Toucinho-do-céu de Guimarães (fotografia apanhada aqui) |
24 de Agosto de 1759
Nesta data sentenceia o juiz de fora de Guimarães, contra o abade de
Santa Cristina de Arões, na acção que este intentara contra o Convento de Santa
Clara desta mesma vila de Guimarães, com o fim de lhe ser mantida a posse em
que a sua igreja estava, havia mais de 50 anos, de receber das freiras daquele
convento, pelo S. João, uma caixa de toucinho-do-céu, do peso de 8 a 9
arráteis. O doce que as freiras lhe haviam mandado no ano de 1757 não atingira
aquele peso e foi por isso que ele, em 26 de Junho do ano seguinte, apresentara
contra o convento a acção que o juiz de fora acabara de julgar a favor das
freiras, por lhe não parecerem concludentes as razões alegadas pelo referido
abade.
(João Lopes de Faria, Efemérides
Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol.
III, p. 174)
—
Vai um docinho, senhor pároco? disse Amélia, apresentando-lhe o prato. São da
Encarnação, muito fresquinhos.
—
Obrigado.
—
Aquele ali. É toucinho-do-céu.
—
Ah! se é do Céu... disse ele todo risonho. E olhou para ela, tomando o bolo com
a ponta dos dedos.
(Eça
de Queirós, O Crime do Padre Amaro)
Era pois necessário
disputar palmo a palmo a especialidade de Santa Clara, cujo nome só de per si
faz vir água à boca, toucinho-do-céu, e que demais o abade quereria confrontar
com a especialidade da sua terra natal, que, embora não fosse lambarice, era
bem famosa, o presunto de Melgaço.
(Abade de Tagilde, “Convento
de Santa Clara de Guimarães”, Revista de
Guimarães, 1892)
A um homem que tem que zelar pela fé do seu rebanho, impõe-se que
pratique a temperança, a virtude que é capaz de conter a tentação do pecado da
gula. Mas quando a tentação era do Céu, prevalecia a indulgência.
A história a que se refere a efeméride de hoje foi contada pelo Abade de
Tagilde, em 1892. Pode-se resumir assim:
Uma das
principais fontes de receita do Convento de Santa Clara de Guimarães era a
Igreja de Santa Cristina de Arões, que o Cardeal D. Henrique, regente de Portugal
na menoridade de D. Sebastião, anexara perpetuamente àquele recolhimento
religioso. Dos frutos e rendimentos da igreja de Arões, um terço ficava para a côngrua e sustentação do respectivo abade, sendo o restante
entregue às freiras de Santa Clara no dia da sua padroeira, Santa Cristina, a
24 de Julho de cada ano. Nesse dia, as clarissas de Guimarães enviavam ao abade
de Arões uma caixa com 8 a 9 arráteis de toucinho-do-céu, a fim de lhe
adoçar a boca para não ser remisso no pagamento
(afirmação das próprias freiras). Acontece que, no ano de 1759, sendo abade
de Santa Cristina de Arões António de Magalhães e Abreu,
natural de Melgaço, a caixa de doce que lhe foi entregue pelo recebedor do Convento
de Santa Clara teria menos doce do que o do uso.
Sentindo-se prejudicado no seu direito de se regalar com o belo toucinho-do-céu, tão agradável à vista como grato ao paladar, que as religiosas fabricavam com toda a perfeição, com todas as regras da arte, no dia 26 de Junho de 1758, o abade apresentou queixa ao juiz de fora de Guimarães contra o convento de Santa Clara, exigindo que lhe fosse mantida a posse de receber a 24 de Julho 8 a 9 arráteis de toucinho-do-céu e não menos, como sucedera no ano anterior. A suas alegações não convenceriam o juiz, por considerar que a oferta do doce não era um direito seu, mas sim um gesto de primor, mimo e galanteria das religiosas de Santa Clara. Derrotado em primeira instância, por sentença de 24 de Agosto de 1759, o abade lambareiro recorreria para a Relação do Porto que, a 2 de Fevereiro de 1760 confirmaria a sentença inicial.
