Frente e verso de senha da Cozinha Económica da Companhia Utilidade Doméstica, com a protecção da Câmara do Porto |
19 de Agosto de 1891
Na sessão da comissão municipal, leu-se um requerimento de José
Crisóstomo da Silva Basto, pedindo um subsídio e isenção de diversos impostos,
lançados em géneros, a fim de conseguir organizar uma cozinha económica, para
facilitar o alimento económico às classes trabalhadoras, tendo para tal fim já
constituído uma comissão. (…) A resposta: “Não compete à comissão municipal
resolver sobre o assunto, mas sim a Câmara”.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 162)
No início da década de 1890 Portugal atravessava por uma profunda crise
financeira. Metade das receitas do Estado evaporava-se no pagamento dos juros
da dívida, que era de 75% do PIB. A derrapagem financeira arrastou atrás de si
uma profunda crise económica, agravada por factores externos. A Argentina e o
Uruguai assumiram a insolvência e o mais antigo banco de investimento banco
inglês, o Baring Brothers, abeirou o
colapso. A Baring Crisis (também
conhecida pelo Pânico de 1890)
designa a mais grave crise de dívida soberana do século XIX, estando na origem
de um período de depressão aguda na economia mundial. Os mercados fecharam-se e
os países com mais dificuldades de auto-financiamento, como era o caso de
Portugal, passaram por grandes dificuldades. Esse era o caso de Portugal, que
adoptou a receita do costume para tentar superar os constrangimentos
financeiros: a austeridade e o empobrecimento da economia. O que não impediu
que, em 1891, Portugal decretasse a bancarrota parcial. Em 1902, a renegociação
com os credores levou a que fosse estabelecido um prazo de 100 anos para o
pagamento da dívida. Ou seja, até 2001, sucessivas gerações de portugueses
tiveram que suportar os custos dos erros de maus governos. Onde é que vimos
isto?
Em 1891, como hoje, os efeitos da crise afectavam especialmente os grupos
sociais menos favorecidos. A inflação depauperava os rendimentos do trabalho. O
custo de vida atingia níveis insuportáveis e a ameaça da fome andava no ar. Surgem
iniciativas de carácter assistencialistas que visavam minorar as
desinteressadas. No Porto, um comerciante de carnes com aspirações políticas, Vieira
de Andrade, director da Companhia Utilidade Doméstica levou à Câmara Municipal,
no dia 12 de Agosto de 1891, um projecto para a criação de uma Cozinha Económica, onde seriam
oferecidas duas mil refeições diárias, em condições apresentadas como
vantajosas para os operários. A proposta, que foi aprovada pela Câmara do
Porto, foi transcrita no jornal O Comércio
de Guimarães do dia 17, que a apresentou como uma proposta vantajosíssima para as classes operárias, que desejaríamos
ver posta aqui em prática.
Aquele desejo não caiu em cesto roto. José Crisóstomo da Silva Basto,
logo tratou de organizar uma comissão, com o propósito de instalar em Guimarães
uma Cozinha Económica, para ministrar às
classes trabalhadoras, por preços módicos, o alimento diário de que carecem. Dois
dias depois, a 19 de Agosto de 1891, era levada a reunião da comissão municipal
de Guimarães uma proposta que replicava, quase ipsis verbis, a que fora apresentada no Porto, pedindo a
participação da Câmara no projecto, com um subsídio e isenção de impostos.
O projecto Cozinha Económica para
as classes trabalhadoras de Guimarães, previa o fornecimento de três
refeições diárias:
Entre as 6:30 e as 8:30 da manhã, seria servido o almoço, composto por uma tijela com meio litro de caldo de carne
com hortaliça, feijão, arroz ou grão de bico. Custo: 25 réis. (30/25)
A partir das 10:30 e até às 13:30, servia-se o jantar, que tinha uma ementa composta por: uma tijela com meio
litro de caldo de carne com hortaliça, feijão, grão-de-bico, massa ou sopas de
trigo; um prato com ensopado de carne com batatas, massa, ou sopas de trigo;
200 gramas de pão de broa. Custo: 55 réis.
À noite, entre as 19:00 e as 21:00 horas, seria servida a ceia, composta por uma tijela com meio
litro de caldo com hortaliça e feijão, temperado com unto e azeite; 200 gramas
de pão de broa. Custo: 20 réis.(20/60)
Nos dias de jejum, era suprimida
a carne do caldo do almoço e do prato
do jantar, sendo este substituído por
um prato de arroz com bacalhau ou bacalhau ensopado com batatas, massa ou sopas
de trigo.
A refeição poderia ser consumida nas instalações da Cozinha Económica que forneceria (louça, talher e água para beber) ou entregue ao domicílio
A proposta não seria aprovada pela Comissão Municipal, que se declarou
incompetente para decidir em tal matéria, que seria atribuição da Câmara. Não
sabemos se teve outros trâmites, mas é certo que a ideia de Crisóstomo da Silva
Basto nunca se concretizou.
No Porto, pelo contrário, a Cozinha
Económica da Companhia Utilidade Doméstica abriria as portas ainda naquele
ano, no dia 9 de Novembro. Todavia, não foi bem recebida pelos operários, tendo
sido entendida como uma iniciativa que visava servir os interesses comerciais
do seu promotor, que assim arranjava um meio de escoar aquilo que não se vendia
nos talhos. Note-se que as refeições que a servir no Porto seriam um pouco
diferentes das de Guimarães (e também mais caras). Onde, na proposta de
Crisóstomo Silva Basto, se falava em carne,
na de Vieira de Andrade aparecia miúdos,
fressura ou carne (sendo a ementa do almoço
igual à da ceia e não estando
previstas refeições sem carne para os dias de
jejum). A notícia que o jornal O
Alarme, de Coimbra, publicou a anunciar a inauguração da Cozinha Económica do Porto é
esclarecedora quanto às desconfianças que a iniciativa de Vieira de Andrade
despertou entre os operários daquela cidade:
Inaugura-se amanhã a Cozinha
Económica, obra do sr. Vieira de Andrade que depois de para aí andar em
especulações eleitorais que o levaram ao parlamento atrás do sr. João Arroio,
vem agora especular com a fome do operário.
Um burguês a favorecer
caridosamente o operário, não é coisa em que se acredite e por isso lá vai a
verdadeira explicação da Cozinha.
O sr. Vieira de Andrade é director
da Companhia Utilidade Doméstica. Pensou um dia em tirar melhores lucros da
grande abundância de colada, que não se vendia nos talhos, e para lhe dar saída
inventou a Cozinha Económica.
Houve jornais que principiaram a
exalçar o sr. Andrade. Quase lhe chamariam benemérito se os operários,
descobrindo a especulação não espalhassem no Porto um protesto em que
demonstravam que por menos dinheiro obteriam em qualquer tasca, melhor sopa.
A Cozinha abre amanhã e amanhã
mesmo a Federação das associações operárias publicará na Ideia Nova contra ele
um protesto veemente. Infeliz sr. Vieira de Andrade! Nem honra, nem proveito!
O Alarme, Coimbra, 8 de
Novembro de 1891
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