto, traduzia essa complexa feição em todos os actos da
sua vida, em todas as manifestações do seu espírito.
Os seus livros eram verdadeiros retalhos da sua alma e, como observa um
cronista a respeito de Herculano, podia seguir-se neles, ao mesmo tempo, o
desenvolvimento do seu pensamento e a história da sua consciência.
Deixa obras notabilíssimas sobre assuntos etnográficos, que escritas numa
outra língua, teriam feito uma verdadeira rovolução científica.
Fez importantes estudos arqueológicos, alguns trabalhos sobre línguas,
costumes, religiões, etc.; exumou duas cidades pré-historicas, recolhendo dessas
escavações, à sua custa, preciosos elementos com que organizou o excelente
museu arqueológico da Sociedade.
*
E fez tudo isto isolado e solitário, melancólico e triste, tendo talvez
compreendido a dura mas profunda sentença de Octave Fuillet: “le mépris des homes
c'est le commencementnent de la sagesse”.
Não foi pois demasiado que Guimarães, o seu berço, que ele tanto amava e
o país que tanto honrou, lhe prestassem a ostentosa homenagem que saudosamente
lhe renderam.
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