Daí para a frente, como escreveu Oliveira Guimarães, o abade de Arões passou a ter de pagar os doces, se queria regalar-se com eles no dia da padroeira da sua igreja. Quem tudo quer tudo perde.
No entanto, o Abade de Tagilde compreendia a intransigência do seu par de Arões na defesa do seu direito a receber, em dia certo, uma boa quantidade de doce (à volta de 4 quilos):
Sentindo-se prejudicado no seu direito de se regalar com o belo toucinho-do-céu, tão agradável à vista como grato ao paladar, que as religiosas fabricavam com toda a perfeição, com todas as regras da arte, no dia 26 de Junho de 1758, o abade apresentou queixa ao juiz de fora de Guimarães contra o convento de Santa Clara, exigindo que lhe fosse mantida a posse de receber a 24 de Julho 8 a 9 arráteis de toucinho-do-céu e não menos, como sucedera no ano anterior. A suas alegações não convenceriam o juiz, por considerar que a oferta do doce não era um direito seu, mas sim um gesto de primor, mimo e galanteria das religiosas de Santa Clara. Derrotado em primeira instância, por sentença de 24 de Agosto de 1759, o abade lambareiro recorreria para a Relação do Porto que, a 2 de Fevereiro de 1760 confirmaria a sentença inicial.
Daí para a frente, como escreveu Oliveira Guimarães, o abade de Arões passou a ter de pagar os doces, se queria regalar-se com eles no dia da padroeira da sua igreja. Quem tudo quer tudo perde.
No entanto, o Abade de Tagilde compreendia a intransigência do seu par de Arões na defesa do seu direito a receber, em dia certo, uma boa quantidade de doce (à volta de 4 quilos):
Não deve porém ser motivo de
reparo esta pendência, por quanto, além da obrigação de zelar os direitos da
sua igreja, o abade bem sabia (apropriando-nos do que se lê no Relatório da Exposição industrial de
Guimarães,
pág. 80, transcrito da Folha da Tarde, n.° 133) que nenhuma cidade ou
vila de Portugal gozava de tão justa reputação no fabrico e tempero da lambarice
como Guimarães; que cada convento tinha a sua especialidade favorita, que era
procurada como mimo e até disputada como coisa milagrosa... para gulosos.
Não se sabe ao certo quando foi que as religiosas de Santa Clara de
Guimarães se lançaram na indústria
dos doces, que praticavam como fonte complementar de rendimento. Cada uma das
clarissas de Guimarães recebia, por ano 6$400 réis para o seu bolsinho, verba que não seria suficiente
para as suas despesas, que eram, regra geral, mais mundanas do que monásticas. A
confecção e venda de doces, seco e de calda,
tinha como propósito, não a ocupação útil e desinteressada do tempo, mas sim um
negócio que lhes acrescentava o pecúlio de que podiam dispor. As suas artes
doceiras atingiram tal perfeição que se tornaram famosas em Guimarães, em
Portugal e mesmo no estrangeiro. Entre os doces que confeccionavam, lá estava o
toucinho-do-céu, mas também as tortas, as morcelas doces ou os doces de fruta,
com destaque para o que confeccionavam com uma espécie de abóbora aqui
conhecida por calondro e a que noutros sítios se chama de cabaço.
Os arcebispos de Braga, por perceberem que as freiras de Santa Clara
chegavam a gastar mais tempo na cozinha a fazer doces do que no serviço
religioso, esforçaram-se, em vão, por limitar aquele negócio. Em 1724, o
arcebispo D. Rodrigo de Moira Teles, visitou Santa Clara e impôs um limite
anual para a produção de doces por cada freira: 6 arrobas (90 quilos).
No entanto, esta medida não terá produzido grande efeito, a atentar na
repetição das medidas decretadas por um só arcebispo, D. Gaspar de Bragança (um
dos filhos bastardos de D. João V conhecidos como o Meninos de Palhavã, titular 1758-1789):
No início de Dezembro de 1758, constando-lhe
que as freiras gastavam, pelo Natal, mais tempo a fazer doces do que no serviço
a Deus, D.Gaspar interditou-lhes as artes pasteleiras desde o início do Advento
até 7 de Janeiro. Em Outubro de 1760, esta medida seria reafirmada e agravada,
por um decreto do mesmo arcebispo, ordenando
que no convento de Santa Clara não façam doces de qualquer qualidade desde 15 de
Outubro até 6 de Janeiro inclusive, isto em todos os anos, excepto obtendo dele
expressa licença para o fazerem no referido tempo, sob pena de excomunhão maior.
Em Setembro de 1769, D. Gaspar proibiu as clarissas
de fazerem doces de forno para pessoa alguma eclesiástica ou secular, ainda
que lhes mandem o necessário para eles, excepto para os pais delas freiras, por
motivo de moléstia, uma ou outra vez no ano, em quantidade que se reconheça ser
por necessidade para moléstia. Esta proibição deveria
vigorar do dia de Santa Teresa até aos Reis. Ao mesmo tempo, recomendava à
abadessa que providenciasse para extinguir, por ser
abuso inteiramente ao espírito da vida e observância religiosa, o costume das
freiras fazerem doces para vender.
Em 1771, a abadessa e as freiras de Santa
Clara escreveram ao Arcebispo, declarando que se viam oprimidas com
escrúpulos por lhes ser difícil observarem com rigor a proibição de
fazerem doces de forno com os aparelhos que de fora lhes mandavam os
seus parentes e pessoas a que licitamente deviam obrigações, e pediam
dispensa do interdito até aos Santos. Foi-lhes concedida a licença pedida, passando
a vigorar a interdição ao tempo entre Todos Santos e os Reis. No início de
Dezembro do mesmo ano, o D. Gaspar concedia autorização às freira de Santa
Clara para fazerem algumas chouriças, por ser ao presente a sua ração muito
ténue, para se alimentarem pelo decurso do ano, as quais se não podiam fazer
depois do Natal, mas sim antes dele por ser o seu próprio tempo. Esta
autorização foi pedida pelas freiras, porque as chouriças que pretendiam fazer levavam
algum açúcar, o que poderia
violar a proibição de fazer doces.
Em finais de Agosto de 1776, a abadessa de
Santa Clara, conseguiu que o arcebispo reduzisse o tempo de interdição de fazer
doces para fora no convento, que passou a vigorar entre o primeiro domingo do
Advento e o dia de Reis.
A tradição da doçaria conventual de Santa
Clara de Guimarães sobreviveu à vontade dos arcebispos que a quiseram
interditar. Em 1884, aquando da Exposição Industrial promovida de pela
Sociedade Martins Sarmento, no Convento de Santa Clara já só havia duas freiras,
Ana Angelina e Antónia Amália. Mesmo assim, a doçaria do convento marcou presença
no certame com vários doces: marmelada, doces de calondro, de pera e de laranja
e toucinho-do-céu.
O toucinho-do-céu de Guimarães não era um
exclusivo das freiras de Santa Clara. No convento de Santa Rosa do Lima (domínicas)
também se confeccionava. Aquando da Exposição Industrial de 1884, quando os conventos
estavam na fase final do processo de extinção iniciado em 1834, a sua receita
era já do domínio público, sendo uma especialidade
vimaranense vendida em caixas decoradas com papel rendilhado e usado especialmente
em presentes de Páscoa.
Como já escrevemos antes, o toucinho-do-céu é a mais soberba das
especialidades da doçaria vimaranense, preparando-se em várias casas que dizem
seguir a receita de Santa Clara. Nem sempre será assim. O toucinho-do-céu é um
doce conventual de ovos e amêndoa com chila. Não raras vezes, o que se encontra
por aí é um doce de forno à base de chila, com ovos e sinais (às vezes, nem
isso) de amêndoa. Uma excelente iguaria, para os apreciadores de chila. Mas que
não lhe chamem toucinho-do-céu de Guimarães…
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